Homoafetividade: passado, presente e futuro

Maria Berenice Dias[1]

 

 

Sexo todas as pessoas ou praticam ou tem vontade de praticar. Mas é algo sobre o qual todos têm dificuldade de falar.

Se parece constrangedor abordar o tema da sexualiadade, que dirá o da homossexualidade. Para subtrair um pouco o estigma desta expressão, melhor chamar os vínculos de pessoas do mesmo sexo de homoafetividade. Ressalta mais a natureza afetiva do que meramente sexual da união. Certamente foi a construção deste conceito que permitiu seu reconhecimento como entidade familiar, a merecer ser chamada de família.

O fato é que o amor entre iguais é tão antigo quanto a própria humanidade.

Na Idade Antiga era bem aceito e até enaltecido e glorificado.

O repúdio veio com o cristianismo, que aceitava somente a família constituída pelos sagrados laços do matrimônio. Daí a abominação que caiu sobre os homossexuais e que só agora o Papa Francisco vem tentando amenizar.

Tanto o estado como todas as religiões, credos e crenças sempre tentaram amarrar e eternizar os vínculos afetivos – ao menos os heterossexuais. Para isso foi criado o casamento. Simples contato considerado uma instituição, um sacramento, com a só finalidade de impor ao par o dever de se multiplicar até a morte.

O exercício da sexualidade era um dever – daí a expressão débito conjugal. Inclusive, há decisões judiciais que simplesmente anulam o casamento quando ele não se “consumou”, ou seja, se um – normalmente a mulher – se nega a fizer sexo.

Como as uniões homossexuais eram estéreis – ao menos até o surgimento das técnicas de reprodução assistidas – sempre foram rejeitadas, consideradas crime, pecado, uma abominação ou uma aberração.

Por isso toda e qualquer pessoa e a própria família se arvoram o direito de rejeitar gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais. Parece que todos têm o direito de puni-los. A tendência é assistir e até aplaudir manifestações homofóbicas.

Basta lembrar que na maioria dos países a homofobia não é punida. Ao contrário, 78 países consideram a homossexualidade crime e sete deles países preveem a pena de morte.

Faz escassos 20 anos que a Organização Mundial de Saúde retirou a homossexualidade do rol das doenças.  Deixou de ser considerada um transtorno mental quando da edição do DSM III, no ano de 1973 e no CID 10, de 1990. Assim, não mais se pode falar em homossexualismo.

Data de 1999 a Resolução do Conselho Federal de Psicologia que proíbe a promessa de tratamento para reversão da orientação sexual. E, graças às manifestações do povo, no mês de junho, foi arquivado o projeto de lei, denominado de cura gay, que procurava revogar a resolução.

De qualquer modo, historicamente as uniões homoafetivas sempre foram condenadas à invisibilidade, alijadas da tutela jurídica.

Até 25 anos atrás não eram admitidas, não eram reconhecidas em nenhum país do mundo.

Os parceiros, ainda que vivendo juntos por décadas, nunca tiveram qualquer direito. Quando um morria o outro era alijado da casa, do patrimônio, de qualquer direito. Tudo ficava com os parentes, ainda que distantes. Muitos eram expulsos do lar comum ao retornar do enterro do parceiro.

Foi a Dinamarca, no ano de 1989, que admitiu a união civil, mas ainda fora do direito das famílias.

Há 15 anos os homossexuais não podiam casar. Tal só foi possível a partir de 2000, na Holanda.

No Brasil, os marcos temporais são os mesmos.

Há 25 anos nenhum direito era concedido. Sequer eram aceitas as ações em juízo, sob a alegação de impossibilidade jurídica do pedido.

A primeira decisão que reconheceu a existência de uma sociedade de fato foi do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, no ano de 1989. Essa orientação foi confirmada pelo STJ em 1998.

Data do ano de 2000, a primeira decisão, que foi da justiça gaúcha, admitindo a união como uma entidade familiar.

Somente em 2011 o Supremo Tribunal Federal reconheceu a união homoafetiva como união estável, com os mesmos direitos e obrigações da união heteroafetiva.

E neste ano de 2013 é que o Conselho Nacional de Justiça impediu que se negasse aceso ao casamento.

Agora 14 países já admitem o casamento, todos por força de lei. Só no Brasil tal possibilidade decorre de decisão da justiça.

Daí a necessidade de uma legislação, não só para conceder direitos, mas também para criminalizar a homofobia. Este foi o compromisso assumido pela OAB que elaborou o Estatuto da Diversidade Sexual e coordena um movimento nacional de coleta de assinaturas para apresentá-lo por iniciativa popular. Mas para isso é necessário colher cerca de um e meio milhão de assinaturas.

De há muito o conceito de família se desatrelou do conceito de casamento. Agora família é um conceito plural, englobando arranjos de convivência sem o selo do casamento e independente da identidade sexual de seus membros.

Afinal, não é mais possível viver em um mundo que exclua pessoas do direito à felicidade. Esta é a finalidade da sociedade e a razão de ser do estado.

Mas os ventos são favoráveis. Se o século XX foi o século das mulheres, o século XXI entrará para a história como o século em que a população LGBT teve seus direitos garantidos.

 

Publicado em 21/09/2013.

[1] Advogada

Presidenta da Comissão da Diversidade sexual da OAB

Vice-Presidenta Nacional da IBDFAM