O rito sumário e os delitos contra a mulher

Maria Berenice Dias[1]

 

Louvável a busca de agilização no julgamento dos delitos de pequena potencialidade ofensiva, levada a efeito por meio da criação dos Juizados Especiais Criminais. A Lei nº 9.099, de 26/9/95, significou uma verdadeira revolução no sistema processual brasileiro, gerando uma justiça penal consensual, possibilitando a aplicação de pena mesmo antes do oferecimento da acusação e ainda antes da discussão da culpabilidade. Foram adotadas medidas de despenalização, e a criação de um rito sumaríssimo leva ao desafogamento da Justiça comum, permitindo mais celeridade na tramitação das ações, a impedir, por conseqüência, a ocorrência de prescrição, emprestando uma maior credibilidade ao Poder Judiciário.

Ainda que se tenha de reconhecer uma consciente tentativa de acabar com a impunidade – vista como a causa maior da criminalidade -, deixou a Lei de priorizar a pessoa humana, a preservação de sua vida e a integridade física. Ao condicionar a ação penal relativa às lesões corporais leves e culposas à representação, omite-se o Estado de sua obrigação de agir, transmitindo à vítima a iniciativa de buscar a punição de seu agressor, segundo critério de mera conveniência. Mas continua, no entanto, priorizando o direito de propriedade, pois tais delitos ainda persistem desencadeando ações públicas incondicionadas.

Quando existe um desequilíbrio entre agressor e agredido, uma hierarquização entre ambos, a punição certamente inexiste, pois não há como exigir que o desprotegido, o hipossuficiente, o subalterno venha a formalizar a queixa que poderá levar seu agressor à condenação. Dentro dessa categoria não se pode deixar de enquadrar a mulher, pois os delitos perpetrados contra ela e contra os filhos, em sua maciça maioria, são praticados por maridos, amantes ou companheiros, ou seja, pessoas com quem convive e mantém uma relação de afeto.

Apesar de a igualdade entre os sexos estar ressaltada enfaticamente na Constituição Federal, secular a discriminação que coloca a mulher em uma posição de inferioridade e subordinação com relação ao homem.

Existe um modelo preestabelecido. Ao homem cabe o espaço público e à mulher, o privado, nos limites da família e do lar. O homem provendo a família e a mulher cuidando do lar, estão, cada um, desempenhando a sua função.A sociedade outorga ao homem um papel paternalista, exigindo uma postura de submissão da mulher. Isso enseja a formação de dois mundos: um de dominação, externo, produtor, o outro, de submissão, interno e reprodutor. A essa distinção estão associados os papéis ideais de homens e mulheres.

Ainda que não comporte o momento uma análise mais apurada sobre as causas de o amor gerar dor, inquestionável que a ideologia patriarcal que ainda subsiste leva o homem a se considerar proprietário do corpo e da vontade da mulher. Essa errônea consciência de uma situação de poder é que assegura o suposto direito de o macho fazer uso de sua superioridade corporal e a força física sobre a fêmea.

O medo, o sentimento de culpa, a dependência econômica, o sentimento de inferioridade, a baixa auto-estima, decorrentes da ausência de pontos de realização pessoais, sempre impuseram à mulher a lei do silêncio. Raros os casos em que se encorajavam as vítimas a denunciar a agressão que sofriam, e isso bastava para o desencadeamento da ação penal.

A criação das Delegacias da Mulher desempenhou um importante papel, pois o atendimento especializado, feito na maioria das vezes por mulheres, visa a encorajar as vítimas a denunciarem agressões sofridas, muitas vezes ao longo de anos. De outro lado, o fato de serem chamados os agressores perante a autoridade policial cumpria uma função intimidatória, além de, por óbvio, a instauração do inquérito ensejar o desencadeamento automático da ação penal, ainda quando a recomposição do casal as levasse a procurar “retirar a queixa”.

