Incesto: um pacto de silêncio
Maria Berenice Dias[1]
De um modo geral, a forma de chamar a atenção sobre alguma coisa – principalmente de fatos que não se quer ver ou de realidades que não se quer enxergar – é trazer números ou relatar casos concretos.
No entanto, em tema ligado à sexualidade, os dados jamais espelham a verdade. Quando o assunto se refere a crimes sexuais, crimes que acontecem dentro do lar, crimes cometidos contra crianças por pais, padrastos, tios, avós, etc., os números são sempre subdimensionados.
Trata-se de fato cujo nome ninguém sequer gosta de pronunciar. Aliás, é delito que nem nome tem e até parece que não existe, pois nem se encontra tipificado no Código Penal.
Este crime de que ninguém fala, que ninguém quer ver chama-se incesto!
O abuso sexual contra crianças e adolescentes é um dos segredos de família mais bem guardados, sendo considerado o delito menos notificado. Tudo é envolto em um manto de silêncio, por isso é muito difícil estabelecer uma estimativa que permita uma idéia a respeito de números.
Assim, é difícil se ter uma idéia dessa perversa realidade.
Os americanos, que têm a mania de proceder a levantamentos e fazer estatísticas, avaliam que apenas 10 a 15% dos casos de incesto são revelados. Ainda assim, os números são chocantes: 20% das mulheres e entre 5 a 10% dos homens foram vítimas de abuso sexual na infância ou na adolescência. Outro dado: o menor número de relações abusivas envolvendo meninos como vítima decorre da dificuldade da denúncia, em virtude da discriminação, ou seja, a vítima pode ser rotulada de homossexual.
Não há nenhum motivo para acreditar que esses números não refletem a realidade brasileira. Aqui, só há informações a partir do registro de ocorrências levadas a efeito depois da denúncia, e os dados apurados não são menos impactantes:
- 90% dos delitos são cometidos por homens que as vítimas amavam, respeitavam, neles confiando;
- 69,6% dos agressores é o próprio pai;
- 29,8% é o padrasto;
- 0,6% é o pai adotivo;
- não há registro de abuso por parte de pais homossexuais.
Esses números acabam com alguns mitos: nem o vínculo de sangue nem a orientação sexual têm qualquer significado. Também revelam que o perigo está muito mais dentro de casa, e as crianças são sempre advertidas a terem cuidado com os estranhos: não falar com ninguém na rua, não aceitar balas ou bebidas e muito menos carona de quem não se conhece.
Não faz parte de nossa cultura prevenir os filhos que não deixem ninguém fazer com eles o que os namorados fazem. Sequer as inadequadas cenas de sexo explícito que invadem diariamente a televisão são aproveitadas para fins educacionais. Fica um clima de constrangimento, um silêncio embaraçoso, e a cena é chancelada como aceitável. Como a criança não tem capacidade para estabelecer limites, não consegue reconhecer quem são os atores que podem participar dessas encenações na vida real.
Cabem, agora, os exemplos prometidos.
Denunciado o incesto, normalmente a vítima é institucionalizada enquanto o abusador fica solto, à espera do julgamento do processo criminal, pois, quando o indiciado tem residência fixa e trabalha, não permanece preso durante a instrução do processo.
O sentimento da vítima torna-se bastante ambivalente: sente-se culpada, pois, de um modo geral, é pela mãe responsabilizada pelo esfacelamento da família ou é acusada de ter provocado o abuso. Aliás, essa é a forma que a genitora encontra de livrar-se da culpa por não se ter dado conta do que estava acontecendo. É mais fácil culpar a filha.
Além do sentimento de culpa, surge na vítima a percepção do abandono, pois é ela quem perde a família. Fica em um abrigo enquanto o abusador, muitas vezes, continua convivendo com a família. Claro que isso gera na vítima uma enorme revolta, pois tem a sensação de ser a única punida: está presa enquanto o seu agressor está solto.
Dois episódios verdadeiros retratam as seqüelas geradas por essa situação.
Primeiro exemplo. Institucionalizada a vítima, o pai continuou solto, convivendo com a mãe e as outras irmãs. A vítima ficou com um enorme sentimento de revolta, porque se sentiu a única punida, além de ter a certeza de que o genitor passou a manter contato sexual com as outras filhas. Após um ano e meio em que permaneceu abrigada, seu pai foi condenado por estupro presumido, à pena de seis anos. Mas ela sequer tomou consciência dessa condenação, pois perdeu completamente o controle mental e até hoje está internada em um nosocômio por distúrbios psíquicos. O réu, depois de cumprir uma parcela da pena, foi solto e voltou a residir com a família.
