Nem cega, nem surda

Maria Berenice Dias[1]

 

 

Não mais serve para identificar a Justiça a imagem de uma mulher sentada, de olhos vendados, tendo em mãos uma balança e uma espada. Ainda que venha aumentando a participação feminina nos quadros da magistratura, tal ainda não se refletiu em julgamentos atentos às questões de gênero. Como a Justiça deve ser dinâmica, ágil e célere, descabe representá-la em posição inerte, comodamente sentada. A balança com seus pratos em equilíbrio de há muito não significa eqüidade, pois é imperioso o tratamento diferenciado de partes em posições desiguais. A espada, se visava a representar efetividade, traduz mais idéia de agressividade e não se compatibiliza com a postura socializante e sensível que deve ter o julgador.

Se a Justiça não deve ser representada pela deusa Têmis, igualmente descabe que continue sendo considerada também surda. Imperioso que ouça o clamor do povo, se aproxime dos jurisdicionados, atente nas queixas das partes, se preocupe com a eficiência da atividade mais essencial ao cidadão. Urge a criação da Ouvidoria da Justiça, com a finalidade específica de buscar uma rápida prestação jurisdicional. Mister colocar à disposição de advogados, servidores e partes meios diversos para denúncias, sugestões e reclamações. Dada ciência ao reclamado do fato denunciado, disporia ele de prazo para responder, devendo comunicar a providência tomada e a solução final. O desatendimento a tais determinações seria anotado na ficha funcional do serventuário ou magistrado, cabendo a instauração do processo administrativo, se for o caso. Além de dar uma resposta a cada reclamante, mister a publicação mensal do relatório de suas atividades.

Indispensável que a Ouvidoria tenha acesso a todas as informações dos demais órgãos do Poder Judiciário, sendo-lhe disponibilizado o andamento dos processos em todas as comarcas, bem como dos recursos em tramitação no Tribunal, dados que o atual estágio da informática permite acessar com facilidade. Também ficariam à sua disposição os dados referentes ao desempenho de cada magistrado, e, exercendo atividade censória, poderia solicitar informações sobre as causas de retardamento de algum ou alguns processos, buscar justificativas para o eventual acúmulo, estabelecer metas, planos de trabalho, bem como implantar mecanismos para dinamizar o andamento dos feitos: regime de exceção, redistribuição de processos ou formação de equipe de magistrados para socorrer determinadas varas, comarcas ou câmaras.

O ocupante de tal cargo necessita conhecer o funcionamento da Justiça, mas não ser um integrante de seu quadro. Sua legitimidade deve vir do referendo dos magistrados e sua independência assegurada pela investidura temporária. Talvez o Ouvidor da Justiça deva ser Desembargador aposentado, eleito por todos os magistrados, com mandato limitado e sem possibilidade de recondução.

Urge que o próprio Poder Judiciário busque mecanismos visando a otimizar a distribuição da Justiça, já que a criação de um controle externo inquestionavelmente viria a fragilizar a independência da atividade jurisdicional e a comprometer a garantia maior de um estado democrático de direito: um julgamento atento à realização do Direito, mas ágil.

 

 

Publicado em 14/07/2003.

[1] Desembargadora do Tribunal de Justiça do RS

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