Estatuto da Diversidade Sexual: a promessa de um Brasil sem preconceito

Marta Cauduro Oppermann[1]

Maria Berenice Dias[2]

 

O arrojado Estatuto da Diversidade Sexual[3] promete revolucionar o Congresso Nacional.

Trata-se de um microssistema que visa a promover a inclusão de todos, sem distinção, combater a discriminação e a intolerância por orientação sexual ou por identidade de gênero, inclusive pela criminalização da homofobia.

A ideia não é nova. Em junho de 2008, a Presidência da República editou as Resoluções 56 e 60, convocando a Conferência Nacional GLBTT para elaborar o projeto de lei de um Estatuto da Cidadania.

Esse desafio foi abraçado pelos advogados de todo o Brasil, que, com o auxílio de diversos movimentos sociais, criaram 38 Comissões da Diversidade Sexual da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), para tornar o sonho realidade.

A missão tomou um novo e importantíssimo alento no histórico dia 5 de maio de 2011, quando, por votação unânime, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, em uma decisão com eficácia contra todos e efeito vinculante.

Todos os esforços foram direcionados à conclusão deste anteprojeto, que foi desenhado a partir da concepção moderna de um microssistema, da mesma forma que outras legislações especiais, como o Código de Defesa do Consumidor, os Estatutos da Criança e do Adolescente, do Idoso e da Igualdade Racial, garantindo a igualdade por meio de um tratamento diferenciado.

Não é por outra razão que o Estatuto da Diversidade Sexual elenca princípios, normas de conteúdo material e processual, de natureza civil e penal, que consagram uma série de prerrogativas e direitos a homossexuais, lésbicas, bissexuais, transexuais, travestis, transgêneros e intersexuais.

Ninguém duvida que exista um direito subjetivo à livre orientação sexual e à identidade de gênero. Via de consequência, há o dever jurídico de esse direito ser reconhecido e respeitado.

No entanto, por se tratar de segmento alvo de perseguição religiosa e preconceito social, está sujeito à marginalização e à exclusão. E, como todos os segmentos sociais vulneráveis, merece regras protetivas diferenciadas.

Sabendo-se que é dever do Estado e da sociedade garantir a todos o pleno exercício da cidadania, da igualdade de oportunidades e do direito à participação na comunidade, o Estatuto da Diversidade Sexual impõe normas afirmativas, de inclusão.

O Estatuto também assegura o reconhecimento das uniões homoafetivas no âmbito do Direito das Famílias, das Sucessões, Previdenciário e Trabalhista.

Todas as pessoas têm direito à constituição da família e são livres para escolher o modelo de entidade familiar que lhes aprouver, independente de sua orientação sexual ou identidade de gênero. Dessa forma, são assegurados os direitos ao casamento, à constituição de união estável e sua conversão em casamento, à escolha do regime de bens, ao divórcio, à filiação, à adoção e ao uso das práticas de reprodução assistida, à proteção contra a violência doméstica e familiar, à herança, à concorrência sucessória, ao direito real de habitação e todos os demais direitos assegurados à união heteroafetiva.

O Estatuto da Diversidade Sexual regulamenta o direito ao exercício da parentalidade, garantindo, dentre vários direitos, o acesso às técnicas de reprodução assistida, o uso de material genético, a habilitação, individual ou conjunta à adoção de crianças e adolescentes, a licença-natalidade pelo período de 15 dias a ambos os pais e, ainda, pelo período de 180 dias a qualquer deles.

Nos registros de nascimento e em todos os documentos identificatórios, tais como carteira de identidade, título de eleitor, passaporte, carteira de habilitação não haverá menção às expressões “pai e mãe”, que serão substituídos por “filiação”.

O Brasil reconhecerá os casamentos, as uniões civis e estáveis realizadas em países estrangeiros, desde que cumpridas as formalidades exigidas pela lei do país onde celebrado o ato ou constituído o fato.