No segundo exemplo, a filha também foi institucionalizada, e a mãe separou-se do pai. Ele acabou absolvido por falta de provas, fato, aliás, dos mais comuns. Por culpar a filha, a mãe abandonou-a no abrigo onde estava internada. Quando completou 18 anos, precisou sair do abrigo e, como não tinha para onde ir, foi procurar o genitor – o único referencial de afeto que lhe sobrou, achando que saberia defender-se dele.
Esses relatos levam a questionar se institucionalizar a vítima é a solução. Será que, nessa espécie de delito, a forma de punir o réu é colocá-lo na cadeia ou a melhor saída é punir a vítima afastando-a da família?
Quem sabe a solução não esteja na chamada justiça restaurativa?
Já está mais do que provado que o encarceramento não é a forma de recuperar ninguém, principalmente em se tratando de delito sexual contra menores. São os réus discriminados pela população carcerária, que tem um código de honra e não tolera a convivência com eles.
O indispensável que não só o réu como também a vítima e todos os componentes da família sejam submetidos a acompanhamento psicológico. Neste tipo de delito, das poucas certezas que existe é que a vítima certamente será um abusador.
Evidentemente, a solução não é fácil.
Todos continuam a tratar da família como comercial de margarina, o modelo de família feliz, bem-estruturada, a sagrada família, que deve ser preservada como a célula mãe da sociedade.
Por ser praticado no silêncio do lar, o incesto é um crime que todos escondem, parece ser um fato sobre o qual ninguém pode falar, que não se deve discutir. É um crime que todos insistem em não ver, pois ninguém acredita que existe.
Está na hora de acabar com o pacto de silêncio e enfrentar esse que é um dos crimes mais democráticos, pois atinge a família de todas as classes sociais e níveis culturais.
Nesse tipo de delito, a Justiça acaba sendo conivente com o infrator, pois sempre procura culpabilizar a vítima, e o altíssimo índice de absolvições gera a consciência da impunidade. O juiz quer testemunhas para ter certeza da existência de crime que acontece entre quatro paredes e busca provas materiais quando não há vestígios. Não dá valor aos laudos sociais e psicológicos que, de forma eloqüente, mostram que os danos psíquicos são a mais evidente prova da prática do crime.
Há uma enorme dificuldade de emprestar credibilidade à palavra da vítima. Quando são crianças, costuma-se pensar que elas usam da imaginação ou que foram induzidas pela mãe a mentir. Quando são adolescentes, acredita-se que elas provocaram o abusador, seduziram-no, insinuaram-se a ele, justificando, assim, a prática do delito. Mostram os juízes uma certa excitação ao inquirirem as vítimas e sempre perguntam se elas sentiam prazer, como se esse fato tivesse alguma relevância para a configuração do delito. Com isso, a responsabilidade pelo crime passa a ser atribuída à vítima, e não ao réu. E, de uma maneira surpreendente, a absolvição por falta de provas é o resultado na imensa maioria dos processos.
Olvidam-se todos que o incesto é um crime cujo início é marcado por uma relação de afeto, um vinculo de confiança. São práticas que começam com carinhos, toques e carícias que a vítima recebe de uma pessoa que ela ama, que ela respeita e à qual deve obediência.
Todas as pessoas gostam de carinho, principalmente crianças, que não têm como imaginar a intenção de ordem sexual. Afinal, criança não tem malícia. Aliás, faz parte de sua vivência ver gestos afetivos na televisão, nos filmes, nas praças, e isso gera uma erotização prematura da vítima, que é despertada precocemente para a sexualidade. A correspondência afetiva e até a excitação e o orgasmo, não podem ser chamados de prazer sexual, pois fruto de estimulação mecânica. Tais ocorrências não podem ser atribuídas à vítima como prova de conivência ou de concordância. Ao contrário, quando tal ocorre o grau de perturbação é ainda maior. Ela sente vergonha e culpa, considera-se traída não só pelo abusador, mas também por seu próprio corpo.
Ao depois, tal delito não é praticado com o uso de violência, e, quando a vítima se dá conta de que se trata de uma prática erótica, simplesmente o crime já se consumou. A vítima é pega de surpresa e surge o questionamento de quando foi que tudo começou, vindo junto a vergonha de contar o que aconteceu, o sentimento de culpa de, quem sabe, ter sido conivente. Surge, então, o medo de não ser acreditada. Afinal, o agressor é alguém que ela quer bem, que todos querem bem, que a mãe e toda a família amam e respeitam, pois geralmente é um homem honesto e trabalhador, sustenta a família, é benquisto na sociedade e respeitado por todos. Quem daria credibilidade à palavra da vítima?
