O protagonismo da Justiça na conquista de direitos à população LGBTI

Justice’s protagonism in the conquest of rights to LGBTI population

 

Maria Berenice Dias[1]

 

Sumário: 1. Direito à sexualidadade – 2. Direito à homoafetividade – 3. Direito à identidade de gênero – 4. A omissão do legislador – 5. O protagonismo da Justiça – 6. Estatuto da Diversidade Sexual e Gênero.

 

 

Resumo:

O conservadorismo social sempre repudiou formas de ser ou de viver que se distanciam do modelo aceito como sendo o certo, pelo só fato de corresponder à vivência majoritária.

Esta é a origem do repúdio às pessoas LGBTI, aos vínculos afetivos que constituem e à identidade de gênero que buscam, fora do binarismo: masculino e feminino.

A consequência é a perversa invisibilidade a que são submetidas pelo medo do legislador de reconhecer direitos a quem busca assumir responsabilidades mútuas.

Daí a significativa importância da Justiça que, provocada pelos advogados, levou os juízes a assegurar o primado do direito à identidade e a incluir as uniões homoafetivas no âmbito de tutela do Direito das Famílias e Sucessões.

 

Palavras chaves:

Direito à homoafetividade – preconceito social – uniões homoafetivas – direito à identidade de gênero.

 

Abstrat:

Social conservadorism has always repudiated forms of being or living that deviate from the model accepted as being right, just by the fact it corresponds to the majority experience.

This is the origin of the repudiation at LGBTI people, the affective bonds they constitute, and the gender identity they seek out of binarism: male and female.

The consequence is the perverse invisibility, to which they are subjected by the legislator’s fear of recognizing rights to those who seek to assume mutual responsibilities.

Hence the significant importance of justice which, provoked by lawyers, led judges to ensure the primacy of the right to identity and to include homoaffective unions within the scope of the Family and Succession Law.

 

Keywords:

Right to homoaffectivity – social prejudice – homoaffective unions – right to gender identity.

 

 

  1. Direito à sexualidadade

Já no seu preâmbulo a Constituição da República assegura uma sociedade sem preconceitos para que todos possam exercer seus direitos sociais e individuais. Também assume o compromisso de promover o bem de todos sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade ou outras formas de discriminação (CR, art. 3º, IV).

Ao consagrar a dignidade da pessoa humana como fundamento de um Estado Democrático de Direito (CR, art. 1º, III) garante o direito à igualdade (CR, art. 5º, I) e à liberdade (CR, art. 5º, II), vedando qualquer espécie de discriminação, inclusive por orientação sexual ou identidade de gênero.  O só fato de estas expressões não constarem explicitamente do texto constitucional, não exclui o direito ao livre exercício da sexualidade.

Trata-se de direito albergado em um punhado de princípios constitucionais. Desde o mais significativo de todos, o que diz com o respeito à dignidade da pessoa humana. Bem como quando garante os direitos de personalidade, liberdade, igualdade, intimidade, vida privada e liberdade de expressão.

A sexualidade integra a própria condição humana, sendo um direito fundamental que acompanha o cidadão desde o seu nascimento, eis que decorre de sua própria natureza. Como direito do indivíduo, é um direito natural, inalienável e imprescritível. Ninguém pode realizar-se como pessoa se não tiver assegurado o direito de respeito ao exercício de sua sexualidade, quanto à orientação sexual e à identidade de gênero. O direito de tratamento igualitário exige respeito ao livre exercício da sexualidade, pois sem liberdade sexual o indivíduo não se realiza.

O impedimento de tratamento discriminatório não tem exclusivamente assento constitucional. Tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos chancelados pelo Brasil têm força de emendas constitucionais.

Além disso, o tratamento isonômico é corolário de todo o regramento que consagra o primado dos direitos humanos.

