O 1º aniversário da Maria da Penha

Maria Berenice Dias[1]

Ivone M.C. Coelho de Souza[2]

 

A Lei Maria da Penha está completando um ano. Até o seu advento a violência doméstica não era considerada crime. Somente a lesão corporal recebia uma pena mais severa quando praticada em decorrência de relações domésticas (CP, art. 129, § 9º). As demais formas de violência perpetradas em decorrência das relações familiares geravam no máximo aumento de pena (CP, art. 61, II, letra “f”).

Mas, desde 2006, ano de sua promulgação, uma guerra diferenciada, longa e penosa, vinha sendo travada neste plano, e pela primeira vez, um comando indiscutível se impôs nas muitas frentes de combate: o da própria vítima da violência doméstica. Esta origem, identificada com uma personagem central e concebida a partir de um evento, ou alguns eventos dramáticos no interior doméstico, concede à Lei Maria da Penha um diferencial definitivo. Desta vez, não apenas estatísticas quase anônimas, mesmo que incontestáveis, ou simples vontade de alguns observadores lúcidos da situação da mulher oprimida em sua própria casa, mas a perseverança, o sofrimento e a capacidade tenaz em reverter um infortúnio pessoal conquistaram o recurso  para, com este instrumento legal, abalar a violência,  nas várias faces com que flagela não apenas a mulher, mas a família e a  sociedade. A vítima que se insurge, de fato, também o faz em favor do social, contaminado tantas vezes pelo silêncio e pela omissão relativos aos conflitos familiares desta natureza.

A partir da vigência da nova lei, a violência doméstica foi definida sem guardar correspondência a quaisquer tipos penais. Primeiro é identificado o agir que configura violência doméstica ou familiar contra a mulher (art. 5º): qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial.  Depois são definidos os espaços onde o agir configura violência doméstica (art. 5ª, incs. I, II e III): no âmbito da unidade doméstica, da família e em qualquer relação de afeto. Finalmente, de modo didático e bastante minucioso, são descritas as condutas que configuram a violência física, psicológica, sexual, patrimonial e moral.

As formas de violência elencadas deixam evidente a ausência de conteúdo exclusivamente criminal no agir do agressor. A simples leitura das hipóteses previstas em lei mostra que nem todas as ações que configuram violência doméstica constituem delitos. Além do mais, as ações descritas, para configurarem violência doméstica, precisam ser perpetradas no âmbito da unidade doméstica ou familiar ou em qualquer relação íntima de afeto.

Assim, é possível afirmar que a Lei Maria da Penha considera violência doméstica as ações que descreve (art. 7º) quando levadas a efeito no âmbito das relações familiares ou afetivas (art. 5). Estas condutas, no entanto, mesmo que sejam reconhecidas como violência doméstica, nem por isso configuram crimes que desencadeiam uma ação penal.

Da mesma forma, quanto à subjetividade (psicológica, moral), a Lei avança, mais que em qualquer outro momento das tentativas de preservar a integridade da mulher no âmbito doméstico, palco das maiores e mais volumosas agressões.  Já não se restringe tão somente às ofensas físicas, comprováveis, investe contra o dano psicológico, a lesão afetiva e suas conseqüências, capazes de provocar seqüelas importantes, e sob o disfarce da impalpabilidade, banalizar a violência, a partir daí quase sempre crescente. Mais relevante ainda, propõe obstáculos aos atentados à auto-estima da agredida, que por serem  difíceis de combater, são fatores de perturbação junto à criança e ao adolescente em sua percepção da imagem feminina, como um paradigma desvalorizado ou passivo. Esta forma de vinculação afetiva, muito comumente redunda em aceitação de modelos de convivência familiar, assinalados por agressões, exclusão e abuso.