O abusador passa a cobrar o silêncio e a cumplicidade da vítima, colocando em suas mãos a mantença da estrutura da família e a sua própria liberdade. Leva-a a acreditar que a genitora vai ficar com ciúme, pois ele a ama mais do que à mãe, e ninguém vai entender esse amor “especial”. Muitas vezes, a vítima se sujeita em virtude da ameaça do abusador de que ele passará a manter relações incestuosas com as outras filhas menores, o que inibe a denúncia. Resta o medo de provocar o esfacelamento da família e, com isso, gerar dificuldades a todos. Receia ser afastada de casa, tendo de ir para um abrigo. Também teme ser acusada de ter seduzido o agressor, ser questionada de por que não denunciou antes. Assim, cala por medo de ser considerada culpada pelo que aconteceu.
No atual processo penal, a vítima é ouvida mais de uma vez e, em cada depoimento, revive os fatos, sofrendo nova violência. É revitimizada cada vez que precisa relatar perante estranhos tudo o que aconteceu. No fim, como já está cansada de repetir a mesma história, de ser sempre perguntada sobre o que quer esquecer, mente para terminar logo com tudo aquilo. Essas contradições geralmente ensejam um juízo de absolvição por ausência de prova…
Assim, mesmo vencendo todas essas barreiras, a denúncia do incesto não leva nem à prisão provisória do abusador nem muito menos garante sua condenação.
Talvez não caiba aqui perguntar por que ocorre o incesto. Mas é óbvio que o modelo da família patriarcal, em que o homem exerce o poder, e todos os seus membros lhe devem obediência, facilita a ocorrência do incesto, que acaba por merecer a chancela da própria família, da sociedade e do Estado. Concorre também para isso o sentimento de menos valia que sempre cercou a mulher, historicamente considerada propriedade do homem.
Ainda que seja uma prática que acompanha a história da humanidade, parece estar havendo um aumento da violência sexual incestuosa. Essa impressão, no entanto, não é verdadeira. O que está ocorrendo é uma maior visibilidade da violência contra a mulher.
A condição de absoluta sujeição a que sempre foram submetidas as mulheres fez com que todos os temas do universo feminino também ficassem submersos. A mulher foi educada para ser obediente, dócil, recatada. Foi criada para casar, sabendo que deveria sempre ceder ao desejo sexual do marido, submetendo-se ao débito conjugal.
Como as mulheres sequer tinham acesso à educação, não havia como seu interior ser revelado. A participação das mulheres no mundo das letras permitiu que elas passassem a denunciar a violência sexual de que historicamente sempre foram vítimas, inclusive desde a tenra idade no ambiente doméstico. Por isso, não se pode negar o decisivo papel do movimento feminista, que, ao buscar a igualdade, fez emergir tudo o que havia de podre no reinado feminino do lar.
Com o desenvolvimento da sociedade, o homem passou a ter maior participação no cuidado com os filhos, e essa aproximação vem despertando o sentimento paternal de modo mais intenso, o que leva ao afastamento do desejo de ordem sexual.
Mas algo precisa ser feito.
Está na hora de romper o pacto de silêncio.
É necessário por um fim à erotização precoce da infância deve acabar, pois isso banaliza a sexualidade e torna as crianças presas mais fáceis do abuso sexual.
E a responsabilidade é nossa.
Quando falo nossa, estou referindo-me a todos que participam desta família, que se chama IBDFAM e que conseguiu mudar o perfil do Direito de Família. Pluralizamos o próprio conceito de família. Passou-se a falar em Direito das Famílias, para mostrar que merecem reconhecimento todas as estruturas de convívio marcadas pelo vínculo de afetividade.
Resgatamos a imagem do profissional que lida com a Família. Fomos nós quem mostrou a necessidade de trazer a interdisciplinaridade para dentro da Justiça, como instrumento indispensável para lidar com o ramo mais humano do Direito.
Abraçamos inúmeras bandeiras, mudamos muitos conceitos, trouxemos a Justiça para bem mais perto da realidade da vida.
Agora temos de arrancar de vez a venda da Justiça.