 

  1. Direito à homoafetividade

Não só ao indivíduo, também à família é outorgada a especial proteção do Estado (CR, art. 226). A inserção do conceito de entidade familiar no sistema jurídico ensejou o alargamento do próprio conceito de família.

O centro de gravidade das relações de convívio situa-se na mútua assistência afetiva, elemento essencial dos vínculos interpessoais, ao qual o Direito não pode ficar indiferente. É o afeto que aproxima as pessoas, dando origem a relacionamentos que geram consequências jurídicas. Aliás, foi em nome do respeito à diferença, que foi construído um conceito plural de família.

Para a configuração de uma entidade familiar, não mais é exigido, como elemento constitutivo: a presença de um casal heterossexual, a prática da sexualidade – chamada pela feia expressão “débito conjugal” – e nem a capacidade reprodutiva. A evolução científica, principalmente na área da biociência, acabou influindo no próprio comportamento das pessoas e refletindo-se na constituição das famílias.

Assim, é indispensável ter uma visão plural das estruturas familiares e inserir no conceito de entidade familiar os vínculos afetivos que, por envolverem mais sentimento do que vontade, merecem a especial proteção que só o Direito das Famílias consegue assegurar. Por isso é necessário reconhecer que, independente da identidade ou diversidade sexual do par, as união de afeto merecem ser identificadas como família, gerando direitos e impondo obrigações aos seus integrantes.

A referência à união estável entre um homem e uma mulher (CR, art. 226, § 3º) não significa que somente esta convivência é reconhecida como digna da proteção do Estado. A recomendação em transformá-la em casamento visa dar-lhe mais segurança, sem a necessidade da intervenção judicial para declarar sua existência.

É meramente exemplificativo o enunciado constitucional. Em nenhum momento está dito não existir entidades familiares formadas por pessoas do mesmo sexo. Isolado o afeto como o elemento estruturante do conceito de família, não se justifica deixar ao desabrigo as uniões homoafetivas. Excepcionar onde a lei não distingue é a forma mais perversa de excluir direitos.

Atendidos os requisitos legais para a configuração de uma união estável – publicidade, ostensividade e continuidade – é necessário conferir direitos e impor obrigações a todos que assim vivem. Desimporta o sexo do par, se igual ou diferente, para que se emprestem efeitos jurídicos aos vínculos afetivos no âmbito do Direito das Famílias e das Sucessões. São relacionamentos que, mesmo sem a diversidade de sexos, têm origem em um elo de afetividade.

A proibição da discriminação em razão do sexo veda discriminação à  homoafetividade. A identificação da orientação sexual está condicionada ao sexo da pessoa escolhida em relação a quem escolhe, decisão que não pode ser alvo de tratamento diferenciado. Se todos são iguais perante a lei sem distinção de qualquer natureza, aí está incluída, por óbvio, a orientação sexual e a identidade de gênero.

Deste modo, são alvo de proteção os relacionamentos afetivos entre homens e mulheres ou só por mulheres ou só por homens. Não há como exigir a diferenciação de sexos para o casal merecer a tutela do Estado.

O estigma do preconceito não pode ensejar que um fato social não se sujeite a efeitos jurídicos.

 

  1. Direito à identidade de gênero

Em face do binarismo que rege a sociedade – homens ou mulheres; azul ou rosa – é difícil a aceitação de que existem pessoas que não se reconhecem com o seu sexo biológico: a chamada população “TRANS”, termo guarda-chuva que identifica ditas incoincidências.

Principalmente com a evolução da hormonoterapia e o surgimento de técnicas cirúrgicas de adequação sexual, a resistência em admitir a alteração do nome e da identidade de gênero no assento registral se perpetuou no âmbito do Poder Judiciário sob a justificativa de não comprometer a segurança das relações jurídicas.

