Família pluriparental, uma nova realidade

Maria Berenice Dias[1]

 

 

O retrato da família não é mais a foto de um casamento. Muitos fatores levaram ao esgarçamento do seu conceito. Passou-se a falar em entidade familiar e não em família matrimonializada. O distanciamento entre Estado e igreja, fenômeno que adotou o nome de laicização, subtraiu do matrimônio a aréola de sacralidade. Também o movimento feminista tirou o véu de pureza que a virgindade envolvia a mulher. O avançar dos direitos humanos colocou o indivíduo como sujeito de direito e a dignidade humana tornou-se o valor maior. Com todos estes ingredientes, a sociedade mudou de feição produzindo eco nas estruturas de convívio.  Daí falar-se em direito das famílias como forma de albergar no conceito de entidade familiar todas as conformações que têm como elemento identificador o comprometimento mútuo decorrente do laço da afetividade.

A mudança recebeu a chancela da Justiça e acabou impondo a construção do sistema jurídica sob a ótica da pluralidade. Aliás, é como que sempre acontece. As situações que não encontram previsão na lei batem às portas do Judiciário. O juiz, que não consegue chancelar injustiças, encontra formas de enlaçar no âmbito jurídico o que o legislador não previu. Se por desleixo, se por preconceito, não importa. O fato é que a Justiça não pode simplesmente condenar à invisibilidade e negar tutela ao que refoge do modelo engessado na legislação. Esta postura dispõe de nítido caráter punitivo, pois deixa de reconhecer direitos sob a justificativa de o comportamento escapar do modelo recomendado na lei.

Cunhado um novo conceito de família, atentando muito mais à natureza do vínculo que une seus integrantes do que ao seu formato ou modo de constituição, é necessário reconhecer que outras estruturas de convívio merecem ser enlaçadas no âmbito do direito das famílias.  Não há como exigir a diferença de gerações ou a prática sexual entre seus integrantes para se reconhecer a existência de uma família. Esta visão mais abrangente leva à inserção, no âmbito do conceito de família, das chamadas famílias parentais, ou seja, os núcleos de convívio formados por parentes. Não parentes no conceito legal da expressão, segundo graus e linhas de parentesco, aos quais a lei empresta efeitos jurídicos. Merecem ser chamadas de famílias parentais os vínculos de convivência em que há comprometimento mútuo decorrente da afetividade.

A estrutura vivencial entre parentes em linha reta corresponde ao modelo clássico da família, com a presença de ambos os genitores. No entanto, se há somente um ascendente e seus descendentes, chama-se família monoparental. É a entidade familiar formada por um dos pais e seus filhos ou um dos avós ou bisavós com os netos ou bisnetos. Portanto, a família é monoparental quando o vínculo de filiação é transgeracional entre um ascendente e seus parentes em linha reta descendente.

A convivência familiar dos parentes colaterais recebe o nome de família pluriparental. Não importa a igualdade ou diferença do grau de parentesco entre eles. Assim, tios e sobrinhos que vivem em família constituem uma família pluriparental. Igualmente, os irmãos e até os primos que mantêm convivência familiar, são outros exemplos. Por não existir verticalidade dos vínculos parentais em dois planos, é conhecida pelo nome de família anaparental. Assim é possível identificar duas espécies de entidades familiares parentais que se diferenciam pelo elo de parentesco de seus integrantes: monoparental é a formada por um ascendente e seus descendentes e pluriparental, entre parentes da linha colateral.

Também se encaixam no conceito de pluriparentalidade os vínculos que se estabelecem com mais de duas pessoas desempenhando as funções parentais. Estas são novas realidades cada vez mais freqüentes, principalmente quando são utilizadas as modernas técnicas de reprodução assistida, em que mais de uma pessoa faz parte do processo procriativo. Nada justifica alijar qualquer delas do vínculo de filiação. Nestas novas conformações é indispensável reconhecer que o filho tem mais de dois pais, o que lhe garante direitos com relação a todos e todos devem assumir os deveres decorrentes do vínculo pluriparental.

Todas estas situações merecem ser vistas com os olhos na realidade, realidadeque é mesmo plural.

 

 

Publicado em 13/06/2010.

[1] Advogada especializada em Direito das Famílias e Sucessões

Ex-Desembargadora do Tribunal de Justiça-RS

Vice-Presidenta Nacional do IBDFAM

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