Homoafetividade como Direito

Maria Berenice Dias[1]

 

 

 

Sumário: 1. Família e afetividade. 2. Liberdade e igualdade. 3. Direito à sexualidade. 4. Homoafetividade. 5. Uniões homoafetivas. 6. Homoparentalidade. 7. Avanços jurisprudenciais.

1    Família e afetividade

Sempre existiu a tentativa de engessar os vínculos afetivos, limitando o exercício da sexualidade ao casamento. Varia segundo valores culturais dominantes em cada época. No mundo ocidental, tanto o Estado como a Igreja identificam o casamento ora como sacramento, ora como uma instituição um contrato. É regulamentado exaustivamente: impedimentos, celebração, efeitos de ordem patrimonial e obrigacional. A própria postura dos cônjuges é determinada pela lei, que impõe deveres e assegura direitos de natureza pessoal, como, por exemplo, o dever de fidelidade.

O casamento inicialmente era indissolúvel. A família consagrada pela lei tinha um modelo conservador: entidade matrimonial, patriarcal, patrimonializada, indissolúvel, hierarquizada e heterossexual. O vínculo que nascia da livre vontade dos nubentes era mantido, independente e até contra a vontade dos cônjuges. Mesmo após o advento da Lei do Divórcio, a separação e o divórcio só eram deferidos quando decorridos determinados prazos ou mediante a identificação de um culpado.

A sacralização do casamento e a tentativa de sua mantença como única estrutura de convívio lícita e digna de aceitação fez com que os relacionamentos chamados de marginais ou ilegítimos, por fugirem do molde legal, não fossem reconhecidos, sujeitando seus atores a severas sanções.

Os vínculos afetivos extramatrimoniais, ao não serem admitidos como família, eram condenados à invisibilidade. Ainda assim, existiam. Chamada a Justiça para solver as questões de ordem patrimonial, com a só preocupação de não chancelar o enriquecimento sem causa, primeiro foi identificada uma relação de natureza trabalhista, e só se via labor onde existia amor. Depois, a jurisprudência passou a permitir a partição do patrimônio segundo o Direito das Obrigações, considerando uma sociedade de fato, o que nada mais era do que uma sociedade de afeto.

Mesmo quando a Constituição inseriu no conceito de entidade familiar o que chamou de união estável, houve resistência em migrar as demandas para o âmbito do Direito das Famílias. A dificuldade de as relações extramatrimoniais serem identificadas como entidades familiares revelava a tendência de sacralizar o conceito de família. Mesmo inexistindo qualquer diferença estrutural com os relacionamentos oficializados, a sistemática negativa de estender a estes novos arranjos os regramentos do direito familiar, nem ao menos por analogia, mostra a tentativa de preservação da instituição da família dentro dos padrões convencionais. Porém, como adverte Paulo Lôbo, “não há necessidade de degradar a natureza pessoal de família convertendo-a em fictícia sociedade de fato, como se seus integrantes fossem sócios de empreendimento lucrativo”.[2]

O Direito das Famílias, ao receber o influxo do Direito Constitucional, foi alvo de profunda transformação, que ocasionou verdadeira revolução ao banir discriminações no campo das relações familiares. “Num único dispositivo o constituinte espancou séculos de hipocrisia e preconceito”.[3] Foi derrogada toda a legislação que hierarquizava homens e mulheres, bem como a que estabelecia diferenciações entre os filhos pelo vínculo existente entre os pais. Também se alargou o conceito de família para além do casamento.

A Constituição da República, ao outorgar proteção à família, independentemente da celebração do casamento, vincou um novo conceito de entidade familiar, albergando vínculos afetivos outros. É meramente exemplificativo o enunciado constitucional ao fazer referência expressa à união estável entre um homem e uma mulher e às relações de um dos ascendentes com sua prole. O caput do art. 226 é, consequentemente, cláusula geral de inclusão, não sendo admissível excluir qualquer entidade que preencha os requisitos de afetividade, estabilidade e ostensibilidade.[4]

Pluralizou-se o conceito de família, que não mais se identifica pela celebração do matrimônio. Não há como afirmar que o § 3º do art. 226, ao mencionar a união estável formada entre um homem e uma mulher, reconheceu somente esta convivência como digna da proteção do Estado. O que existe é uma simples recomendação em transformá-la em casamento. Não está dito que não existirem entidades familiares formadas por pessoas do mesmo sexo. Exigir a diferenciação de sexos no casal para haver a proteção do Estado é fazer “distinção odiosa”,[5] postura nitidamente discriminatória que contraria o princípio da igualdade, ignorando a existência da vedação de diferenciar pessoas em razão de seu sexo.

A nenhuma espécie de vínculo que tenha por base o afeto se pode deixar de conferir status de família, merecedora da proteção do Estado, pois o inc. III do art, 1º da Carta constitucional consagra, em norma pétrea, o respeito à dignidade humana.[6]

2    Liberdade e igualdade

O respeito à dignidade da pessoa é o dogma que serve de norte a todo o sistema jurídico. Implica dotar os princípios da igualdade e da isonomia de potencialidade transformadora na configuração de todas as relações jurídicas. Igualdade jurídica formal é igualdade diante da lei. Como bem explicita Konrad Hesse: o fundamento de igualdade jurídica deixa-se fixar, sem dificuldades, como postulado fundamental do estado de direito.[7]

Os princípios da igualdade e da liberdade estão consagrados já no preâmbulo da Constituição ao conceder proteção a todos, vedar discriminação e preconceitos por motivo de origem, raça, sexo ou idade, assegurando o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos (…).

Já o seu art. 5º, ao elencar os direitos e as garantias fundamentais, proclama: todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. Os dois primeiros incisos de mesmo dispositivo expressamente consagram o direito à liberdade e à igualdade. Repetitivamente enfatiza a igualdade entre o homem e a mulher e a vedação de obrigar alguém a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.

Mas de nada adianta assegurar respeito à dignidade humana, à liberdade. Pouco vale afirmar a igualdade de todos perante a lei, dizer que homens e mulheres são iguais, que não são admitidos preconceitos ou qualquer forma de discriminação. Enquanto houver segmentos alvo da exclusão social, tratamento desigualitário entre homens e mulheres, enquanto a homossexualidade for vista como crime, castigo ou pecado, não se está vivendo em um Estado Democrático de Direito.

