Familias homoafetivas
Maria Berenice Dias[1]
É cada vez maior a necessidade de se buscar um conceito de família que compreenda o que todos os povos, em todos os tempos e lugares, reconhecem ser a estrutura originária da sociedade. A família serve de base e referência para o futuro de todos os indivíduos. É no seio da família que o ser humano nasce e inicia seu desenvolvimento, a salvo das hostilidades externas.
Mas é necessário repensar o conceito de família desvinculando-o de seus paradigmas originários: casamento, sexo e procriação. A evolução dos costumes, o movimento de mulheres, a disseminação dos métodos contraceptivos e a evolução da engenharia genética evidenciam que ditos balizamentos hoje não mais servem para delimitar o conceito de família. Caiu o mito da virgindade, e, agora, sexo – até pelas mulheres – é praticado fora e antes do casamento. A concepção não decorre exclusivamente do contato sexual. O casamento não é mais o único reduto da conjugalidade, mesmo porque as relações extramatrimoniais já dispõem de reconhecimento no âmbito do Direito de Família.
O desafio do novo milênio é buscar o elemento identificador das estruturas interpessoais que autorize inseri-las em um ramo jurídico específico: o Direito de Família. Imperativo, portanto, que se encontre um conceito de entidade familiar que sinalize a natureza do relacionamento entre as pessoas. Esse ponto diferenciador só pode ser encontrado a partir do reconhecimento da existência de um vínculo afetivo. É o envolvimento emocional que cada vez mais serve de parâmetro para subtrair um relacionamento do âmbito do Direito Obrigacional – cujo núcleo é a vontade – e instalá-lo no Direito de Família, cujo elemento estruturante é o sentimento de amor, elo afetivo que funde as almas e confunde patrimônios, fazendo gerar responsabilidades recíprocas e comprometimentos mútuos.
Porém, há uma espécie de família que, até bem pouco tempo atrás, seria impensável inserir no Direito de Família. Trata-se dos pares de pessoas do mesmo sexo. Apesar de com eles conviver a humanidade, por todos os tempos sempre foram alvo da discriminação e do repúdio social.
Mesmo nos países que asseguram a plena liberdade de orientação sexual, há alguma espécie de restrição. Somente na Holanda, Bélgica e Espanha em que é autorizado o casamento, independentemente do sexo dos noivos, não há limitações ao direito de adoção. Já os Estados que autorizam somente o registro de uma união civil, a adoção não é admitida.
No Brasil, país católico que sempre recebeu forte influência da religião, a discriminação é mais acentuada. A tendência é repudiar o que se afasta do vínculo sacramental do matrimônio e do preceito bíblico “crescei-vos e multiplicai-vos”, sem olvidar o dogma de que a união deve perdurar “até que a morte os separe”.
Por isso, o divórcio no Brasil só foi adotado no ano de 1977. A Constituição Federal, que data de 1988, concedeu especial proteção para o que chamou de união estável entre um homem e uma mulher. Mas essa previsão constitucional só foi regulamentada em 1994 e 1996, a partir de quando a união estável passou a receber proteção praticamente igual à assegurada ao casamento. O Código Civil, que data de 2003, emprestou tratamento diferenciado e discriminatório à união estável, estabelecendo distinções que não se coadunam com o comando constitucional.
Os homossexuais são o alvo preferido do anedotário, inclusive nos meios de comunicação, sem que haja qualquer possibilidade de repressão a esse tipo de abuso, como existe, por exemplo, com relação ao negro, que dispõe de legislação repressiva do preconceito de raça desde 1951, com imputação de pena de multa e de prisão. Tal omissão torna mais difícil qualquer abordagem mais séria sobre esse tema, objeto de chacotas e brincadeiras, sendo sistematicamente rotulado de homossexual quem manifesta apoio ao movimento gay.
Além do repúdio da sociedade, a omissão legislativa é total, em face das uniões que prefiro chamar “homoafetivas”, neologismo que cunhei em minha obra “União Homossexual, o Preconceito e a Justiça”, primeira abordagem jurídica de tais questões no Brasil. O uso do vocábulo “homoafetividade” busca afastar a carga de preconceito que a expressão “homossexualidade” contém.
Há um projeto de lei que autoriza duas pessoas do mesmo sexo a firmarem um contrato de convivência, chamado de “parceria civil registrada”, que faculta simples estipulação de cláusulas de caráter patrimonial e assistencial. Não obstante a singeleza de suas previsões, o projeto tramita desde 1995, e, sempre que é submetido a votação, os segmentos conservadores – capitaneados pelas igrejas evangélicas, cada vez mais numerosas e radicais – mobilizam-se com tal vigor, que impedem sua aprovação.
Se é pouca ou quase nenhuma a possibilidade de aprovação de qualquer norma legal que proteja ditas relações, é no âmbito do Poder Judiciário que os vínculos homoafetivos têm obtido algum reconhecimento.
Primeiro, de maneira um pouco tímida, ditos relacionamentos foram identificados como sociedades de fato e julgados com as regras do Direito das Obrigações. Era deferida a divisão do patrimônio amealhado durante o período de convívio, mediante a prova da efetiva participação de cada um dos companheiros na formação do acervo de bens. Mas decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul fixou a competência das varas de família para decidir tais demandas. Assim, a Câmara do Tribunal que tenho a honra de presidir– que julga os recursos envolvendo as ações de família – passou a apreciar as demandas envolvendo as uniões homossexuais. Em 2001, pela primeira vez no Brasil, foi reconhecido como entidade familiar o relacionamento entre duas pessoas do mesmo sexo. Comprovada a vida em comum, de forma contínua, pública e ininterrupta, constituindo uma verdadeira família, foi deferido o direito à herança, concedendo ao sobrevivente todo o patrimônio do de cujus. Posteriormente, outras decisões asseguraram direitos previdenciários e direito real de habitação ao companheiro sobrevivente.
Esse foi um passo significativo para inserir no âmbito do Direito de Família esses relacionamentos que em nada se diferenciam dos vínculos heterossexuais. Ambos têm no afeto a causa de sua constituição. O enlaçamento de vidas leva ao embaralhamento de patrimônios, o que só pode ensejar o reconhecimento de uma comunhão de esforços na sua formação.
No momento em que o Judiciário passa a emprestar juridicidade às relações afetivas entre duas pessoas do mesmo sexo, é certo que a sociedade começará a respeitá-las. Esse é o comportamento que corresponde a uma sociedade democrática, livre, em que cada cidadão tem o direito de viver da maneira que melhor lhe aprouver, não podendo ser alvo do rechaço social e muito menos da exclusão jurídica.
No campo das relações afetivas, é indispensável assegurar a todos o direito de ser feliz, independente de sua orientação sexual, pois, afinal, a felicidade é o grande sonho do ser humano e a razão mesma de sua existência.
Publicado em 14/05/2009.
[1] Advogada especializada em Direito Homoafetivo, Famílias e Sucessões
Ex-desembargadora do Tribunal de Justiça do RS
Vice-Presidente Nacional do IBDFAM
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