O direito a um lar

Maria Berenice Dias[1]

 

Deixou o Poder Judiciário, pela primeira vez, a hipocrisia de lado e encarou a realidade: um casal, mesmo formado por pessoas do mesmo sexo, pode sim adotar uma criança.

Já estava mais do que na hora de a Justiça reconhecer que os homossexuais têm capacidade de constituir uma família e plenas condições de criar, educar, proteger e amar uma criança.

Como a homossexualidade sempre foi vista como uma perversão, uma aberração, os relacionamentos homossexuais ainda hoje são considerados instáveis e promíscuos, sem condições de abrigar um infante. Tanto não são vistos como uma família, que somente em escassos países é admitido o casamento de pessoas do mesmo sexo. No máximo, e isso em raros lugares, é reconhecida a união civil, sem, no entanto, ser permitida a adoção. As justificativas não podem ser mais descabidas, sem disfarçar a discriminação e o preconceito.  A alegação mais comumente utilizada é de que uma criança, para desenvolver-se de maneira sadia, necessita de um modelo masculino e um feminino. Assim, precisa de um pai e de uma mãe, sob pena de comprometer sua identidade sexual e sofrer rejeição no ambiente escolar e no meio social. Essa assertiva não se sustenta, até porque sérios trabalhos, no campo da psicologia e da assistência social, negam a presença de seqüelas no desenvolvimento saudável de quem foi criado por dois pais ou duas mães. Assim, de todo descabido que os operadores do direito invoquem questões não jurídicas para justificar seus preconceitos. Negam-se direitos com fundamentos de outras áreas do conhecimento, as quais não referendam tais conclusões.

Parece que agora a Justiça, finalmente, tomou consciência de que recusar a chancela judicial não impede que as pessoas busquem a realização de seus sonhos. Assim, mesmo que o legislador se omita em editar leis que assegurem direitos às uniões homoafetivas, nem por isso os homossexuais vão deixar de constituírem família. Igualmente, não admitir que ambos adotem, não impede que crianças passem a viver em lares formados por pessoas do mesmo sexo.

A injustificável resistência é facilmente contornada. Somente um do par busca a adoção. Via de conseqüência, os estudos sociais e as entrevistas que são realizadas não alcançam quem também vai desempenhar o papel de pai ou de mãe, ou seja, o parceiro do adotante. Acaba sendo limitada e parcial a avaliação levada a efeito, o que, às claras, só vem em prejuízo do próprio adotado. Mais: passando a criança a viver no lar do seu genitor e de seu parceiro, constitui-se o que se chama de filiação socioafetiva com ambos, pois os dois desempenham as funções parentais.

Ao adquirir o adotado o estado de filho afetivo com relação a quem desempenha o papel de pai e de mãe, a inexistência do registro deixa o filho desprotegido. Não tem qualquer direito com relação ao genitor nãoadotante e nem este tem deveres e obrigações para com o filho, que também é seu. Basta lembrar que a ausência do vínculo jurídico não permite a imposição do dever de prestar alimentos, não assegura direito de visitas e nem garante direitos sucessórios.

Assim, a corajosa decisão que admitiu a adoção por um casal de homossexuais vem, enfim, atender ao cânone constitucional que assegura com absoluta prioridade o direito das crianças e dos adolescentes, colocando-os a salvo da discriminação e garantindo-lhes o direito a uma vida feliz, com seus dois pais ou duas mães.

 

Publicado em 12/07/2005.

[1] Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul

Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM