O valor da diferença

Maria Berenice Dias[1]

 

Com a evolução dos costumes e a mudança de valores e dos conceitos de moral e de pudor, a livre orientação sexual deixou de ser “assunto proibido” e hoje já é enfrentada abertamente, sendo retratada de forma explícita em filmes, nas novelas e na mídia em geral. Como lembra Jurandir Freire Costa, num mundo em que a tradição não é mais vista como fonte primordial das escolhas e ações morais, o apelo ao ‘valor da diferença’ pode ecoar como sensato.[2]

Os homossexuais, pela sua expressividade numérica, pela excelência que se impõem para lograr aceitação, acabam desfrutando de boa situação financeira e confortável condição econômica. Por isso, tal segmento começou a despertar a atenção como um mercado promissor. O chamado pink market, ou mercado dos homossexuais, por certo em muito contribuirá para sua inserção social. Esclarece Paulo Meira: como homens e mulheres homossexuais são um grupo dispensado de cargas sociais como filhos, têm um poder aquisitivo tão notório que muitas empresas, ávidas por encontrar nichos de mercado, os estão abordando.[3]

Ainda que tais relacionamentos, tidos como não-convencionais, nenhuma regulamentação tenham recebido até agora, os homossexuais estão começando a adquirir visibilidade, e seus direitos merecem ser reconhecidos. Imperiosa a normatização desses vínculos afetivos, com a atribuição de direitos e a definição de obrigações.

A união de pessoas do mesmo sexo é uma realidade que não pode mais ser negada, estando a clamar por tutela jurídica. Como o Direito raramente se antecipa aos fatos sociais, cabe ao Judiciário solver os conflitos que lhe são trazidos, atentando nos princípios fundamentais do sistema jurídico vincados pela ordem constitucional. Incabível que convicções de ordem meramente subjetiva impeçam o julgador de atribuir efeitos jurídicos a determinadas relações sociais, relegando-as à margem da juridicidade.

As soluções judiciais polarizam-se. Umas negam serem as uniões homossexuais merecedoras de consideração pelo Direito e outras aplicam as normas referentes ao matrimônio. O que não pode é o magistrado não julgar. Ainda que a lei seja omissa, deve fazer uso da analogia, dos costumes e princípios gerais de direito,[4] buscando atender ao fim social e às exigências do bem comum.[5] Descabido que a orientação sexual das partes singelamente leve o magistrado a deixar de decidir, sonegue jurisdição, como se com isso simplesmente fosse desaparecer a homossexualidade. Seria atrativo e fácil, teoricamente, dizer que o homossexualismo (sic) é um absurdo, é uma aberração e um desvio, jogando uma pá de cal sobre o assunto, conforme Rainer Czajkowski, que reconhece que tal solução, em termos práticos, deixa a desejar.[6]

A mais cruel conseqüência do agir omissivo é a perpetração de grandes injustiças. Subtrair direitos de uns e gerar enriquecimento injustificado de outros afronta o mais sagrado princípio constitucional, que é o de respeito à dignidade humana. A homossexualidade, a transexualidade, o travestismo, a bissexualidade, a convivência homossexual, a adoção de crianças por casais do mesmo sexo são aspectos da expressão da sexualidade que devem ser considerados em seus amplos desdobramentos. Por seus valores próprios, precisam ser vistos tanto pela moral e pela religião, como pelos costumes e tradições, mas antes de tudo pelo Direito e pela Justiça.

 

 

 

Publicado em 05/08/2004.

 

[1] Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul

Vice Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM

www.mariaberenice.com.br

[2] COSTA, Jurandir Freire. A questão psicanalítica da identidade sexual. Entrevista publicada na revista Teoria & Debate, nº 18, 2º trimestre de 1992, p. 18.

[3] MEIRA, Paulo R. Quer vender mais? Não dê as costas a este mercado. Revista Venda Mais. São Paulo: Editora Quantum, nº 79 – 2000, p. 20.

 

[4] Art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil.

[5] Art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil.

[6] CZAJKOWSKI, Rainer. Reflexos jurídicos das uniões homossexuais. Jurisprudência Brasileira. Paraná: Juruá, 1995, p. 97.