Esvaziar os abrigos ou esvaziar a adoção?

Maria Berenice Dias[1]

 

A chamada Lei da Adoção, em vez de agilizar o processo de adoção e reduzir o tempo de crianças e adolescentes institucionalizados, acabou impondo mais entraves para sua concessão. E, ao invés de esvaziar os abrigos, certamente, vai é esvaziou a adoção.

O projeto tem sete artigos. O primeiro dispositivo confessa que a intervenção do Estado é prioritariamente voltada à orientação, apoio, promoção social da família natural, junto à qual a criança e o adolescente devem permanecer. Somente em caso de absoluta impossibilidade, reconhecida por decisão judicial fundamentada, serão colocadas em família substituta, adoção, tutela ou guarda. O segundo artigo introduz 227 alterações no ECA. O quarto modifica acanhadamente o Código Civil e o artigo quinto acrescenta dois parágrafos à lei que regula a investigação oficiosa da paternidade (L 8.560/92).

Ninguém questiona que o ideal é crianças e adolescentes crescerem junto à família biológica. Mas se esse não é o núcleo onde melhor se desenvolverão, terão mais seguranças e a chance de serem felizes, as restrições a adoção deixam de respeitar o melhor interesse de crianças e adolescentes. É a celeridade do processo de adoção que garante a convivência familiar, direito constitucionalmente preservado com absoluta prioridade (CF 227).

Para esse fim – e infelizmente – não se presta a nova legislação, que nada mais fez do que burocratizar e emperrar o direito à adoção.  Aliás, a lei traz um novo conceito, o de família extensa ou ampliada (ECA 25, parágrafo único): é a que se estende para além da unidade pais e filhos ou da unidade do casal, formada por parentes próximos com os quais a criança ou adolescente convive e mantém vínculos de afinidade e afetividade. Para isso a família original devendo ser incluída em programa de orientação e auxílio (ECA 19, § 3º).

Talvez o primeiro percalço esteja em impor à gestante ou à mãe que deseje entregar os filhos à adoção a necessidade de ser encaminhada à Justiça da Infância e da Juventude (ECA 13, parágrafo único). O consentimento para a adoção precisa ser precedido de esclarecimento prestado por equipe interprofissional, em especial, sobre a irrevogabilidade da medida (ECA 166, § 2º). O consentimento precisa ser colhido em audiência pelo juiz, com a presença do Minsitério Público, e isso depois de esgotados os esforços para a manutenção do filho junto à família natural ou extensa (ECA 166, § 3º).     Mas há outros entraves. Não é mais possível a dispensa do estágio de convivência, a não ser que o adotando esteja sob a tutela ou guarda legal do adotante (46, § 1º). Nem a guarda de fato autoriza a dispensa (ECA 46, § 2º), sendo que o estágio precisa ser acompanhado por equipe interprofissional, preferencialmente com apoio de técnicos responsáveis pela execução da política de garantia do direito à convivência familiar, os quais deverão apresentar relatório minucioso (ECA 46, § 4º).

Além disso, a habilitação à adoção transformou-se em um processo altamente burocratizado (ECA 197-A) e se afigura uma demasia condicionar a inscrição dos candidatos a um período de preparação psicossocial e jurídica (ECA 50, § 3º), mediante a frequência obrigatória a programa de preparação psicológica, orientação e estímulo à adoção inter-racial, de crianças maiores ou de adolescentes, com necessidades específicas de saúde ou com deficiências e de grupos de irmãos (ECA 197-C, § 1º). Mas há uma exigência que se afigura particularmente perversa. Incentivar, de forma obrigatória, o contato dos candidatos com crianças e adolescentes que se encontram institucionalizadas e em condições de serem adotados (ECA 50, § 4º). Além de expô-los à visitação, pode gerar neles e em quem as quer adotar, falsas expectativas. Afinal, a visita é tão-só para candidatar-se à adoção, sendo que, depois da habilitação, terá que ser cadastrado em uma lista a ser obedecida quase que cegamente (ECA 197-E, § 1º). Aliás, uma das exceções à ordem de inscrição é no mínimo curiosa: quando o adotante detém a guarda legal de quem tem mais de três anos de idade (ECA 50, § 13, III).

