O Direito no limiar do novo século

 

Maria Berenice Dias[1]

 

O Poder Judiciário, como os demais Poderes constituídos, tem sido alvo de um grande desprestígio. A mídia não cansa de denunciar irregularidades, noticiar corrupções e levantar suspeitas contra tudo e todos.

A clássica divisão dos Poderes idealizada por Montesquieu embaralha-se no momento em que se defere ao Executivo o direito de legislar – como diuturnamente faz com a edição desmedida de medidas provisórias – e se atribui ao Legislativo a faculdade de, mediante a instalação de CPIs, transformar-se em órgão julgador.

O que dizer a respeito do Poder Judiciário? Deseja-se reformá-lo, mas sem a sua participação. Fala-se em controle externo e súmula vinculante como remédios para a cura de todos os males. São males que, no entanto, assolam a Justiça em todo o mundo. Deve-se diagnosticá-los, curá-los, preveni-los. Mas, ao querer impor a Lei da Mordaça, em conseqüência de uma CPI, que de forma espalhafatosa tentou comprometer a imagem de todo o Poder Judiciário, acaba-se por comprometer o último baluarte de credibilidade de que o cidadão necessita para ter a certeza da garantia de que participa de um estado democrático de direito.

O exacerbado aumento das demandas, que congestiona foros e tribunais, decorre da vitalidade da cidadania, incentivada que foi pela Carta Constitucional, que despertou a consciência do direito de buscar e obter a inclusão social. Ao Poder Judiciário cabe fazer o seu papel. Não se pode dizer que se furta dessa missão. Ao invés de crise no Judiciário, é de reconhecer-se que a decantada morosidade não resulta da inércia ou da ineficiência de seus membros. Aí estão os Juizados Especiais, a Justiça Instantânea e mecanismos outros para a rápida solução dos conflitos. Mas tal não basta. É preciso, também, reformar a estrutura do processo, agilizar os procedimentos legais e rever o sistema recursal.

O Direito vem-se redimensionando pela evolução da sociedade. Desdobram-se os direitos em gerações. Passou-se dos direitos individuais, consagrados pelo estado liberal como sendo de primeira geração, para os direitos sociais, que exigem a participação ativa do Estado, chegando aos direitos de solidariedade, os nominados direitos de terceira geração. Direitos que vêm-se internacionalizando mediante a criação de organismos supra-estatais, dando relevo de forma mais saliente aos chamados direitos humanos, conceito que hoje classifica os Estados e, inclusive, norteia as relações econômicas entre os povos.

Nesse panorama, é mister que se visualize o nascimento de uma nova Ciência do Direito, fazendo-se indispensável que se deite um distinto olhar às relações jurídicas, atentando muito mais nos seus aspectos subjetivos do que na sua objetividade.

O surgimento de novos paradigmas leva a rever os modelos preexistentes, tratando a liberdade como um dos pilares do Direito e assentando a igualdade muito mais no reconhecimento da existência das diferenças.

Essa nova sociedade, no entanto, ainda se encontra regida pelo Código Comercial, que data de 1850, e por um Código Penal editado em 1940, sendo que o Código Civil, que vige desde 1916, é alvo de uma reforma que já se arrasta há mais de um quarto de século.

Certamente é nos ombros dos juízes que se depositam as esperanças de que se devolva a credibilidade às instituições do Estado, de que se resgate a crença na Justiça e se acredite em um Direito mais legítimo, mais sensível, mais voltado à nossa realidade social. No limiar deste novo século, em que se vive um momento de profundas transformações, é necessário pensar e repensar a relação entre o justo e o legal.

 

 

Publicado em 14/07/2003.

 

 

 

[1] Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul

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