Me aceita como eu sou!

Maria Berenice Dias[1]

 

Esta assertiva não é somente o refrão da música “De toda a cor”. É uma nova realidade, que merece ser festejada.

A partir do dia 13 de setembro do ano da graça de 2021, está assegurado o registro de nascimento de crianças intersexo. Pessoas que eram chamadas de intersexuais ou, mais antigamente, de hermafroditas.  Ou seja, é quem nasce com ambiguidade dos órgãos genitais: nem masculino e nem feminino.

Até esta data, como era feito o registro de nascimento de tais crianças? Simplesmente, elas não eram registradas. A justificativa era, no mínimo, risível. No formulário a ser preenchido, só havia campo para assinalar o sexo masculino ou feminino. Sem tal identificação, não era lavrado o registro.

Esta negativa encontrava respaldo na Resolução 1.664/2003, do Conselho Federal de Medicina (CFM), que define as normas técnicas necessárias para o tratamento de pacientes portadores de anomalia de diferenciação sexual. A normatização assegura uma conduta de investigação “precoce” com vista a uma definição adequada do gênero e “tratamento em “tempo hábil”,  para que se proceder a “definição final do sexo”. Nada mais, nada menos, do que a chancela para que sejam realizadas intervenções cirúrgicas de adequação genital em bebês.

Claro que, antes do nascimento, os pais sonham com uma menina ou um menino.  Escolhem um nome masculino ou feminino. Pintam o quarto da cor rosa ou azul.  Compram bonecas ou bolas. E grande é o susto quando descobrem que o filho é portador de uma “anomalia de diferenciação sexual”.

Diante da informação médica de que este é um mal que pode ser corrigido, sem que a criança, um dia, venha a saber que nasceu com genitália ambígua, os pais não titubeiam. Autorizam a cirurgia. Uma ou quantas forem necessárias. Claro que não lhes passe pela cabeça que o sexo escolhido pode não corresponder à identidade de gênero que o filho irá assumir. Nem se dão conta que esta decisão afronta o direito à identidade do próprio filho, insígnia maior do princípio que impõe  respeito à dignidade da pessoa.

Mas para os pais não havia mesmo outra saída. Apesar de constar na Declaração de Nascido Vivo (CNV) a identificação do sexo do recém-nascido como “ignorado”, os registradores não procediam ao registro de seu nascimento. Afinal, no formulário não havia espaço para tal anotação. Com este singelo argumento as crianças ficavam sem registro até os médicos escolherem um sexo para ele, mediante cirurgias mutilantes.

Mas há mais.  Durante todo este período, sem o registro, o filho não podia ser inserido no plano de saúde dos genitores e eles não teriam direito à licença maternidade e paternidade.

Diante de tal impasse, cinco Estados baixaram diferentes diretrizes para que os recém-nascidos pudessem ser registrados. Todas as normatizações claramente insatisfatórias, ao não admitirem que no assento de nascimento constasse “sexo ignorado”, conforme informado por quem havia realizado o parto.

Daí a iniciativa do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) que, diante da ausência de uniformidade regulatória, requereu ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que normatizasse o tema em âmbito nacional.  A solicitação foi acolhida por meio do Provimento 122, de 12 de agosto de 2021, e que entrou em vigor 30 dias após sua publicação.

A determinação é de que o assento de nascimento retrate a informação que consta na Declaração de Nascido Vivo (DNV). Se lá estiver escrito “sexo ignorado”, assim deve ser consignado no ato do registro.  Deste modo, além de assegurar o direito à identidade da criança, a determinação respeita o que foi declarado pelo médico, de que sua genitália não permite afirmar que se trata de um menino ou de uma menina.

Apesar de o Código Internacional de Doenças classificar “sexo indeterminado e pseudo-hermafroditismo” (CID 10 – Q56), ninguém necessariamente precisa se encaixar dentro de um binarismo no que diz com sua identidade sexual.  Muito menos é necessário fazer qualquer adequação corporal para assumir uma nova identidade sexual.

Em 10/04/2017, o Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento do Recurso Extraordinário nº 670.422, autorizou à população trans a alteração do prenome e da classificação do gênero em sede administrativa, mediante simples solicitação junto a qualquer Cartório do Registro Civil. Para tanto não é exigido, nada além da manifestação de vontade do declarante. O julgamento, de repercussão geral, ensejou a aprovação da Tese 761:

  1. I) O transgênero tem direito fundamental subjetivo à alteração de seu prenome e de sua classificação de gênero no registro civil, não se exigindo, para tanto, nada além da manifestação de vontade do indivíduo, o qual poderá exercer tal faculdade tanto pela via judicial como diretamente pela via administrativa; II) Essa alteração deve ser averbada à margem do assento de nascimento, vedada a inclusão do termo “transgênero”; III) Nas certidões do registro não constará nenhuma observação sobre a origem do ato, vedada a expedição de certidão de inteiro teor, salvo a requerimento do próprio interessado ou por determinação judicial; IV) Efetuando-se o procedimento pela via judicial, caberá ao magistrado determinar de ofício ou a requerimento do interessado a expedição de mandados específicos para a alteração dos demais registros nos órgãos públicos ou privados pertinentes, os quais deverão preservar o sigilo sobre a origem dos atos.

Esta decisão levou o Conselho Nacional de Justiça a editar o Provimento 73/2018, regulando o pedido de retificação. Apesar da absurda exigência de apresentação de 17 documentos – sem a dispensa do pagamento das custas – não é necessário apresentar laudos médicos que atestem a realização de cirurgia de redesignação de sexo ou laudo psicológico afirmando a transexalidade ou travestilidade.

Sem dúvida mais uma corajosa decisão da Corte Suprema de Justiça, que tem mostrado tanta sensibilidade ao tratar de temas que dizem com segmentos que, por puro preconceito, são condenados à invisibilidade.

Ora, se os transgêneros podem a qualquer tempo – ao menos a partir da maioridade civil –, por autodeclaração, promover a retificação do seu assento de nascimento, nada, absolutamente nada justifica impedir que crianças intersexo sejam registradas sem a identificação do sexo.

Para lá de desnecessária é a recomendação para que os registradores sugiram aos pais que escolham para o filho um nome comum aos dois sexos. Quer a pessoa busque a retificação de sexo para masculino ou feminino, pode pleitear a alteração do prenome. Do mesmo modo, caso não veja tal necessidade, por se identificar como uma pessoa intersexo, ainda assim poderá, a qualquer tempo, buscar somente a alteração do nome.

O fato é que, mais uma vez é da justiça o protagonismo de assegurar a inserção de indivíduos no âmbito da tutela jurídica do Estado. Diante da covarde omissão do legislador, que por medo de perder a reeleição, invoca preceitos alegadamente religiosos para fomentar a discriminação, assume o Judiciário a indispensável missão de colmatar as lacunas legais.

E que não se venha falar em ativismo judicial. Afinal, a ausência de lei não significa ausência de direito. Esta obrigação é imposta ao julgador, pelo art. 4º do Decreto 4.657/1943 – Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro: Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.

Isto é, na falta da lei, o juiz tem que julgar. Mas para isso é necessário que enxergue a vida como ela é. Sem a venda que encobre os olhos da deusa Themis, que serve de símbolo à justiça.

Ambiguidades genitais não podem impedir que uma pessoa se torne um sujeito de direito.

Agora, a significativa parcela de pessoas intersexo tem reconhecido o direito de serem aceitos como são.

Publicado em 16/08/2021.

[1] Advogada especializada em Direito das Famílias, Sucessões e Direito Homoafetivo.

Vice Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM)

Desembargadora aposentado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.