O Estatuto promove a vedação à ingerência estatal, familiar ou social na vida privada de cada cidadão, seja para coibir que alguém viva com plenitude suas relações afetivas e sexuais, seja para coibir pressões para que alguém revele, renuncie ou modifique a sua orientação sexual ou a identidade de gênero. No âmbito familiar, por exemplo, a expulsão de um filho menor de idade de casa em razão da sua orientação ou identidade gerará responsabilidade por abandono material e obrigação indenizatória aos responsáveis.

Transexuais, travestis, trangêneros e intersexuais terão assegurado o direito à livre expressão da sua identidade de gênero. Para tanto, será garantido o acesso a procedimentos médicos, cirúrgicos e psicológicos destinados à adequação do sexo morfológico à identidade de gênero.

Por exemplo, havendo indicação terapêutica por equipe médica e multidisciplinar, a adequação à identidade de gênero, por meio de técnicas não-cirúrgicas, como a hormonoterapia, poderá iniciar a partir dos 14 anos de idade.

Já a cirurgia de redesignação sexual somente será autorizada a partir dos 18 anos de idade, sendo vedada qualquer intervenção cirúrgica de caráter irreversível para a determinação de gênero em recém-nascidos e crianças diagnosticadas como intersexuais, sempre que não houver risco à própria vida.

O direito à retificação do nome e da identidade de sexual, independente de realização da cirurgia de transgenitalização, promete colocar fim às agruras e situações vexatórias que transexuais, travestis e intersexuais passam sempre que precisam apresentar documentos. Igualmente, nas escolas de ensino fundamental e médio, bem como nos cursos superiores, será assegurado, no ato da matrícula, o uso do nome social, que deverá constar em todos os registros acadêmicos.

Ninguém poderá ser discriminado ou ter direitos negados por sua identidade de gênero ou orientação sexual. Quem o fizer, cometerá crime de homofobia, cuja pena de reclusão será de 2 a 5 anos. Também serão punidos aqueles que praticarem condutas discriminatórias nas relações de trabalho ou de consumo. Deixar de contratar alguém ou dificultar a contratação por preconceito garantirá ao criminoso pena de reclusão de 1 a 3 anos.

A vedação ao preconceito também atingirá os meios de comunicação. Rádio, televisão, peças publicitárias, internet e redes sociais não poderão fazer qualquer referência de caráter discriminatório em face da orientação sexual ou identidade de gênero.

A fim de se assegurar um tratamento digno, igualitário e respeitoso, os serviços públicos e privados deverão capacitar seus funcionários, evitando, assim, qualquer manifestação de preconceito e discriminação sexual.

A administração pública deverá assegurar igualdade de oportunidades no mercado de trabalho a travestis e transexuais, transgêneros e intersexuais, criando campanhas para elevar a sua qualificação profissional.

E, como toda fonte de conhecimento tem por base a educação, os profissionais desta área deverão abordar as questões de gênero e sexualidade sob a ótica da diversidade sexual, fazendo uso de material didático e metodologias que proponham a eliminação da homofobia e do preconceito.

Estes são alguns dos direitos previstos no Estatuto da Diversidade Sexual, que promete alçar o Brasil a uma das maiores potências democráticas do mundo.

A luta por sua aprovação certamente não será fácil. Contudo, é chegada a hora de homossexuais, lésbicas, bissexuais, transexuais, travestis, transgêneros e intersexuais saírem da margem do sistema legislativo brasileiro. Não se justificam resistências à sua luta.

E, enquanto o Estatuto não é aprovado, cabe a cada cidadão fazer a sua parte para mudar o perverso tratamento discriminatório que atinge este segmento da sociedade, ainda refém do preconceito.

 

 

Publicado em 12/09/2011.

[1] Advogada, membro do IBDFAM.

 

[2] Advogada, Vice-presidente do IBDFAM, Presidenta da Comissão Nacional da Diversidade Sexual.

 

[3] Íntegra do Estatuto da Diversidade Sexual no site www.estatutodiversidadesexual.com.br.