Manifesto sobre o estupro
Maria Berenice Dias[1]
O combate à violência contra as mulheres tem sido uma pauta político-jurídica permanente do movimento de mulheres no Brasil, chamando a atenção dos poderes e exigindo ações públicas de contenção à violência. A luta pela igualdade ajudou a consagrar constitucionalmente o princípio da não-discriminação em função do sexo e o entendimento de que a violência contra as mulheres é uma violação aos direitos humanos. Mas a consagração desses direitos não tem recebido garantia de cumprimento de parte dos operadores do Direito, que têm dificuldade de assimilar e compreender as questões de gênero. Exemplo dessa resistência é a decisão do Supremo Tribunal Federal que criou o “estupro simples” e considerou hediondo apenas o estupro “qualificado”, aquele que resulta em lesão grave ou morte da vítima. Essa decisão foi imediatamente gerando tão forte corrente jurisprudencial, que levou o 4º Grupo Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul a conceder revisão criminal a uma condenação imposta anteriormente. Ainda que a Lei dos Crimes Hediondos (Lei nº 8.072/90) seja considerada inconstitucional por corrente doutrinária e jurisprudencial – sob o fundamento de violar princípios constitucionais penais, como o da individuação da pena – sua constitucionalidade foi reafirmada pelo próprio Supremo Tribunal Federal, continuando no ordenamento jurídico. Tal Lei elenca como hediondo o crime de estupro, uma das mais graves violências cometidas contra as mulheres, pois violadora de mais de um bem juridicamente tutelado, como a liberdade sexual e a integridade física, emocional e mental. A violência na prática do ato sexual indesejado é a essência do crime, que não tem qualificativos de maior ou menor hediondez, pois pressupõe a imposição ou anulação da vontade de uma pessoa. A posição da jurisprudência nacional ao fazer a distinção/graduação entre estupro “simples”, não-hediondo, e qualificado criou uma hierarquia que não está na Lei, banalizando a violência contra a mulher. Ao ignorar que o estupro é sempre um crime hediondo, beneficiou o estuprador e penalizou a vítima. É uma postura conservadora e sexista, porque se limitou a desqualificar um delito cometido contra as mulheres, tratando-o de forma preconceituosa e discriminatória. Ao não aplicar a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, negou eficácia constitucional a instrumento internacional de direitos humanos, em especial dos direitos humanos das mulheres, consagrando a lógica do casuísmo androcêntrico.
Essa decisão pode ser considerada uma ofensa à luta das mulheres no Brasil, pois representa verdadeiro retrocesso contra as conquistas femininas, devendo ser aceita como um desafio, não só pelo movimento de mulheres, mas pela sociedade, para que a Lei dos Crimes Hediondos, enquanto não revogada, seja cumprida, porque é necessário dar um basta à discriminação e à violência contra as mulheres.
Publicado em 11/07/2003.
[1] Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul
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