Com o propósito de desjudicializar e agilizar a mudança, de modo a preservar a dignidade de quem busca adequar o nome à sua própria identidade, o Supremo Tribunal Federal, em decisão vinculante e com eficácia erga omnes, firmou tese[2] assegurando aos transgêneros o direito de alterarem nome e sexo, diretamente junto ao registro civil, mediante autodeclaração, independente de terem realizado tratamento hormonal ou cirurgia de redesignação genital.

Diante da decisão claramente autoaplicável, muitos cartórios passaram a proceder à alteração.  Mas, em face da insegurança de alguns registradores, o Conselho Nacional de Justiça[3] editou provimento regulamentando o procedimento retificatório.

Também há quem nasce com a genitália ambígua: os intersexuais, que eram chamados de hermafroditas.

Os médicos se arvoram no direito de corrigir o que consideram uma anomalia, enquanto os pais se angustiam em querer dar ao filho um nome ou feminino ou masculino. Assim, absurdamente com o amém do Conselho Federal de Medicina,[4] são realizadas cirurgias mutiladoras em crianças de tenra idade, sem dar-lhes a chance de elegerem a própria identidade de gênero.

 

  1. A omissão do legislador

É do Poder Legislativo a obrigação de assegurar todos os direitos a todos os cidadãos, principalmente, de quem se encontra em situação de vulnerabilidade. E, dentre todos os excluídos, as maiores vítimas é a população LGBTI – lésbicas, homossexuais, bissexuais, travestis, transexuais e intersexuais.

A omissão covarde do legislador infraconstitucional de assegurar direitos e reconhecer seus relacionamentos, ao invés de sinalizar neutralidade, encobre enorme preconceito. O silêncio significa exclusão da tutela jurídica do Estado, verdadeira condenação à invisibilidade. O receio de ser rotulado de homossexual inibe os parlamentares. O medo é de desagradar o eleitorado majoritariamente conservador, e comprometer sua reeleição. Por isso, não apresentam ou aprovam qualquer lei que consagre direitos a parcela da população alvo da mais perversa discriminação.

O pior é o fundamentalismo religioso que vem tomando conta do Congresso Nacional.  Igrejas se multiplicam de maneira assustadora e não medem esforços para impor suas crenças, como se o país não fosse laico.

 

  1. O protagonismo da Justiça

Apesar de todos estes obstáculos, há uma realidade que ninguém pode apagar. Sempre existiram relacionamentos independentemente do sexo ou identidade de gênero do par. Não é um crime, não compromete a estrutura social e nem afronta a “moral e os bons costumes”. Feia expressão sempre invocada na tentativa de impor padrões de comportamentos alinhados com modelos já superados.

Mas a falta de lei não significa ausência de direito.

A postura silenciosa do legislador, no entanto, não inibiu os advogados de baterem às portas do Judiciário. Empunhando a Constituição, buscaram o reconhecimento de direitos às uniões de pessoas do mesmo sexo, no âmbito do Direito das Famílias. Para driblar o ranço preconceituoso impregnado na expressão homossexualidade, passou-se a falar em uniões homoafetivas, de modo a evidenciar que são relacionamentos que surgem de um vínculo afetivo, gerando o enlaçamento de vidas com desdobramentos de caráter pessoal e patrimonial.

Foi assim que a coragem dos advogados e a sensibilidade dos juízes forjaram a construção de um novo paradigma, ultrapassando tabus e rompendo preconceitos.

Decisões de vanguarda pipocaram Brasil a fora, até que, em 2011, o Supremo Tribunal Federal reconheceu as uniões homoafetivas como entidade familiar, com os mesmos direitos e iguais obrigações das uniões estáveis.[5]

Como a Constituição recomenda que seja facilitada a conversão da união estável em casamento (CR, art. 226, § 3º), este foi o caminho que passou a ser percorrido. Formalizado contrato de convivência, era buscada sua conversão em casamento. Não demorou para o Superior Tribunal de Justiça garantir acesso ao casamento, mediante habilitação direta.[6]

Até que, em 2013, o Conselho Nacional da Justiça[7] impediu que se negue acesso ao casamento homoafetivo. Assim, o Brasil tornou-se o primeiro país do mundo a admitir o chamado “casamento gay” por decisão judicial e não por lei.

