Mulher e igualdade
Maria Berenice Dias[1]
Na Constituição Federal a igualdade entre homens e mulheres vem decantada enfaticamente em duas oportunidades (arts. 5º, inc. I, e 266, §5º). Porém, a constitucionalização da igualdade não basta, por si só, para alcançar a absoluta equivalência social e jurídica de homens e mulheres.
Forte é a resistência em reconhecer os novos papéis desempenhados pela mulher. Aceita-se com mais facilidade sua profissionalização até por fatores econômicos, mas tímida é sua participação na vida pública. Nos processos envolvendo relações familiares é onde mais se vê que a evolução legislativa ocorrida nos últimos tempos não bastou para alterar o discurso dos juízes.
O Poder Judiciário ainda é uma das mais conservadoras instituições e sempre manteve uma posição discriminatória quanto ao gênero masculino-feminino. Em face de uma visão estereotipada da mulher, exige a Justiça uma atitude de recato, impondo-lhe uma situação de dependência. Persiste nos julgados uma tendência eminentemente protecionista, o que dispõe de uma dupla moral. Nas decisões judiciais, aparecem com extrema freqüência os termos: inocência da mulher, conduta desregrada, perversidade, comportamento extravagante, vida dissoluta, situação moralmente irregular, expressões que contêm forte carga ideológica.
Em alguns temas, vê-se com bastante clareza que, ao ser feita uma avaliação comportamental dentro de requisitos de adequação a determinados papéis sociais, é desconsiderada a liberdade da mulher.
A guarda dos filhos sempre foi outorgada ao cônjuge inocente. A noção de inocência e culpa é guindada pelo legislador como preceito norteador, consistindo a inocência verdadeiro prêmio ou recompensa para a atribuição da guarda. Mas tanto a legislação civil defere um poder discricionário ao juiz para decidir diferentemente em proveito do próprio menor. Inúmeros julgados, porém, estabelecem uma certa confusão entre a vida sexual da mulher e sua capacidade de ser boa mãe, deixando de considerar aspectos econômicos, afetivos e culturais para o pleno desenvolvimento dos filhos. Olvida-se o interesse do menor de ter as melhores condições possíveis de vida, sem qualquer vinculação com a liberdade sexual da genitora. Normalmente é analisada sua conduta, sendo tolerada a guarda se apresenta um comportamento discreto. Necessário, no entanto, é priorizar o direito da criança, alterando-se a guarda somente em situações extraordinárias e excepcionais que possam vir em prejuízo do filho. Até na Declaração dos Direitos da Criança consta o direito de a mãe permanecer com os filhos de tenra idade.
Emergiram novos valores sociais referentes à dignidade da mulher e sua autonomia, liberdade e privacidade na área da sexualidade. O concubinato da mãe começou a ser visto como um fato social comum, aceito e respeitado, deixando de ser reprovável para a atribuição da guarda dos filhos. Porém, somente quando existe uma situação que se arremeda à família tradicional, é concedido à mãe o direito à companhia dos filhos.
Quanto à pensão alimentícia, necessário não olvidar que, em face da igualdade insculpida na norma constitucional, a obrigação mudou de natureza. Não podem mais as mulheres pleitear alimentos com base na condição de dependência, somente cabendo invocar necessidade de assistência. O Código Civil, ainda com nítido perfil patriarcal, impunha ao homem a manutenção da família. Só merecia alimentos a mulher inocente e pobre, cessando o dever de sustento no caso de abandono do lar sem justo motivo. Esses conceitos, encharcados de subjetividade, abrem perigoso caminho para a interferência da moralidade.
O Código Civil atribuiu aos cônjuges, reciprocamente, a obrigação de pensionamento, impondo-a ao responsável pela separação. Afigura-se esse pressuposto como verdadeira reparação do dano decorrente do desfazimento da sociedade conjugal, mais de caráter indenizatório do que alimentar. A maior preocupação da jurisprudência não diz com a necessidade, mas com a conduta moral da mulher, revelando-se a honestidade como condição para obter o pensionamento. Assim, a concessão de alimentos à mulher é condicionada direta e exclusivamente à abstinência sexual. O exercício da liberdade leva ao reconhecimento da perda da inocência, fazendo cessar a obrigação alimentar. A castidade deve ser perene, e não só aferível no momento da separação. Necessário não olvidar, no entanto, que nenhuma norma explícita ou implicitamente submete o direito a alimentos a uma vida celibatária. Se existir a necessidade de alimentos de um e a possibilidade de prestar do outro, a vida sexual ou afetiva é área de indevassável intimidade. A castidade não integra o suporte fático do direito a alimentos, não se podendo perquirir o perfil moral do necessitado. Os alimentos não são uma recompensa a virtudes morais, possuindo natureza ético-social, e não ético-sexual. A exoneração não se pode dar pelo simples relacionamento amoroso da alimentada, se não ocorrer desnecessidade superveniente.
Permanece a carga ideológica no sentido de que pelo concubinato o encargo alimentar é transmitido ao companheiro, sucessão do dever de assistência que reforça a posição de dependência econômica da mulher. Essa postura, conjugada com a atual orientação dos juízes de negar pensão em decorrência de relação concubinária, leva a uma difícil situação quem necessita de alimentos. Mesmo cessado o concubinato, não é devolvido o direito de pleitear alimentos.
Essas situações, pinçadas como mera amostragem, evidenciam a necessidade de uma profunda reflexão, para que se aparem diferenças que não têm mais sentido na sociedade atual. Os operadores do Direito precisam ver que não pode persistir essa odiosa diferenciação de gênero, fazendo-se imperioso eliminar qualquer resquício de discriminação contra a mulher.
É necessária uma revisão crítica e uma nova avaliação valorativa do fenômeno social, para que se alcance a perfeita igualdade.
Publicado em 13/06/2010.
[1] Advogada especializada em Direito das Famílias e Sucessões
Ex-Desembargadora do Tribunal de Justiça do RS
Vice-Presidente Nacional do IBDFAM
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