Bem, falando em habilitação, perdeu o legislador a bela chance de explicitamente admitir – como já vem fazendo a jurisprudência – a adoção homoparental. Nada, absolutamente nada, justifica a omissão. Para conceder a adoção conjunta, de modo pouco técnico, fala a lei em “casados civilmente” (ECA 42, § 2º). Ora, quem não é legalmente casado, casado não é! Também é confrontado o preceito constitucional ao ser exigida a comprovação documental da união estável (ECA 197-A, III). É instituto que não requerer prova escrita.

Diante de todos esses tropeços, não tem chance de se tornar efetiva a limitação da permanência institucional em dois anos (ECA 19, § 2º). Às claras que não haverá como o juiz fundamentar que atende ao melhor interesse da criança a necessidade de permanecer institucionalizada por prazo superior. A justificativa só será uma: não há onde colocá-las.

Do mesmo modo, de nenhuma eficácia garantir a tramitação prioritária dos processos, sob pena de responsabilidade (ECA 152, parágrafo único), mas não prever qualquer sanção outra. Não tem qualquer  efeito prático impor a conclusão das ações de suspensão e perda do poder familiar no prazo máximo de 120 dias (ECA 163). Também de nada adianta assegurar prioridade absoluta no julgamento dos recursos, ocorrer no prazo de 60 dias (ECA 199-D). Para isso é dispensada a revisão (ECA 199-C) e admitido parecer oral do Minsitério Público (ECA 199-D, parágrafo único).

A adoção internacional, de fato, carecia de regulamentação. Mas foi tão exaustivamente disciplinada, impondo-se tantos entraves e exigências que, dificilmente, conseguirá alguém obtê-la. Até porque, o laudo de habilitação tem validade de, no máximo, um ano (ECA 52, VII). E, como só se dará a adoção internacional depois de esgotadas todas as possibilidades de colocação em família substituta brasileira, após consulta aos cadastros nacionais (ECA 51, II), havendo a preferência de brasileiros residentes no exterior (ECA 51, § 2º), parece que a intenção foi de vetá-la. Os labirintos que foram impostos transformaram-se em barreira intransponível para que desafortunados brasileiros tenham a chance de encontrarem um futuro melhor fora do país.

Claro que a lei tem méritos. Assegurar ao adotado o direito de conhecer sua origem biológica e acesso ao processo de adoção (ECA 48), é um deles. Aliás, tal já vinha sendo assegurado judicialmente. A manutenção de cadastros estaduais e nacional, tanto de adotantes, como de crianças aptas à adoção (ECA 50, 5º), – o que já havia sido determinada pelo Conselho Nacional da Justiça (Res. 54/08) – é outro mecanismo que visa agilizar a adoção. Inclusive a inscrição nos cadastros deve ocorrer em 48 horas (50, § 8º), cabendo ao Ministério Público fiscalizá-los (ECA 50, § 12). Também é salutar garantir aos pais o direito de visitas e a mantença do dever de prestar alimentos aos filhos quando colocados sob a guarda de terceiros (ECA 33, § 4º).

O fato é que a adoção transformou-se em medida excepcional, a qual deve se recorrer apenas quando esgotados os recursos de manutenção da criança e do adolescente na família natural ou extensa (ECA 39, § 1º). Assim, para milhares de crianças e adolescentes continuará sendo apenas um sonho ter um lar.

 

 

Publicado em 25/07/2009.

 

 

 

 

 

[1] Advogada

Ex-desembargadora do Tribunal de Justiça do RS

Vice-Presidente Nacional do IBDFAM

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