3    Direito à sexualidade

A sexualidade integra a própria condição humana. É um direito fundamental que acompanha o ser humano desde o seu nascimento, pois decorre de sua própria natureza. Como direito do indivíduo, é um direito natural, inalienável e imprescritível. Ninguém pode se realizar como ser humano, se não tiver assegurado o respeito ao exercício da sexualidade, conceito que compreende a liberdade sexual e a liberdade da livre orientação sexual. O direito a tratamento igualitário independe da tendência sexual. A sexualidade é um elemento integrante da própria natureza humana e abrange a dignidade humana. Todo ser humano tem o direito de exigir respeito ao livre exercício da sexualidade. Sem liberdade sexual, o indivíduo não se realiza, tal como ocorre quando lhe falta qualquer outro direito fundamental.

As normas constitucionais que consagram o direito à igualdade proíbem discriminar a conduta afetiva no que respeita à inclinação sexual. A discriminação de um ser humano em virtude de sua orientação sexual constitui, precisamente, uma hipótese (constitucionalmente vedada) de discriminação sexual.[8] Rejeitar a existência de uniões homossexuais é afastar o princípio insculpido no inc. IV, do art. 3º, da Constituição Federal, segundo o qual é dever do Estado promover o bem de todos, vedada qualquer discriminação, não importa de que ordem ou de que tipo. Conforme José Carlos Teixeira Giorgis:

A relação entre a proteção da dignidade da pessoa humana e a orientação homossexual é direta, pois o respeito aos traços constitutivos de cada um, sem depender da orientação sexual, é previsto no art. 1º, inc. 3º, da Constituição, e o Estado Democrático de Direito promete aos indivíduos, muito mais que a abstenção de invasões ilegítimas de suas esferas pessoais, a promoção positiva de suas liberdades.[9]

A orientação sexual adotada na esfera de privacidade não admite restrições, o que configura afronta à liberdade fundamental a que faz jus todo ser humano, no que diz com sua condição de vida.

4    Homoafetividade

A sociedade que se proclama defensora da igualdade é a mesma que ainda mantém uma posição discriminatória nas questões da homossexualidade. Nítida é a rejeição social à livre orientação sexual. A homossexualidade existe e sempre existiu, mas é marcada pelo estigma social, sendo renegada à marginalidade, por se afastar dos padrões de comportamento convencional. Por ser fato diferente dos estereótipos, o que não se encaixa nos padrões é tido como imoral ou amoral, sem buscar-se a identificação de suas origens orgânicas, sociais ou comportamentais.[10]

Em virtude do preconceito, tenta-se excluir a homossexualidade do mundo do Direito. Mas imperativa sua inclusão no rol dos direitos humanos fundamentais, como expressão de um direito subjetivo que se insere em todas as suas categorias, pois ao mesmo tempo é direito individual, social e difuso.

O direito à homoafetividade, além de estar amparado pelo princípio fundamental da isonomia, cujo corolário é a proibição de discriminações injustas, também se alberga sob o teto da liberdade de expressão. Como garantia do exercício da liberdade individual, cabe ser incluído entre os direitos de personalidade, precipuamente no que diz com a identidade pessoal e a integridade física e psíquica. Acresce ainda lembrar que a segurança da inviolabilidade da intimidade e da vida privada é a base jurídica para a construção do direito à orientação sexual, como direito personalíssimo, atributo inerente e inegável da pessoa humana.[11]

Qualquer discriminação baseada na orientação sexual do indivíduo configura claro desrespeito à dignidade humana, princípio maior consagrado pela Constituição Federal. Infundados preconceitos não podem legitimar restrições a direitos, o que fortalece estigmas sociais e acaba por causar sentimento de rejeição e sofrimentos.

Ventilar-se a possibilidade de desrespeito ou prejuízo a um ser humano, em função da orientação sexual, significa dispensar tratamento indigno a um ser humano. Não se pode, simplesmente, ignorar a condição pessoal do indivíduo (na qual, sem sombra de dúvida, inclui-se a orientação sexual), como se tal aspecto não tivesse relação com a dignidade humana.[12]

O núcleo do atual sistema jurídico é o respeito à dignidade humana, atentando nos princípios da liberdade e da igualdade. A identificação da orientação sexual está condicionada à identificação do sexo da pessoa escolhida em relação a quem escolhe, e tal escolha não pode ser alvo de tratamento diferenciado. Se todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, aí está incluída, por óbvio, a orientação sexual que se tenha. A proibição da discriminação sexual, eleita como cânone fundamental, alcança a vedação à discriminação da homossexualidade, pois diz com a conduta afetiva:

Uma dimensão dúplice da dignidade manifesta-se enquanto simultaneamente expressão da autonomia da pessoa humana, vinculada à ideia de autodeterminação no que diz com as decisões essenciais a respeito da própria existência, bem como da necessidade de sua proteção (assistência) por parte da comunidade e do Estado, especialmente quando fragilizada ou até mesmo quando ausente a capacidade de autodeterminação.[13]

O impedimento de tratamento discriminatório não tem exclusivamente assento constitucional. Como preceituam os §§ 2º e 3º do art. 5º da Constituição da República, são recepcionados pelo ordenamento jurídico os tratados e convenções internacionais objeto de referendo, constituindo emenda constitucional. Ante tais normatizações, a ONU tem entendido como ilegítima qualquer interferência na vida privada de homossexuais adultos, seja pelo princípio de respeito à dignidade humana, seja pelo princípio da igualdade.[14]

A orientação que alguém imprime na esfera da sua vida privada não admite restrições. Desimporta a identificação do sexo do par, se igual ou diferente, para se emprestarem efeitos jurídicos aos vínculos afetivos, no âmbito do Direito das Famílias. Atendidos os requisitos legais para a configuração da união estável, necessário que se confiram direitos e se imponham obrigações independentemente da identidade ou diversidade de sexo dos conviventes. O exercício da sexualidade, a prática da conjunção carnal ou a identidade sexual não é o que distingue os vínculos afetivos. A identidade ou diversidade do sexo do par gera espécies diversas de relacionamento. Assim, melhor é falar em relações homoafetivas ou heteroafetivas do que em relações homossexuais ou heterossexuais.