Apesar de não se encontrar justificativa para o baixo índice de condenações – como se justiça considerasse delitos de menor lesividade o praticado contra a mulher -, ao menos se criminalizava a violência doméstica. No momento em que começou a Justiça a reconhecer que a absolvição, que sistematicamente era levada a efeito para garantir a harmonia familiar, tinha efeito contrário, os Juizados Especiais Criminais levaram, inquestionavelmente, à impunidade nessa espécie delitual.

A nova lei, além de ter esvaziado as Delegacias da Mulher – que se limita a lavrar um termo circunstanciado -, está, sem sombra de dúvida, eliminando o desencadeamento de processos e conseqüente apenação nos chamados crimes contra a mulher.

Impõe a nova lei à realização de audiência preliminar com a presença do autor do fato e da vítima. A conciliação, que imperiosamente tem de ser proposta, enseja simples composição de danos, a serem executados no juízo cível. Não obtida a conciliação, há o direito de exercer a representação verbalmente, ou seja, na presença do agressor. Mais. Mesmo feita a representação, pode o Ministério Público propor a aplicação de multa ou pena restritiva de direitos, que, se aceita pela parte, é homologada pelo juiz. Tal acordo não enseja reincidência, não consta da certidão de antecedentes e não tem efeitos civis. Trata-se de uma verdadeira transação penal da qual a vítima não participa.

Dor e sofrimento sempre significam a vida das mulheres. Em relação a nós se rima amor com dor, submissão com dedicação, sofrimento com santidade. Da mulher sempre se exigem renúncias e sacrifícios em prol da família, por isso é chamada de a rainha do lar. Reinado esse, no entanto, que lhe custa caro, pois realização pessoal, ambição profissional são pretensões impensáveis para quem deve ter como único ponto de gratificação o sucesso do marido. A esposa deve realizar-se com o brilho de seu par, sendo inaceitável que busque qualquer tipo de ideal fora do âmbito doméstico. Também a sacralização da maternidade lhe impõe sacrifícios ilimitados, pois, como diz o poema, ser mãe é padecer num paraíso, é desdobrar fibra por fibra o coração.

Esse papel que nos é imposto e ao qual nos submetemos até hoje foi o que permitiu que se chegasse ao alarmante nível de violência que só agora vem despertando a atenção de todos.

A desproporção, quer física, quer de valoração social, entre gêneros masculino e feminino necessita ser ressaltada, para que se dimensione o crime doméstico como hediondo, merecedor da execração social, como ocorre, por exemplo, com os delitos praticados contra a mãe, quando se diz que foi praticado “contra a própria mãe”.

Necessário lembrar que o Direito Penal tem uma função simbólica, não centrada só no castigo, mas na demonstração da intolerância social com relação a determinado ato que passa a ser exemplar, e que se cunhe uma nova consciência, buscando-se o efeito positivo da apenação e o reconhecimento de novos valores.

Assim, não se pode deixar de concluir que a lei veio na contramão da história. Ao desburocratizar-se a Justiça criminal, acabou mais uma vez por sacrificar a mulher.

Apesar de o movimento de mulheres estar agitando suas bandeiras, a nós, mulheres da carreira jurídica, é que cabe conscientizar os operadores do Direito de que os delitos domésticos necessitam de um tratamento diferenciado. Imprescindível que sejam criados juizados especializados, a serem atendidos por juízes, representantes do Ministério Público, conciliadores e defensores públicos devidamente preparados para o julgamento dessa espécie de delito. Imperioso igualmente que seja montada uma estrutura para o atendimento psicológico e acompanhamento por assistentes sociais do casal. Mister que as medidas restritivas de direito sejam de molde a propiciar uma mudança de comportamento daquele que pratica o crime sem entender o caráter criminoso de seu agir.

Urge, enfim, que se revogue o art. 88 da Lei nº 9.009/95, para que volte o Estado a cumprir seu papel, ou, ao menos, que se dispense a representação nos delitos perpetrados no âmbito doméstico e, ainda, o que seria mais salutar, se afaste do âmbito de competência dos Juizados Especiais Criminais o seu julgamento.

 

Publicado em 16/07/2003.

 

[1] Desembargadora do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

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