O concubinato legal

Maria Berenice Dias[1]

 

É nítido o repúdio do legislador pátrio aos vínculos afetivos entre o homem e a mulher fora do casamento. O Código Civil, que data de 1916, além de omitir-se em regular as relações extramatrimoniais, restou por puni-las, já que proibia ao cônjuge adúltero fazer doação ao seu cúmplice (art. 1.177), bem como instituí-lo como beneficiário de seguro (art. 1.474). Também vedava à concubina do testador casado a possibilidade de ser nomeada herdeira ou legatária (art. 1.719).

Tais condenações, no entanto, não lograram coibir o surgimento de relações sem vínculo legal, que começaram a bater às portas do Judiciário reclamando soluções, principalmente quando de seu rompimento. As respostas encontradas não visavam regrar o concubinato, mas tão-somente seus efeitos patrimoniais. Na tentativa de coibir aberrantes injustiças, deslocou-se a matéria para a esfera do Direito do Trabalho e do Direito Obrigacional. Passou-se a reconhecer a existência de uma sociedade de fato, cuja extinção não poderia gerar enriquecimento injustificado em detrimento, normalmente, da mulher. O acervo adquirido durante a sua vigência não poderia ficar somente com um dos sócios, restando a matéria por ser sumulada pelo STF sob nº 380.1 Concedia-se outras vezes à mulher que não exercia atividade remunerada indenização por serviços domésticos prestados, sob o argumento de não ter feito qualquer aporte de caráter econômico à sociedade.

A Constituição Federal, que buscou retratar a sociedade por uma ótica de modernidade, deu uma nova dimensão ao conceito de família. Introduziu um termo generalizante – entidade familiar – a englobar, além da relação decorrente do casamento, também a união estável entre um homem e uma mulher (art. 226, § 3º), com o que emprestou juridicidade ao relacionamento até então marginalizado pela lei.

Essa previsão de nada ou de muito pouco serviu, pois restou sem reflexos na postura da maciça maioria dos julgadores. Apesar de a doutrina de maior expressão ter visto o surgimento de um regime jurídico de aplicação imediata, tal não impressionou os tribunais. Continuou a ser invocada a Súmula nº 380, quando a constitucionalização da relação concubinária a tirou da órbita obrigacional. Não se pode mais falar em sociedade de fato, ou ser considerada como relação de trabalho a merecer eventual indenização. Tímidas foram as mudanças que ocorreram, sendo de lembrar que somente três Estados deslocaram as ações oriundas de uma união estável para as varas especializadas de família.2 No mais, pouco foi alterado, como se não tivesse ocorrido tão significativa transformação, o que era antes um espúrio fato passou a  relação jurídica.

Os alimentos continuaram sendo negados, e a primeira decisão da Justiça gaúcha que os concedeu3 acabou por ser derrubada em sede de embargos infringentes.4 Também em matéria sucessória nenhuma evolução ocorreu, persistindo a não-concessão da inventariança ao companheiro sobrevivente e a negativa do usufruto de parte dos bens. Os raros julgados que se revelaram mais arrojados podem ser considerados como decisões isoladas, verdadeiras exceções que não tiveram o condão de produzir qualquer avanço.

Levou mais de seis anos o legislador ordinário para regular a união estável, que a Constituição chamou de entidade familiar qual deferindo-lhe a proteção estatal.

A Lei nº 8.971, de 29 de dezembro de 1994, veio normatizar o direito a alimentos e a sucessão do que denominou de companheiros, não utilizando a consagrada expressão concubinato. Esse diploma legal, no entanto, ainda conserva um certo ranço preconceituoso ao regrar a relação entre pessoas solteiras, juridicamente separadas, divorciadas ou viúvas, deixando fora de seu espectro de incidência, injustificavelmente, as uniões de pessoas casadas e separadas de fato. Só reconheceu como jurídicas se existente o relacionamento há mais de 5 anos ou em havendo prole, como se tais requisitos o purificassem. Conforme lembra Marilene Guimarães, a lei priorizou o lapso temporal em detrimento de valores afetivos. 5

Em distinto ponto, a lei significa, inclusive, um retrocesso em relação à Súmula nº 380, já que condiciona a partilha dos bens quando à mútua colaboração dos companheiros. Questões outras se colocam. Desfeita a união antes de cinco anos de convivência e sem a existência de filhos, tal situação levaria a não permitir a concessão de alimentos ou a partilha de bens? Qual a espécie de atividade que se pode considerar como participativa para a formação de patrimônio? A quem se atribuiu o ônus de provar a existência de dita contribuição não está dito na lei? Tais restrições e a falta de especificidades acabam por deixar ainda marginalizado um número sem fim de relações, fato que não pode, levar ao reconhecimento de ensejarem os vínculos afetivos tão-só a humilhante indenização por tarefas domésticas.

Com relação aos alimentos, em determinado aspecto, o novo regramento é inclusive mais liberal com relação aos companheiros do que na dissolução do casamento. Pela regra do art. 19 da Lei do Divórcio, aquele que for considerado culpado pelo rompimento do casamento não tem direito a perceber alimentos, somente obrigação de pagá-los ao cônjuge inocente que deles necessitar. Os únicos requisitos para a concessão de alimentos decorrentes do rompimento da união estável são a prova da existência da relação e a necessidade do pensionamento, sem a exigência de que se identifique o culpado pelo fim do convívio. Assim, a companheira está mais protegida do que a mulher legítima, como flagrou Teresa Arruda Alvim.6

Com relação ao direito sucessório, foi o companheiro incluído na ordem de vocação hereditária como herdeiro legítimo, tal como o cônjuge sobrevivente. Porém aqui também foi privilegiado o parceiro da união estável, uma vez que o cônjuge não faz jus ao usufruto se o regime do casamento for o da comunhão de bens, discriminação tachada por Lia Pallazo Rodrigues 7 como inconstitucional.

Tais pontos deixam entrever que, se tímida é a lei em alguns pontos, lacunosa e omissa em outros. Em certas circunstâncias é mais benevolente com as relações que regula. Privilegia a união estável apesar de nítida a preferência da norma constitucional pela relação legal, ao recomendar empenho em sua transformação em casamento.

 

Publicado em 30/06/2004.

[1] Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul

Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM

www.mariaberenice.com.br

 

1 Comprovada a existência de sociedade de fato entre os concubinos, é cabível sua dissolução judicial com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum.

 

2 No Rio Grande do sul a matéria inclusive encontra-se sumulada, no verbete nº 14.

3 Ap 590 069 308 que tive a honra de relatar, quando substituta naquela Corte.

4 Embargos Infringentes nº 591 011 291.

5 GUIMARÃES, Marilene. Comentários à Lei 8.971 de dezembro/94. Jornal Mulher, Porto Alegre – RS, n. 1, p. 13.

 

6 ALVIM, Teresa Arruda. Entidade Familiar e Casamento Formal. Repertório de Jurisprudência e Doutrina sobre Direito de Família, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, p. 90.

7 RODRIGUES, Lia Pallazo. Algumas Considerações a Respeito da Lei 8.971. Ajuris, Porto Alegre, n. 63, p. 307-319, mar. 1995.