A homossexualidade existe, é um fato que se impõe, estando a merecer a tutela jurídica. O estigma do preconceito não pode ensejar que um fato social não disponha de efeitos jurídicos. Como todos os segmentos-alvo do preconceito e da discriminação social, as relações homossexuais sujeitam-se à deficiência de normação jurídica, sendo deixados à margem da sociedade e à míngua do Direito. É no mínimo perverso impor a mesma trilha traçada pela doutrina e percorrida pela jurisprudência às relações entre um homem e uma mulher fora do casamento, até o alargamento do conceito de família por meio da constitucionalização da união estável.

5    Uniões homoafetivas

Impondo a Constituição respeito à dignidade humana, são alvos de proteção os relacionamentos afetivos, independentemente da identificação do sexo do par: se formados por homens e mulheres ou só por mulheres ou só por homens. Mesmo que, quase intuitivamente, se conceitue família como uma relação interpessoal entre um homem e uma mulher tendo por base o afeto, necessário reconhecer que há relacionamentos que, mesmo sem a diversidade de sexos, são cunhados também por um elo de afetividade.

As uniões entre pessoas do mesmo sexo, ainda que não previstas expressamente na Constituição Federal e na legislação infraconstitucional, existem e fazem jus à tutela jurídica. A ausência de regulamentação impõe que as uniões homoafetivas sejam identificadas como entidades familiares no âmbito do Direito de Família. A natureza afetiva do vínculo em nada o diferencia das uniões heterossexuais, merecendo ser identificado como união estável.

Preconceitos de ordem moral não podem levar à omissão do Estado. Nem a ausência de leis nem o conservadorismo do Judiciário servem de justificativa para negar direitos aos relacionamentos afetivos que não têm a diferença de sexo como pressuposto. É absolutamente discriminatório afastar a possibilidade de reconhecimento das uniões estáveis homossexuais. São relacionamentos que surgem de um vínculo afetivo, geram o enlaçamento de vidas com desdobramentos de caráter pessoal e patrimonial, estando a reclamar um regramento legal.

Reconhecer como juridicamente impossíveis ações que tenham por fundamento uniões homossexuais é relegar situações existentes à invisibilidade, ensejar a consagração de injustiças e autorizar enriquecimento sem causa. Nada justifica, por exemplo, deferir a herança a parentes distantes em prejuízo de quem, muitas vezes, dedicou uma vida ao outro, participando na formação do acervo patrimonial. Descabe ao juiz julgar as opções de vida das partes, pois deve cingir-se a apreciar as questões que lhe são postas, centrando-se exclusivamente na apuração dos fatos para encontrar uma solução que não se afaste de um resultado justo.

As uniões homoafetivas são uma realidade que se impõe e não podem ser negadas, estando a reclamar tutela jurídica, cabendo ao Judiciário solver os conflitos trazidos. Incabível que as convicções subjetivas impeçam seu enfrentamento e vedem a atribuição de efeitos, relegando à marginalidade determinadas relações sociais, pois a mais cruel consequência do agir omissivo é a perpetração de grandes injustiças.[15]

Descabido estabelecer a distinção de sexos como pressuposto para a identificação da união estável. Dita diferença, arbitrária e aleatória, é exigência nitidamente discriminatória. O próprio legislador-constituinte reconheceu a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes também como entidade familiar, merecedora da proteção do Estado. Diante dessa abertura conceitual, nem o matrimônio nem a diferenciação dos sexos ou a capacidade procriativa servem de elemento caracterizador da família. Por consequência, não há como ver como entidade familiar somente a união estável entre pessoas de sexos opostos.

Não se diferencia mais a família pela ocorrência do casamento. Também a existência de prole não é essencial para que a convivência mereça reconhecimento e proteção constitucional, pois sua falta não enseja sua desconstituição. Se prole ou capacidade procriativa não são essenciais para que a convivência de duas pessoas mereça a proteção legal, não mais cabe excluir do conceito de família as relações homoafetivas. Excepcionar onde a lei não distingue é forma de excluir direitos.

Passando duas pessoas, ligadas por um vínculo afetivo, a manter relação duradoura, pública e contínua, como se casadas fossem, formam um núcleo familiar à semelhança do casamento, independentemente do sexo a que pertencem. É necessário identificá-la como união estável, geradora de efeitos jurídicos. Em face do silêncio do constituinte e da omissão do legislador, deve o juiz cumprir sua função de dizer o Direito, atendendo à determinação constante do art. 4º, da Lei de Introdução ao Código Civil, e do art. 140, do Código de Processo Civil. Na lacuna da lei, ou seja, na falta de normatização, precisa se valer da analogia, dos costumes e princípios gerais de direito. Nada diferencia tais uniões de modo a impedir que sejam definidas como família. Enquanto não existir regramento legal específico, mister se faz a aplicação analógica das regras jurídicas que regulam as relações que têm o afeto por causa: o casamento e a união estável. O óbice constitucional, estabelecendo a distinção de sexos ao definir a união estável, não impede o acréscimo dessa forma integrativa de um fato existente e não regulamentado ao sistema jurídico. A identidade sexual não serve de justificativa para que se busque qualquer outro ramo do Direito que não o Direito das Famílias.

A equiparação das uniões homossexuais à união estável, pela via analógica, implica a atribuição de um regime normativo destinado originariamente a situação diversa, ou seja, comunidade formada por um homem e uma mulher. A semelhança aqui presente, autorizadora da analogia, seria a ausência de vínculos formais e a presença substancial de uma comunidade de vida afetiva e sexual duradoura e permanente entre os companheiros do mesmo sexo, assim como ocorre entre os sexos opostos.[16]

Igualmente há a determinação de se fazer uso dos princípios gerais do Direito, para colmatar as lacunas da lei. Devem ser invocados os princípios introduzidos pela Constituição como norteadores do Estado Democrático de Direito, que impõem o respeito à dignidade e asseguram o direito à liberdade e à igualdade. O ordenamento jurídico estrutura-se em torno de certos valores, muitos dos quais estão postos em sede de princípios constitucionais, que também devem informar a interpretação da legislação específica numa leitura incorporada pelos reclamos da atualidade histórica.[17]

Quando inexistir lei, há a determinação de se atentar também aos costumes. Mas imperioso é que se invoquem os costumes atuais, que cada vez mais vêm respeitando e emprestando visibilidade aos relacionamentos das pessoas do mesmo sexo. As relações sociais são dinâmicas. Totalmente descabido continuar pensando a sexualidade com preconceitos, com conceitos fixados pelo conservadorismo do passado, encharcados da ideologia machista e discriminatória, própria de um tempo já totalmente ultrapassado pela história da sociedade humana. Necessário é pensar com conceitos jurídicos atuais, que estejam à altura dos tempos de hoje.