É preciso tratar não só com a família que aparece nas propagandas de margarina: todos alegres e felizes desde manhã cedo… Precisamos chamar a atenção da sociedade de que a família não é exclusivamente um lugar de afeto, um lugar seguro, a sagrada família, que a todos protege. É necessário desencadear uma grande campanha de conscientização da própria família para os problemas que existem dentro da família.
Vamos romper o círculo do silêncio.
A Constituição Federal assegura, com absoluta prioridade, proteção integral a crianças e adolescentes. Isso significa que elas se tornaram sujeitos de direito, isto é, têm o direito de serem ouvidas, de serem acreditadas. E a proteção integral nem sempre está garantida quando se fecha a porta da casa.
É preciso sensibilizar os meios de comunicação, capacitar professores, realizar congressos, cursos e palestras, fazer campanhas nas escolas.
Enquanto a sociedade não acreditar que existe o abuso sexual intrafamiliar, não vai sequer enxergar o que muitas vezes está na sua frente. A professora não vai perceber o que está retratado em um desenho, nem a mãe vai dar a devida importância a uma lágrima. Ninguém vai saber buscar ajuda.
É mister dar efetividade à determinação do Estatuto da Criança e do Adolescente que torna obrigatória a notificação, ao Conselho Tutelar, de casos de maus tratos contra crianças e adolescentes (ECA, art. 13). A omissão de médicos e professores constitui infração administrativa sujeita a pena de multa (ECA, art. 245).
Mas é necessário urgentemente proibir os conselheiros tutelares e os policiais civis ou militares de ouvirem as vítimas. Não devem chamá-las, não podem inquiri-las. De todo descabido que crianças e adolescentes alvo de abuso sexual sejam questionadas na sede dos conselhos ou no recinto da delegacia, enquanto, muitas vezes, o abusador aguarda do lado de fora. A vítima terá de enfrentá-lo na saída, pois vão voltar para casa. Ela não sabe se a mãe vai dar crédito às suas palavras. Assim, ao receber qualquer denúncia de abuso os conselheiros tutelares precisam encaminhar a vítima ao Juizado da Infância e Juventude. A polícia, ainda que instaure o inquérito policial, não deverá ouvi-la no recinto da delegacia. Deve solicitar que ela seja ouvida por um técnico e em ambiente adequado.
Também é necessário capacitar os conselheiros tutelares, pois eles precisam acompanhar de perto todos os casos em que há qualquer indício envolvendo abuso sexual. Como inúmeras vezes não ocorre a prisão do abusador nem a vítima é institucionalizada, os conselheiros precisam fazer visitas domiciliares regulares, pois as vítimas precisam sentir-se seguras.
Recomendável a criação de juizados ou varas especializadas para os processos em que crianças e adolescentes são vítimas de abuso sexual. Essas varas devem centralizar todas as demandas que decorrem desse fato, não só a ação criminal contra o agressor. Também ali cabe tramitar os processos de competência do ECA bem como os afeitos à jurisdição de Família: destituição do poder familiar, guarda, visitas, alimentos, etc. Mas é preciso qualificar os magistrados, agentes do Ministério Público e defensores para trabalharem nesses juizados especializados.
Cabe ao IBDFAM recomendar aos Tribunais de Justiça de todos os Estados a instalação desses juizados bem como, a exemplo do que já existe no Rio Grande do Sul, da sala denominada “Depoimento sem Dano”. Trata-se de um ambiente adequadamente equipado, em que a vítima é ouvida por um psicólogo ou assistente social. O depoimento é acompanhado por vídeo, na sala de audiência, pelo juiz, pelo representante do Ministério Público, pelo réu e seu defensor, que dirigem as perguntas, por meio de uma escuta, a quem está ouvindo a vítima e insere o questionamento durante a conversa. O DVD com o depoimento é anexado ao processo. Assim, a vítima é ouvida uma única vez e seu depoimento pode ser assistido inclusive no Tribunal quando do julgamento do recurso.
As vítimas sabem que sua manifestação está sendo acompanhada, e o mais surpreendente desta experiência é que elas, ao final, sempre acabam fazendo um pedido, um apelo: pedem justiça!
A este pedido não podemos deixar de responder.
A responsabilidade de dar uma resposta é de todos nós: precisamos acabar com o mito do silêncio, com a consciência da impunidade, com a imagem idealizada da família feliz.
Vamos continuar a fazer o que fizemos até agora desde que resolvemos criar o IBDFAM: lutando por uma Justiça mais justa.
Publicado em 24/04/2007.
[1] Desembargadora do Tribunal de Justiça do RS
Vice-Presidente Nacional do IBDFAM