Novos modelos de família: uniões homoafetivas

Maria Berenice Dias[1]

 

A Constituição Brasileira, do ano de 1988, é considerada uma das mais avançadas do mundo. Impõe como valor maior o respeito à dignidade humana baseado nos princípios fundamentais da liberdade e da igualdade. Considera a família a base da sociedade e veda qualquer espécie de discriminação.

Tudo isso leva a crer que o Brasil é o melhor dos mundos: que não existe discriminação, que reina o primado dos direitos humanos, e é absoluto o respeito às diferenças. No entanto, infelizmente esta não é a realidade do nosso país. Talvez o dado mais chocante seja o fato de não existir nenhuma lei que reconheça direito aos parceiros do mesmo sexo. A omissão é total, mesmo sendo o Código Civil bastante recente, do ano de 2003. Há uma só referência na lei que busca coibir a violência doméstica, a chamada Lei Maria da Penha, do ano de 2006, que estende sua proteção independente da orientação sexual dos membros da família.

Nada é reconhecido, nem a união civil, muito menos a possibilidade do casamento.

Projeto de lei buscando o reconhecimento da parceria civil, do ano de 1995, nunca chegou a ser votado. As reações são violentas. Apesar de o Brasil ser um país católico, a maioria do Congresso Nacional é formada por integrantes de igrejas evangélicas, segmento religioso que tem crescido muito. Além de dispor de grande poder econômico, vem dominando os meios de comunicação. Assim, somam-se as forças conservadoras, o que impede a aprovação de qualquer lei que busque reconhecer algum benefício à parcela da população alvo de tanta discriminação e preconceito.

Os avanços mais significativos vêm sendo alcançados no âmbito do Poder Judiciário. É por intermédio das decisões judiciais que alguns direitos são reconhecidos. No entanto, o número de decisões ainda é escasso.

No ano de 2000 iniciei uma verdadeira cruzada, denunciando o injustificável preconceito contra as uniões que chamei de homoafetivas na obra que, de forma pioneira, enfrentou os aspectos jurídicos das uniões de pessoas do mesmo sexo. A partir daí, é que a Justiça começou a emprestar visibilidade e reconhecer alguns direitos a gays e lésbicas. Com isso, foi principalmente no sul do Brasil – região onde sou magistrada – que surgiram as decisões mais arrojadas e de vanguarda.

Mas a grande dificuldade ainda é abandonar o velho preconceito de ver tais uniões como uma sociedade de fato e as identificar como entidade familiar. Esta mudança se faz necessária, pois alguns direitos só podem ser reconhecidos no âmbito do Direito de Família, tal como direito a alimentos, direito de habitação, direitos previdenciários e, principalmente, direito à herança. Ora, enquanto visualizada simples sociedade de fato, não se pode falar em família e, via de conseqüência, em direito sucessório.

O primeiro passo foi afirmar a competência das Varas de Família para julgar as ações envolvendo casais homossexuais. Depois, com o reconhecimento das uniões como uma entidade familiar, foi possível atribuir ao parceiro sobrevivente a condição de herdeiro e conceder-lhe direitos sucessórios.

Recente decisão, também do Tribunal gaúcho, concedeu a adoção dos dois filhos à companheira da mãe adotante. Elas haviam sido adotadas por uma das companheiras quando do nascimento, e a Justiça estendeu a adoção à outra. Esta foi a primeira decisão que no Brasil acabou por reconhecer a possibilidade de adoção por um casal homossexual. Assim, as crianças passaram a ter duas mães, constando o nome de ambas no registro de nascimento.

Algumas ações propostas pelo Ministério Público no âmbito da Justiça Federal dispõem de efeito vinculante. Assim, benefício previdenciário em decorrência da morte do parceiro e auxílio-reclusão passaram a ser pagos ao parceiro homossexual em sede administrativa, sem haver a necessidade de se buscar a via judicial. Igualmente a indenização decorrente do seguro obrigatório por morte em acidente de trânsito.

Decisões sem efeito erga omnes, ainda que beneficiem somente as partes, acabam consolidando a jurisprudência, e são elas que vêm indicando novos rumos e abrindo caminhos, ainda que de modo vagaroso.

Mas os caminhos trilhados estão abertos, são conquistas que sinalizam novos tempos, servem de paradigma para que a sociedade saiba o que significa o dogma maior da nossa Constituição Federal, que impõe o respeito à dignidade da pessoa humana.

 

Publicado em 01/03/2011.

 

 

[1] Advogada especializada em Direito das Famílias, Sucessões e Direito Homoafetivo

Ex-Desembargadora do Tribunal de Justiça-RS

Vice-Presidenta Nacional do IBDFAM

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