Também o art. 5º, da Lei de Introdução ao Código Civil, indica um caminho para o juiz: ele deve atender aos fins sociais a que a lei se dirige e às exigências do bem comum. A interpretação, portanto, deve ser axiológica, progressista, na busca daqueles valores, para que a prestação jurisdicional seja democrática e justa, adaptando-se às contingências e mutações sociais.[18]

A aversão da doutrina dominante e da jurisprudência majoritária de se socorrerem das regras legais que regem a união estável ou o casamento leva singelamente ao reconhecimento de uma sociedade de fato. Sob o fundamento de se evitar enriquecimento injustificado, invoca-se o Direito das Obrigações, o que acaba subtraindo a possibilidade da concessão de um leque de direitos que só existem na esfera do Direito das Famílias. Presentes os requisitos legais – vida em comum, coabitação, laços afetivos –, não se pode deixar de conceder às uniões homoafetivas os mesmos direitos deferidos às relações heterossexuais que tenham idênticas características. Como adverte João Baptista Villela: Sexo é sexo, patrimônio é patrimônio. Se, em geral, já é um princípio de sabedoria e prudência não misturá-los, aqui é definitivamente certo que um nada tem a ver com o outro.[19]

O tratamento diferenciado a situações análogas acaba por gerar profundas injustiças. Segundo Rodrigo da Cunha Pereira, em nome de uma moral sexual dita civilizatória, muita injustiça tem sido cometida. O Direito, como instrumento ideológico e de poder, em nome da moral e dos bons costumes, já excluiu muitos do laço social.[20]

Se duas pessoas passam a ter vida em comum, cumprindo os deveres de assistência mútua, em verdadeiro convívio estável caracterizado pelo amor e respeito mútuo, com o objetivo de construir um lar, inquestionável que tal vínculo, independentemente do sexo de seus participantes, gera direitos e obrigações que não podem ficar à margem da lei.

Ignorar a realidade, deixando-a à margem da sociedade e fora do Direito, não irá fazer a homossexualidade desaparecer. Impositivo o reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo. Como diz George Teixeira Giorgis:

De fato, ventilar-se a possibilidade de desrespeito ou prejuízo de alguém, em função de sua orientação sexual, seria dispensar tratamento indigno ao ser humano, não se podendo ignorar a condição pessoal do indivíduo, legitimamente constitutiva de sua identidade pessoal, em que aquela se inclui.[21]

Mais do que uma sociedade de fato, trata-se de uma sociedade de afeto, o mesmo liame que enlaça os parceiros heterossexuais. Bem questiona Paulo Luiz Lôbo: Afinal, que sociedade de fato mercantil ou civil é essa que se constitui e se mantém por razões de afetividade, sem interesse de lucro?[22]

Não se pode falar em homossexualidade sem pensar em afeto. Enquanto a lei não acompanha a evolução da sociedade, a mudança de mentalidade, a evolução do conceito de moralidade, ninguém tem o direito de fechar os olhos, assumindo postura preconceituosa ou discriminatória, para não enxergar essa nova realidade. Os aplicadores do Direito não podem ser fonte de grandes injustiças. Descabe confundir questões jurídicas com questões morais e religiosas. É necessário mudar valores, abrir espaços para novas discussões, revolver princípios, dogmas e preconceitos.

6    Homoparentalidade

Não só a família, mas também a filiação foi alvo de profunda transformação, o que levou a repensar as relações paterno-filiais e os valores que as moldam.[23] Das presunções legais chegou-se à plena liberdade de reconhecimento de filhos e à imprescritibilidade da investigação dos pais. Tais foram as mudanças, que a Constituição acabou com a perversa classificação dos filhos, diferenciação hipócrita e injustificável, enfatiza Zeno Veloso, como se as crianças inocentes fossem mercadorias expostas em prateleiras de mercadorias, umas de primeira, outras de segunda, havendo, ainda, as mais infelizes, de terceira classe ou categoria.[24]

Se o afeto passou a ser o elemento identificador das entidades familiares é este o sentimento que serve de parâmetro para a definição dos vínculos parentais, levando ao surgimento da família eudemonista, espaço que aponta o direito à felicidade como núcleo formador do sujeito.[25]

De outro lado, a facilidade de descobrir a verdade genética, com significativo grau de certeza, desencadeou verdadeira corrida na busca da verdade real, atropelando a verdade jurídica, definida, muitas vezes, por meras presunções legais. À Justiça coube a tarefa de definir o vínculo paterno-filial quando a estrutura familiar não reflete o vínculo de consanguinidade. No confronto entre a verdade biológica e a realidade vivencial, a jurisprudência passou a atentar ao melhor interesse de quem era disputado por mais de uma pessoa. Prestigiando o comando constitucional, que assegura com absoluta prioridade o interesse de crianças e adolescentes, regra exaustiva e atentamente regulamentada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, passaram os juízes a investigar quem a criança considera pai e quem a ama como filho. O prestígio à afetividade fez surgir uma nova figura jurídica, a filiação socioafetiva, que acabou se sobrepondo à realidade biológica.

A moderna doutrina não mais define o vínculo de parentesco em função da identidade genética. A valiosa interação do Direito com as ciências psicossociais ultrapassou os limites do direito normatizado e permitiu a investigação do justo, buscando mais a realidade psíquica do que a verdade eleita pela lei. Para dirimir as controvérsias que surgem – em número cada vez mais significativo – em decorrência da manipulação genética, prevalece a mesma orientação. Popularizaram-se os métodos reprodutivos de fecundação assistida, cessão do útero, comercialização de óvulos ou espermatozoides, locação de útero, e todos viram a possibilidade de realizar o sonho de ter filhos.