Efetivamente, o papel hierarquizado dos gêneros se estrutura também através da identificação com  agressor ou agredido, com a submissão e a dominação bem definidas, de forma que a inclinação para perpetuar estes papeis distorcidos seja de  prognóstico fácil. Até recentemente, os ataques perpetrados no interior da família ou mesmo dirigidos a uma outra representação feminina externa, gozavam de certo beneplácito particular e social, no sentido de que as coisa são naturalmente assim e afinal, só “um tapinha não dói…” Além disso, a tradição cultural, reprodutora destas anacrônicas tendências, se encarregou de minimizar o conflito, valeu-se sempre do costume para consolidar uma realidade que mais branda ou mais ácida, ficava sedimentada pelo humor e pela chacota, às vezes com inteligência e alguma “maquiagem” bem produzida. É o caso da loura-burra, sucesso nacional de um ataque preconceituoso à margem da ação legal, dentre tantos outros que reproduzimos sem crítica. Com o advento da Lei 11.340, até os rappers vão ter que distribuir melhor suas “inspirações” discriminatórias.

De qualquer modo, mesmo não havendo crime, mas tomando conhecimento a autoridade policial da prática de violência doméstica, deverá tomar as providências determinadas na lei (art. 11): garantir proteção à vítima, encaminhá-la a atendimento médico, conduzi-la a local seguro ou acompanhá-la para retirar seus pertences. Além disso, deverá a polícia proceder ao registro da ocorrência, tomar por termo a representação e remeter a juízo expediente quando a vítima solicitar alguma medida protetiva (art. 12).

Todas estas providências devem ser tomadas diante da denúncia da prática de violência doméstica, ainda que – cabe repetir – o agir do agressor não constitua infração penal que justifique a instauração do inquérito policial. Dita circunstância, no entanto, não afasta o dever da delegacia de polícia tomar as providências determinadas na lei. Isso porque, é a violência doméstica que autoriza a adoção de medidas protetivas, e não exclusivamente o cometimento de algum crime.

Este é o verdadeiro alcance da Lei Maria da Penha. Conceitua a violência doméstica divorciada da prática delitiva e não inibe a concessão das medidas protetivas tanto por parte da autoridade policial como pelo juiz.

Apesar destas profundas mudanças, passado um ano de vigência da lei, infelizmente há que se reconhecer que os avanços foram pequenos, até porque a aplicação da lei, em face de sua natureza,  exige a criação dos Juizados da Violência e Especial contra a Mulher. Só um juiz especializado  pode atentar à dúplice natureza da violência doméstica, a exigir providências muito mais no âmbito do direito das famílias.

Assim, se a atribuição da competência às Varas Criminais buscou marcar o repúdio à forma de como a violência doméstica vinha sendo tratada no âmbito dos Juizados Especiais, a delegação das demandas às varas criminais não lhes concedeu melhor tratamento.

Como aniversários servem para se fazer balanço do que foi feito e planejar o que fazer, este é o melhor momento para se atentar que de nada adiantou a criação da lei, que só conseguirá ser implantada quando da criação dos juizados especializados.

O simbolismo da origem da Lei se instala agora como preponderante na questão do estímulo ao exercício do direito de se opor, reivindicar, denunciar investidas à segurança, à dignidade e à inclusão, já que rechaçada aqui a condição de vítima impotente, é o  objeto da violência doméstica que assume, agora como sujeito, o intento de mudar tristes realidades. Grande começo, já que cabe antes de tudo à mulher a transformação de condições a si adversas, ao promover através do combate a maus-tratos, abuso e discriminação, também o bem-estar da família e do social.

Que esta seja a grande meta até a próximo aniversário.

Só assim teremos o que comemorar!

 

 

Publicado em 23/01/2009.

[1] Advogada especializada em Direito Homoafetivo, Famílias e Sucessões

Ex-Desembargadora do Tribunal de Justiça do RS

Vice-Presidente Nacional do IBDFAM

Desembargadora do Tribunal de Justiça do RS

Vice-Presidente Nacional do IBDFAM

[2] Psicóloga

Vice-Presidente do JUSMULHER-RS