Condenar à invisibilidade é a forma mais cruel de gerar injustiças e fomentar a discriminação. O Judiciário tomou consciência de sua missão de criar o direito. Não é ignorando certos fatos, deixando determinadas situações a descoberto do manto da juridicidade, que se faz Justiça. O Estado não pode descumprir sua obrigação de conduzir o cidadão à felicidade.

 

  1. Estatuto da Diversidade Sexual e Gênero

O Brasil assegura acesso ao casamento homoafetivo, direitos previdenciários e sucessórios. O casal pode ter filhos, ou via adoção ou mediante o uso de técnicas de reprodução assistida.

Só que tudo isso ainda é nada.

É necessária uma legislação ampla para consolidar os direitos garantidos no âmbito judicial; criminalizar a homofobia e impor políticas públicas principalmente para a população trans. Com certeza o segmento mais vulnerável.

Este foi o propósito da Comissão Nacional da Diversidade Sexual e Gênero da OAB ao elaborar o Estatuto da Diversidade Sexual e Gênero.[8] Trata-se do mais arrojado projeto de lei do mundo, pois não existe uma legislação tão ampla na tutela dos direitos da população LGBTI.

Em 2018, juntamente com a Aliança Nacional LGBTI+, o projeto foi apresentado ao Senado Federal, por iniciativa popular, com mais de 100 mil assinaturas.[9]

Já que a Constituição da República consagra como princípio maior o respeito à dignidade da pessoa humana, é indispensável reconhecer que todos os cidadãos dispõem do direito individual à liberdade, direito social de escolha e direito humano à felicidade.

Indispensável a mobilização de todos para que o Estatuto, não tenha o destinado de todos os demais projetos que foram apresentados até hoje ao Congresso Nacional.

Somente a lei terá o condão de retirar o Brasil da sua mais vergonhosa posição – o país em que mais se mata pessoas LGTI no mundo.

 

Publicado: 03/10/2019.

 

[1] Advogada especializada em direito homoafetivo, famílias e sucessões

Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM

Ex-presidente Nacional da Comissão da Diversidade Sexual e Gênero da OAB

Presidente da Comissão de Direito Homoafetivo e Gênero do IBDFAM

www.mbdias.com.br

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www.direitohomoafetivo.com.br

[2] STF – Tema 761: I) O transgênero tem direito fundamental subjetivo à alteração de seu prenome e de sua classificação de gênero no registro civil, não se exigindo, para tanto, nada além da manifestação de vontade do indivíduo, o qual poderá exercer tal faculdade tanto pela via judicial como diretamente pela via administrativa; II) Essa alteração deve ser averbada à margem do assento de nascimento, vedada a inclusão do termo ‘transgênero’; III) Nas certidões do registro não constará nenhuma observação sobre a origem do ato, vedada a expedição de certidão de inteiro teor, salvo a requerimento do próprio interessado ou por determinação judicial; IV) Efetuando-se o procedimento pela via judicial, caberá ao magistrado determinar de ofício ou a requerimento do interessado a expedição de mandados específicos para a alteração dos demais registros nos órgãos públicos ou privados pertinentes, os quais deverão preservar o sigilo sobre a origem dos atos.

[3] CNJ – Provimento 73/2018.

[4] CFM – Resolução 1.664/2003.

[5] STF, ADI 4.277 e ADPF 132, Rel. Min. Ayres Brito, j. 05/05/2011.

[6] STJ, REsp 1.183.378 – RS, 4ª T., Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 25/10/2011.

[7] CNJ – Resolução 175, de 14/05/2013.

[8] Texto disponível no site: www.direitohomoafetivo.com.br

[9] PLS 134/2018.