Nesse caleidoscópio de possibilidades, os vínculos de filiação não podem ser buscados nem na verdade jurídica nem na realidade biológica. A definição da paternidade está condicionada à identificação da posse do estado de filho, reconhecida como a relação afetiva, íntima e duradoura, em que uma criança é tratada como filho, por quem cumpre todos os deveres inerentes ao poder familiar: cria, ama, educa e protege.[26]

Para evitar confronto ético, acabou sendo imposto o anonimato às concepções heterólogas, o que veda identificar a filiação genética. Mas essa verdade não interessa, pois o filho foi gerado pelo afeto, e não são os laços bioquímicos que indicam a figura do pai, mas, sim, o cordão umbilical do amor. A paternidade é reconhecida pelo vínculo de afetividade, fazendo nascer a filiação socioafetiva. Ainda segundo Fachin, a verdadeira paternidade não é um fato da Biologia, mas um fato da cultura, está antes no devotamento e no serviço do que na procedência do sêmen.[27]

Se a família, como diz João Baptista Villela, deixou de ser unidade de caráter econômico, social e religioso para se afirmar fundamentalmente como grupo de afetividade e companheirismo, o que imprimiu considerável reforço ao esvaziamento biológico da paternidade,[28] imperioso questionar os vínculos parentais nas estruturas familiares formadas por pessoas do mesmo sexo.

Não se pode fechar os olhos e tentar acreditar que as famílias homoparentais, por não disporem de capacidade reprodutiva, simplesmente não possuem filhos. Está-se à frente de uma realidade cada vez mais presente: crianças e adolescentes vivem em lares homossexuais. Gays e lésbicas buscam a realização do sonho de estruturarem uma família com a presença de filhos. Não ver essa verdade é usar o mecanismo da invisibilidade para negar direitos, postura discriminatória com nítido caráter punitivo, que só gera injustiças.

As situações são várias, cabendo lembrar as que surgem com mais frequência. Após a separação com prole, o pai ou a mãe que tem a guarda dos filhos resolve assumir sua orientação sexual e passa a viver com alguém do mesmo sexo. O companheiro do genitor não é nem pai nem mãe dos menores, mas não se pode negar que a convivência gera um vínculo de afinidade e afetividade. Não raro o parceiro participa da criação, desenvolvimento e educação das crianças, passando a exercer a função parental.

Outra opção cada vez mais comum é um do par se submeter à reprodução assistida. Este será o pai ou a mãe. O parceiro ou parceira, que não participou do processo reprodutivo, fica excluído da relação de parentesco, ainda que o filho tenha sido concebido por vontade de ambos. Os gays utilizam esperma de um ou de ambos e, realizada a fecundação in vitro, a gestação é levada a termo por meio do que se passou a chamar de barriga de aluguel. As lésbicas muitas vezes optam pela utilização do óvulo de uma, que, fecundado em laboratório, é introduzido no útero da outra, que leva a gestação a termo. Nessas hipóteses, o pai ou a mãe biológica é somente um deles, ainda que o filho tenha sido concebido por amor, processo do qual participaram os dois.

Em todas essas hipóteses, permitir que exclusivamente o pai (biológico ou adotante) tenha um vínculo jurídico com o filho é olvidar tudo que a doutrina vem sustentando e a Justiça vem construindo: para a tutela jurídica dos vínculos afetivos, não é requisito indispensável haver família que haja homem e mulher, pai e mãe.

A adoção vem sendo incentivada por campanhas, como modalidade de amenizar o grave problema social das crianças abandonadas ou institucionalizadas. A esse apelo só pode responder um dos parceiros. No entanto, mesmo sendo adotada por um, a criança vai ter dois pais ou duas mães.

A maior visibilidade e melhor aceitabilidade das famílias homoafetivas torna impositivo o estabelecimento do vínculo jurídico paterno-filial com ambos os genitores, ainda que sejam dois pais ou duas mães. Vetar a possibilidade de juridicizar a realidade só traz prejuízo ao filho, que não terá qualquer direito com relação a quem exerce o poder familiar, isto é, desempenha a função de pai ou de mãe. Presentes todos os requisitos para o reconhecimento de uma filiação socioafetiva, negar sua presença é deixar a realidade ser encoberta pelo véu do preconceito.

Existindo um núcleo familiar, estando presente o elo de afetividade a envolver pais e filhos, a identificação da união estável do casal torna imperioso o reconhecimento da dupla paternidade. Para assegurar a proteção do filho, os dois pais precisam assumir os encargos do poder familiar. Como lembra Zeno Veloso, o princípio capital norteador do movimento de renovação do Direito das Famílias é fazer prevalecer, em todos os casos, o bem da criança; valorizar e perseguir o que melhor atender aos interesses do menor.[29]

A enorme resistência em aceitar a homoparentalidade decorre da falsa ideia de que são relações promíscuas, não oferecendo um ambiente saudável para o bom desenvolvimento de uma criança. Também é alegado que a falta de referências comportamentais pode acarretar sequelas de ordem psicológica e dificuldades na identificação sexual do filho. Mas estudos realizados a longo tempo mostram que essas crenças são falsas. O acompanhamento de famílias homoafetivas com prole não registra a presença de dano sequer potencial no desenvolvimento, inserção social e sadio estabelecimento de vínculos afetivos. Ora, se esses dados dispõem de confiabilidade, a insistência em rejeitar a regulamentação de tais situações só tem como justificativa uma indisfarçável postura homofóbica.

