Investigação de paternidade, prova e ausência de coisa julgada material
Maria Berenice Dias[1]
Das demandas que transitam nas Varas de Família, talvez seja a investigatória de paternidade a que apresente maiores dificuldades no campo probatório. Por outro lado, foi a ação que mais se beneficiou com a evolução – quase revolução – ocorrida a partir da descoberta dos indicadores genéticos, que trouxeram significativa contribuição para a identificação das relações de parentesco.
A primeira questão que se põe diz com a definição da causa de pedir como elemento identificador da ação. Mas não se pode deixar de reconhecer que o fato gerador do direito é, ao fim e ao cabo, a existência de uma relação sexual entre os genitores do investigante. Como esse tipo de relacionamento ocorre, ordinariamente, de forma reservada e a descoberto de testemunhas, é inquestionável que a prova do fato constitutivo que sustenta a ação se torna particularmente dificultosa. Trata-se de probação de ato praticado por terceiros, do qual o autor não foi partícipe, mas quase que mera “consequência”, o que mais aumenta a dificuldade de amealhar provas.
Por tais peculiaridades, nessa espécie de demanda, é necessário equacionar a distribuição dos encargos probatórios feita pelo art. 333 do CPC. Não se pode impor ao autor que faça prova do fato constitutivo de seu direito (inciso I), relegando-se ao demandado a também impossível demonstração de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito alegado na inicial (inciso II). Se é difícil provar a ocorrência da relação sexual, é quase impossível evidenciar que ela não existiu. Assim, a prova testemunhal sempre foi usada para apontar ocasiões e identificar situações em que o par foi visto em atitudes que insinuassem a existência de um vínculo afetivo, para concluir-se sobre a possibilidade de ocorrência de um contato sexual. A tese defensiva, de outro lado, muitas vezes centrava-se na arguição da exceptio plurium concubentium, pela qual o demandado, apesar de reconhecer a mantença de relacionamento íntimo com a mãe do investigante, buscava evidenciar a concomitância de contatos sexuais com outros parceiros, linha argumentativa que sempre restava por denegrir a figura materna, como a apenar o livre exercício da sexualidade.
Além da prova testemunhal, quase nada mais havia. A prova pericial, que, em um primeiro momento, identificava exclusivamente os grupos sanguíneos, era de pouca valia para o reconhecimento da filiação. Porém, a evolução científica veio a revolucionar a investigação dos vínculos parentais, por meio de métodos cada vez mais seguros de identificação dos indicadores genéticos. Tornou-se meio probatório de muita utilidade nas ações investigatórias de paternidade. Os índices de certeza de tais exames, por demais significativos, acabaram inclusive por devolver a liberdade sexual à mulher, já que perdeu prestígio a alegação de vida promíscua da mãe do investigante como fato impeditivo à identificação da paternidade.
No entanto, a prova pericial apresenta dupla ordem de dificuldade. Primeiro, necessita que haja a participação do demandado para sua realização. O dever de ambas as partes de colaborar com o Poder Judiciário (art. 339 do CPC) e de proceder com lealdade e boa-fé (inciso II do art. 14 do CPC) não permite impor a alguém que se submeta coactamente à coleta de sangue. Não há como vencer a resistência do investigado, sob pena de afrontar-se o princípio do respeito à integridade física do cidadão, que dispõe de resguardo constitucional.
O outro empecilho que se vislumbra é de ordem pragmática. O elevado valor do exame de DNA, método que apresenta maior índice de certeza, não é custeado pelo Estado. Não dispondo as partes de recursos para arcar com o pagamento dos testes, tem-se dispensado a perícia, fato que resta por fragilizar o contexto probatório, o que, muitas vezes, deságua no desacolhimento da ação.
Mas não são apenas essas as dificuldades que se apresentam. Em se tratando de ação que diz com o estado das pessoas, envolvendo direito personalíssimo, não se operam os efeitos confessionais decorrentes da revelia. Porém, a omissão do réu, negando-se a se submeter ao exame, não pode vir em seu benefício. Em vez de onerá-lo com a presunção de veracidade dos fatos articulados na inicial, apena-se o autor com um juízo de improcedência da ação por insuficiência de prova.
