Entre o ventre e o coração

Maria Berenice Dias[1]

 

 

Ninguém questiona que pai é quem, por meio de uma relação sexual, fecunda uma mulher que, levando a gestação a termo, dá à luz um filho. A lei, no entanto, desvincula-se da verdade biológica, gera uma paternidade jurídica baseada exclusivamente no fato de alguém haver nascido no seio de uma família constituída pelos sagrados laços do matrimônio. Tal presunção de paternidade busca prestigiar a família, único reduto em que a procriação sempre foi aceita como legítima.

A necessidade de preservação do núcleo familiar é que enseja o estabelecimento de presunções de paternidade e maternidade, afastando-se do fato natural da procriação. Esse foi também o motivo que levou a legislação civil de 1916 a rotular os filhos de forma absolutamente cruel, fazendo uso de uma terminologia encharcada de discriminação, ao distinguir filhos ilegítimos, espúrios, adulterinos, incestuosos e naturais. Dita classificação tinha como único critério a circunstância de a prole haver sido gerada dentro ou fora do casamento. A situação conjugal do pai e da mãe refletia-se na identificação da prole. Dita catalogação conferia ou subtraía do filho não só o direito à identidade, mas até o direito à sobrevivência, pois sequer podia pleitear alimentos.

A nova ordem jurídica introduzida em 1988 pela Constituição Federal priorizou a dignidade da pessoa humana e proibiu qualquer designação ou discriminação relativa à filiação, assegurando os mesmos direitos e qualificações aos filhos havidos ou não da relação de casamento, como também ao vínculo gerado pela adoção.

O Código Civil atual persiste com presunções de paternidade, nos mesmos moldes da legislação pretérita. Além de repetir o elenco de presunções de paternidade já existente, criou novas hipóteses em se tratando de inseminação artificial homóloga e heteróloga.

Esse panorama legislativo serve para a identificação dos vínculos parentais dentro da estrutura familiar convencional. No entanto, mister questionar esses arranjos legais quer diante do atual conceito de família, quer diante da moderna doutrina, que, de forma segura, não mais define o vínculo de parentesco em função da identidade genética.

Cada vez mais a idéia de família se afasta da estrutura do casamento. O divórcio e a possibilidade de novo casamento, o reconhecimento da existência de outras entidades familiares, bem como a liberdade de reconhecer filhos havidos fora do casamento ensejaram verdadeira transformação no próprio conceito de entidade familiar.

A família pluralizou-se. Já não se vincula aos seus paradigmas originários: casamento, sexo e procriação. O movimento de mulheres, a disseminação dos métodos contraceptivos e os resultados da evolução da engenharia genética evidenciam que esse tríplice pressuposto deixou de servir para balizar o conceito de família. Caiu o mito da virgindade. A concepção não mais decorre exclusivamente do contato sexual, e o casamento deixou de ser o único reduto da conjugalidade. As relações extramatrimoniais até dispõem de assento constitucional, e não se pode mais deixar de albergar no âmbito do Direito de Família as relações homoafetivas.

O desafio dos dias de hoje é buscar o toque diferenciador das estruturas familiares que permita inseri-las no Direito de Família. Mister isolar o elemento que enseja delimitar o conceito de entidade familiar. Para isso, é necessário ter uma visão pluralista das relações interpessoais. Induvidosamente são o envolvimento emocional, o sentimento de amor, que fundem as almas e confundem patrimônios, fazendo gerar responsabilidades e comprometimentos mútuos, que revelam a presença de uma família. Assim, não se pode deixar de reconhecer que é o afeto que enlaça e define os mais diversos arranjos familiares. Vínculo afetivo e vínculo familiar se fundem e se confundem.

Frente à nova realidade familiar, há que questionar também os vínculos parentais. Além da reviravolta na família, também a filiação sofreu significativas vicissitudes. A possibilidade de identificação da realidade genética, com altíssimo grau de certeza por meio dos exames de DNA, desencadeou uma verdadeira corrida na busca da verdade real, em substituição à verdade jurídica definida muitas vezes por singelas presunções legais.

De outro lado, os avanços científicos, permitindo a manipulação biológica, popularizaram a utilização de métodos reprodutivos como a fecundação assistida, a cessão do útero, a comercialização de óvulos ou espermatozóides, a locação de útero, isso tudo sem falar na clonagem.

Diante desse verdadeiro caleidoscópio de situações, cabe perguntar como estabelecer os vínculos de parentalidade. A resposta não pode mais ser encontrada exclusivamente no campo da Biologia, pois situações fáticas idênticas ensejam soluções diametralmente diferentes. Assim, não há como identificar o pai com o cedente do espermatozóide. Também não dá para dizer se a mãe é a que doa o óvulo, a que aluga o útero ou aquela que faz uso do óvulo de uma mulher e do útero de outra para gestar um filho, sem fazer parte do processo procriativo.

Ante essa nova realidade, a busca da identificação dos vínculos familiares torna imperioso o uso de novos referenciais, como o reconhecimento da filiação socioafetiva, a posse do estado de filho e a chamada adoção “à brasileira”. São esses novos conceitos que necessariamente passarão a indicar o caminho, pois a verdade genética deixou de ser o ponto fundamental na definição dos elos parentais.

Assim, a paternidade não pode ser buscada nem na verdade jurídica nem na realidade biológica. O critério que se impõe é a filiação social, que tem como elemento estruturante o elo da afetividade: filho não é o que nasce da caverna do ventre, mas tem origem e se legitima no pulsar do coração.

 

 

Publicado em 25/22/2009.

 

[1] Desembargadora do Tribunal de Justiça do RS

Vice-Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família