Para o estabelecimento do vínculo de parentalidade, basta que se identifique quem desfruta da condição de pai, quem o filho considera seu pai, sem perquirir a realidade biológica, presumida, legal ou genética. Também a situação familiar dos pais em nada influencia na definição da paternidade, pois família, como afirma Lacan, não é um grupo natural, mas um grupo cultural, e não se constitui apenas por um homem, mulher e filhos, conforme bem esclarece Rodrigo da Cunha Pereira: a família é uma estruturação psíquica, onde cada um de seus membros ocupa um lugar, desempenha uma função, sem estarem necessariamente ligados biologicamente. Assim, nada significa ter um ou mais pais, serem eles do mesmo ou de sexos diferentes.[30]

Mais uma vez o critério deve ser a afetividade, elemento estruturante da filiação socioafetiva, pois, como diz Giselle Groeninga, a criança necessita de pais que transmitam a verdade dos afetos.[31] A negativa de reconhecimento escancara flagrante inconstitucionalidade, pois é expressa a proibição de quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação. As relações familiares são funcionalizadas em razão da dignidade de cada partícipe,[32] e a negativa de reconhecimento da paternidade afronta um leque de princípios, direitos e garantias fundamentais, como o respeito à dignidade, à igualdade, à identidade.

Não se pode esquecer de que crianças e adolescentes têm, com absoluta prioridade, direito à vida, à saúde, à alimentação, à convivência familiar, e negar o vínculo de filiação é vetar o direito à família: lugar idealizado onde é possível, a cada um, integrar sentimentos, esperanças e valores para a realização do projeto pessoal de felicidade.[33]

A pioneira decisão foi do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul que, por decisão unânime, reconheceu o direito à adoção a um casal formado de pessoas do mesmo sexo.[34] Os filhos haviam sido adotados por uma das parceiras, vindo a outra a pleitear a adoção em juízo. Com certeza, esta decisão selou de vez o reconhecimento de que a divergência de sexo é indiferente para a configuração de uma família.

Mesmo estando o filho registrado somente no nome de uma das mães, quando da separação do casal foi assegurado direito de convivência da outra.[35]

Diante do reconhecimento das uniões homoafetivas como entidades familiares, da garantia de acesso ao casamento e do uso das técnicas de reprodução assistida,[36] uma nova realidade se impôs, não havendo como negar respeito a estes projetos multiparentais, de quem planejou e realizou o sonho de ter filhos. Necessariamente, mais de duas pessoas.

Foi da justiça gaúcha a pioneira decisão que admitiu o registro em nome das duas mães, que são casadas, e do pai..[37]

Famílias multiparentais sempre existiram e continuarão a existir. A diferença é que até recentemente eram condenadas à invisibilidade, resultando desta perversa tentativa, de não ver o que foge do modelo do espelho, a exclusão de direitos.

Não impor deveres e não cobrar o cumprimento de obrigações a quem exerce funções parentais é fomentar a irresponsabilidade em nome de um bem que nem se sabe bem qual seria.

Felizmente a justiça começa a enxergar esta realidade, abrindo caminho para que os arranjos familiares plurais se legitimem enquanto detentores de direitos e deveres, fazendo da sociedade um lugar mais plural e igualitário.

 

7    Avanços jurisprudenciais

As normas legais precisam se adequar aos princípios e às garantias que identificam o modelo consagrado pela Carta Política que retrata a vontade geral do povo. O núcleo do sistema jurídico, que sustenta a própria razão de ser do Estado, deve garantir muito mais liberdades do que promover invasões ilegítimas na esfera pessoal do cidadão.

O fato de não haver previsão legal não significa inexistência de direito à tutela jurídica. Ausência de lei não quer dizer ausência de direito, nem impede que se extraiam efeitos jurídicos de determinada situação fática. A falta de previsão específica nos regramentos legislativos não pode servir de justificativa para negar a prestação jurisdicional ou de motivo para deixar de reconhecer a existência de direito. O silêncio do legislador precisa ser suprido pelo juiz, que cria a lei para o caso que se apresenta a julgamento. Na omissão legal, deve o juiz se socorrer da analogia, costumes e princípios gerais de direito.

O sistema jurídico assegura tratamento isonômico e proteção igualitária a todos os cidadãos. Omitindo-se o legislador em regular situações dignas de tutela, as lacunas precisam ser colmatadas pelo Judiciário. Na presença de vazios legais, a plenitude do reconhecimento de direitos deve ser implementada pelo juiz, que não pode negar proteção jurídica nem deixar de assegurar direitos sob a alegação de ausência de lei. Precisa assumir sua função criadora do direito. Preconceitos e posturas discriminatórias, que tornam silenciosos os legisladores, não devem levar também o juiz a calar. Imperioso que ele reconheça direitos às situações merecedoras de proteção, pois não pode afastar-se do dever de fazer justiça. Para conceder direitos aos segmentos-alvo da exclusão social, impositiva a aplicação da analogia que leva à invocação do princípio da igualdade na busca de identificação da semelhança significativa.

Ainda que o preconceito faça com que os relacionamentos homoafetivos recebam o repúdio de segmentos conservadores, o movimento libertário que transformou a sociedade acabou por mudar o próprio conceito de família. A homossexualidade existe, sempre existiu e cabe à Justiça emprestar-lhe visibilidade. Em nada se diferenciam os vínculos heterossexuais e homossexuais: ambos têm o afeto como elemento estruturante.

O legislador se intimida na hora de assegurar direitos às minorias excluídas do poder. A omissão da lei dificulta o reconhecimento de direitos, sobretudo frente a situações que se afastam de determinados padrões convencionais, o que faz crescer a responsabilidade do Poder Judiciário. Preconceitos e posições pessoais não podem levar o juiz a fazer da sentença meio de punir comportamentos que se afastam dos padrões que ele aceita como normais. Igualmente não cabe invocar o silêncio da lei para negar direitos àqueles que escolheram viver fora do padrão imposto pela moral conservadora, mas que não agridem a ordem social.

As uniões de pessoas com a mesma identidade sexual, ainda que sem lei, acabaram batendo às portas da Justiça para reivindicar direitos. Mais uma vez o Judiciário foi chamado a exercer a função criadora do direito. O caminho que lhes foi imposto já é conhecido. As uniões homossexuais tiveram que trilhar o mesmo iter percorrido pelas uniões extramatrimoniais. Em face da resistência de ver a afetividade nas relações homossexuais, foram relegadas ao campo obrigacional e rotuladas de sociedades de fato, dando ensejo à mera partilha dos bens amealhados durante o período de convívio, mediante a prova da efetiva participação na sua aquisição.[38]

O receio de comprometer o sacralizado conceito do casamento, limitado à ideia da procriação e, por consequência, à heterossexualidade do casal, não permitia que se inserissem as uniões homoafetivas no âmbito do Direito das Famílias. Havia dificuldade de reconhecer que a convivência está centrada em um vínculo de afeto, o que impedia fazer a analogia dessas uniões com o instituto da união estável. Afastada a identidade familiar, nada mais era concedido além da repartição do patrimônio comum. Alimentos e pretensão sucessória eram rejeitados sob a alegação de impossibilidade jurídica do pedido.