De qualquer forma, o que descabe é a falta de provas (decorrente quer da omissão do demandado, quer do fato de as partes militarem sob o pálio da assistência judiciária gratuita) vir a gerar definitivamente a impossibilidade de alguém buscar a identificação de seu vínculo familiar. Quando não logra o autor provar os fatos constitutivos de seu direito, ou seja, que é filho do réu, o desacolhimento da ação não dispõe de conteúdo declaratório de que o réu não é o pai do autor. A ausência de elementos de convicção no juízo criminal enseja a absolvição. Ainda que não haja essa possibilidade na esfera cível, a falta de probação não pode levar a um juízo de improcedência, mediante sentença definitiva, conforme preconiza Humberto Theodoro Júnior.[2]
Há antecedentes legais. Na ação civil pública (art. 16 da Lei nº 7.347/85) e nas ações coletivas de que trata o Código de Defesa do Consumidor (art. 103 da Lei nº 8.078/90), está, de forma expressa, afastada a eficácia erga omnes quando a ação é julgada improcedente por ausência de prova, autorizando qualquer legitimado a intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova. Mesmo que ditas disposições sejam tidas como verdadeira excrescência ao princípio da estabilidade jurídica, não se pode deixar de invocar como precedentes a autorizarem o afastamento dos efeitos da coisa julgada quando a ação diz com o estado da pessoa.
A omissão do próprio demandado ou do Estado em viabilizar a realização da prova não permite a formação de um juízo de convicção, a ser selado pelo manto da imutabilidade, de que o réu não é o pai do autor. O que ocorreu foi mera impossibilidade momentânea de identificar a existência ou concluir pela inexistência do direito invocado na inicial. Porém, a omissão probatória, não podendo ser imputada ao investigante, não pode apená-lo com uma sentença definitiva.
Conforme Chiovenda, o processo não se limita à definição dos direitos dos litigantes, tendo por objetivo a atuação da vontade da lei. Mas o interesse público na composição dos conflitos não deve suplantar o interesse de um menor em identificar seus vínculos familiares. De forma contundente, a Constituição Federal outorga especial proteção à família (art. 226), proclamando como dever do Estado assegurar à criança a convivência familiar (art. 227). De outro lado, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90) decanta que o direito personalíssimo de reconhecimento do estado de filiação é indisponível e imprescritível (art. 27).
Tais interesses, por evidente, se sobrepõem ao instituto da coisa julgada, que, mesmo tendo assento constitucional, não pode impedir o livre acesso à Justiça para o reconhecimento da filiação, pois se trata de direito fundamental à identidade. A temporária impossibilidade probatória ou, a negligência do réu em subsidiar a formação de um juízo de certeza para o julgamento não pode gerar certeza jurídica.
Desse modo, é imperativo repensar a solução que vem sendo adotada ante a ausência de probação nas ações de investigação de paternidade. Descabe um juízo de improcedência do pedido, a cristalizar, como coisa julgada, a inexistência do estado de filiação. O que ocorreu foi falta de pressuposto ao eficaz desenvolvimento da demanda, ou seja, impossibilidade de formação de um juízo de certeza, a impor a extinção do processo nos precisos termos do inciso IV do art. 267 do CPC. Tal solução, que, tecnicamente, constitui uma sentença terminativa, viabiliza a possibilidade de a parte retornar ao Judiciário, munida de melhores e mais seguras provas, para a identificação da verdade e o estabelecimento do vínculo mais caro ao ser humano.
Entre a segurança social que a coisa julgada empresta e o direito fundamental à identidade do indivíduo, é imperativo invocar o princípio da proporcionalidade e avaliar o que dispõe de mais valia.
Publicado em 01/09/2013.
[1] Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul
Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM
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[2] THEODORO JÚNIOR, Humberto. 2ª ed. Curso de Direito Processual Civil. Forense: 1990. v. I. p. 571.