As uniões homossexuais, quando reconhecida sua existência, eram relegadas ao Direito das Obrigações. Como relações de caráter comercial, as controvérsias eram julgadas pelas varas cíveis. Chamadas tais uniões homossexuais de sociedades de fato, limitava-se a Justiça a conferir-lhes sequelas de ordem patrimonial. Logrando um dos sócios provar sua efetiva participação na aquisição de bens amealhados durante o período de convívio, era determinada a partição do patrimônio, operando-se verdadeira divisão de lucros.

A mudança começou pela Justiça gaúcha, que, ao definir a competência dos juizados especializados da família para apreciar as uniões homoafetivas,[39] acabou por inseri-las no âmbito do Direito de Família como entidades familiares. Esse, com certeza, foi o primeiro grande marco que ensejou a mudança de orientação da jurisprudência rio-grandense. A definição da competência das varas de família para o julgamento das ações envolvendo as uniões homossexuais provocou o envio de todas as demandas que tramitavam nas varas cíveis para a jurisdição de família. Também os recursos migraram para as câmaras do Tribunal que detêm competência para apreciar essa matéria.

Proposta a ação trazendo por fundamento jurídico as normas de Direito das Famílias, a tendência era o indeferimento da petição inicial. Decantada a impossibilidade jurídica do pedido, era decretada a carência de ação. O processo era extinto em seu nascedouro, por ser considerado impossível o pedido do autor. Esta foi a decisão proferida em ação de petição de herança em cujo recurso,[40] invocando os princípios constitucionais que vedam a discriminação entre os sexos, por unanimidade de votos, a sentença foi reformada. Reconhecido que a inicial descrevia a existência de um vínculo familiar, foi afirmada a possibilidade jurídica do pedido e determinado o prosseguimento da ação. Esta decisão, invocando a vedação constitucional de discriminação em razão do sexo, sinalizou de forma clara o caminho para a inserção, no âmbito do Direito de Família, das uniões homoafetivas como entidade familiar.

A primeira decisão que deferiu herança ao parceiro do mesmo sexo também foi da Justiça do Rio Grande do Sul.[41] A mudança de rumo foi de enorme repercussão, pois retirou o vínculo afetivo homossexual do Direito das Obrigações, em que era visto como simples negócio, como se o relacionamento tivesse objetivo exclusivamente comercial e fins meramente lucrativos. Esse equivocado enquadramento evidenciava postura conservadora e discriminatória, pois não conseguia ver a existência de um vínculo afetivo na origem do relacionamento.

O Relator, Desembargador José Carlos Teixeira Giorgis, em longo e erudito voto, invocou os princípios constitucionais da dignidade humana e da igualdade, concluindo que o respeito à orientação sexual é aspecto fundamental para o seu reconhecimento. Na esteira dessa decisão, encorajaram-se outros tribunais e, com significativa frequência, têm-se notícias de novos julgamentos adotando posicionamento idêntico.

É de se louvar a coragem de ousar quando se ultrapassam os tabus que rondam o tema da sexualidade e quando se rompe o preconceito que persegue as entidades familiares homoafetivas. Houve um verdadeiro enfrentamento a toda uma cultura conservadora e uma oposição à jurisprudência ainda apegada a um conceito conservador de família. Essa nova orientação mostra que o Judiciário tomou consciência de sua missão de criar o direito. Não é ignorando certos fatos, deixando determinadas situações a descoberto do manto da juridicidade que se faz justiça. Condenar à invisibilidade é a forma mais cruel de gerar injustiças e fomentar a discriminação, afastando-se o Estado de cumprir com sua obrigação de conduzir o cidadão à felicidade.

A postura da jurisprudência juridicizando e inserindo no âmbito do Direito das Famílias as relações homoafetivas como entidades familiares foi um marco significativo. À medida que se consolidou a orientação jurisprudencial, emprestando efeitos jurídicos às uniões de pessoas do mesmo sexo, alargou-se o espectro de direitos reconhecidos aos parceiros quando do desfazimento dos vínculos homoafetivos. Inúmeras outras decisões surgiram no panorama nacional.[42]

Todos esses avanços culminaram com o julgamento do Supremo Tribunal Federal, que, em 05 de maio de 2011, reconheceu as uniões homoafetivas como entidade familiar, uniões estáveis com todos os direitos e obrigações.[43]

Como recomenda a Constituição Federal que seja facilitada a conversão da união estável em casamento, não demorou para a justiça garantir acesso ao casamento. Primeiro por conversão da união estável[44] e, logo em seguida, mediante habilitação direta.[45]

Até que, em 2013, o Conselho Nacional da Justiça[46] expediu resolução impedindo que fosse negado acesso ao casamento, reconhecimento da união estável, bem como sua conversão em casamento.

Não é mais possível deixar de arrostar a realidade do mundo de hoje.

É necessário ter uma visão plural das estruturas familiares e inserir no conceito de família os vínculos afetivos que, por envolverem mais sentimento do que vontade, merecem a especial proteção que só o Direito das Famílias consegue assegurar.

Há muito caiu a venda que tapava os olhos da Justiça. O símbolo da imparcialidade não pode servir de empecilho para o reconhecimento de que a diversidade necessita ser respeitada.

Além de olhos abertos para ver a realidade social, os juízes precisam ter coragem para dizer o Direito em consonância com a Justiça.

 

Publicado em 25/02/2018.

 

 

[1] Advogada especializada em direito das famílias, sucessões e direito homoafetivo

Ex-desembargadora do Tribunal de Justiça do RS

Presidente da Comissão Nacinal da Diversidade Sexual e Gênero do Conselho Federal da OAB

Vice-Presidenta Nacional do IBDFAM

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[2]     LÔBO, Paulo Luiz Netto. Entidades familiares constitucionalizadas: para além do numerus clausus. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.). Família e cidadania: o novo CCB e a vacatio legis. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 101.

[3]     VELOSO, Zeno. Homossexualidade e direito. Jornal O Liberal. Belém do Pará, 22 maio 1999.

[4]     LÔBO, Paulo. Entidades familiares constitucionalizadas: para além do numerus clausus. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.). Família e cidadania: o novo CCB e a vacatio legis. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 95.

[5]     SUANNES, Adauto. As uniões homossexuais e a Lei n. 9.278/96. Rio de Janeiro: Coad, 1999, p. 32.

 

[6]     DIAS, Maria Berenice. Manual do direito das famílias. 11 ed. São Paulo: RT, 2017, p. 45.

[7]     HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha. Porto Alegre: Fabris, 1998, p. 330.

[8]     RIOS, Roger Raupp. Direitos fundamentais e orientação sexual: o direito brasileiro e a homossexualidade. Revista do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal. Brasília, n. 6, set./dez. 1998, p. 29.

[9]     GIORGIS, José Carlos Teixeira. A natureza jurídica da relação homoerótica. Revista Ajuris, Porto Alegre, n. 88, dez. 2002, p. 244.

[10]    DIAS, Maria Berenice. Homoafetividade e os Direitos LGBTI, 7. ed. São Paulo: RT, 2017, p. 17.

[11]    FACHIN, Luiz Edson. Elementos críticos do direito de família. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.

[12]    RIOS, Roger Raupp. Direitos fundamentais e orientação sexual: o direito brasileiro e a homossexualidade. Revista do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal. Brasília, n. 6, set./dez. 1998, p. 34.

[13]    SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 46.

[14]    RIOS, Roger Raupp. Direitos fundamentais e orientação sexual: o direito brasileiro e a homossexualidade. Revista do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal. Brasília, n. 6, set./dez. 1998, p. 35.

 

[15]    DIAS, Maria Berenice. Homoafetividade e os Direitos LGBTI, 7. ed. São Paulo: RT, 2017, p. 17.

 

[16]    RIOS, Roger Raupp. A homossexualidade no direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 122.

[17]    MATOS, Ana Carla Harmatiuk. União entre pessoas do mesmo sexo. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 145.

[18]    VELOSO, Zeno. Comentários à Lei de Introdução ao Código Civil. Belém: Unama, 2005, 92.

[19]    VILLELA, João Baptista. Sociedade de fato entre pessoas do mesmo sexo? Revista Jurídica Del Rey. Belo Horizonte, n. 2, abr. 1998, p. 12.

[20]    PEREIRA, Rodrigo da Cunha. A sexualidade vista pelos tribunais. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 281.

[21]    GIORGIS, José Carlos Teixeira. A natureza jurídica da relação homoerótica. Revista Ajuris, Porto Alegre, n. 88, dez. 2002, p. 244.

[22]    LÔBO, Paulo Luiz Netto. Entidades familiares constitucionalizadas: para além do numerus clausus. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.). Família e cidadania: o novo CCB e a vacatio legis. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 100.

[23]    ALMEIDA, Maria Cristina de. DNA e estado de filiação à luz da dignidade humana. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 179.

[24]    VELOSO, Zeno. Direito brasileiro da filiação e paternidade. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 90.

[25]    CARBONERA, Silvana Maria. O papel jurídico do afeto nas relações de família. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.). Repensando o direito de família. Belo Horizonte: Del Rey, 1999, p. 486.

 

[26]    NOGUEIRA, Jacqueline Filgueras. A filiação que se constrói: o reconhecimento do afeto como valor jurídico. São Paulo: Memória Jurídica, 2001, p. 85.

[27]    FACHIN, Luiz Edson. Família hoje. In: BARRETO, Vicente (Org.). A nova família: problemas e perspectivas. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 85.

[28]    VILLELA. João Baptista. Desbiologização da paternidade. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, n. 21, maio 1979, p. 404.

[29]    VELOSO, Zeno. Direito brasileiro da filiação e paternidade. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 180.

[30]    PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de família. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1999, p. 47.

[31]    GROENINGA, Giselle. O secreto dos afetos – a mentira. Boletim do Instituto Brasileiro de Direito de Família. Belo Horizonte, n. 19, mar./abr. 1993, p. 7.

[32]    GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Das relações de parentesco. In: DIAS, Maria Berenice; PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Org.). Direito de família e o novo código civil. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 93.

[33]    HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Família e casamento em evolução. In: HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Direito civil: estudos. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 21.

[34] TJRS, AC 70013801592, 7ª C.Cív., Rel. Des. Luiz Felipe Brasil Santos, j. 05/05/2006.

[35] TJRS. AI 70018249631. 7.ª C. Cív., Rel. Desª. Maria Berenice Dias. j. 11.04.2007.

[36] CFM – Resolução 2.168/2017.

[37] TJRS, AC 70062692876, 8ª C. Cív, Rel. José Pedro de Oliveira Eckert, j. 12/02/2015.

[38]    DIAS, Maria Berenice. Homoafetividade e os Direitos LGBTI, São Paulo: RT, 2017, p. 17.

[39]    TJRS, AI 599075496, 8ª C. Cív., Rel. Des. Breno Moreira Mussi, j 17/06/1999.

[40]    TJRS, AC 598362655, 8ª C. Cív.,  Rel. Des. José S. Trindade, j. 01/03/2000.

[41]    TJRS, AC 70001388982, 7ª C. Cív., Rel. Des. José Carlos Teixeira Giorgis, j. 14/03/2001.

[42] Decisões disponíveis no site: www.direithomoavetivo.com.br

[43] STF, ADI 4.277 e ADPF 132, Rel. Min. Ayres Brito, j. 05/05/2011.

[44] TJSP, Protocolo nº 1209/2011, Juiz de Direito Fernando Henrique Pinto, j. 27/06/2011.

[45] STJ, REsp 1.183.378 – RS, 4ª T., Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 25/10/2011.

[46] Conselho Nacional de Justiça – Resolução 175, de 14/05/2013.