Entre a lei e a realidade da vida

Maria Berenice Dias[1]

 

 

Filho não é fruto de geração espontânea.

A gravidez sempre decorreu do contato sexual de um homem e uma mulher.

É necessária a união do material genético de pessoas de sexos diferentes.

Até o surgimento das técnicas de reprodução humana assistida, esta era a única forma de se ter um filho. Para quem não tivesse um par ou não conseguisse engravidar, o caminho era a adoção.

A ausência de politicas públicas de controle de natalidade, a falta de acesso aos métodos contraceptivos, a injustificada criminalização da interrupção da gravidez, traz ao mundo filhos indesejados. Como é demonizada a mulher que abre mão da “sagrada maternidade”, para não se submeter a este discurso, acaba abandonando o filho, seja onde for. Entrega a quem o queira.

Inúmeras são as justificativas do Estado para se apropriar destas crianças. Edita leis cada vez mais rígidas na tentativa de “organizar” os vínculos parentais.

Desde que o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA instituiu o cadastro de adotantes e de adotandos, na vã tentativa de agilizar a aproximação entre estes dois polos desejantes: filhos à espera de pais e pessoas que os querem para filhos, a tendência dos juízes e promotores foi transformar estes meros instrumentos facilitadores em uma ferramenta impeditiva da adoção em desobediência à ordem de anterioridade ou por pessoas não inscritas.

A tendência sempre foi negar a adoção a pretendentes que não se encontrem cadastrados, bem como impedir a adoção consentida, a chamada adoção intuito personae, ou seja, quando a mãe escolhe a quem deseja entregar o filho.

Com o advento da chamada Lei da Adoção – Lei 12.010/2009 – que mais deveria chamar-se de lei anti-adoção, a situação complicou-se em muito. Instalou uma burocracia de tal dimensão que simplesmente as crianças crescem e se tornam inadotáveis. Durante anos são mantidas em verdadeiros depósitos, enquanto amargam rejeições das infrutíferas tentativas de serem reinseridas na família biológica ou acolhidas pela família extensa. Somente depois tem início o moroso processo de destituição do poder familiar, que, de um modo geral, se arrasta por muito tempo, pois são esgotadas todas as vias recursais. Enquanto isso, a criança permanece literalmente depositada em um abrigo.

A imposição a um respeito irrestrito ao cadastro, muitas vezes, gera situações para lá de aterradoras. Para obedecer a ordem de inscrição crianças são arrancadas de seus lares depois de meses ou até anos de convivência com as únicas pessoas que elas reconhecem desde sempre como pai ou como mãe.

Só depois é inscrito cadastro de crianças disponíveis à adoção. Lá permanece invisível e incomunicável – sabe-se lá por quanto tempo – aguardando que seja feita a aproximação com algum candidato devidamente habilitado.

 

É deferido o prazo de 48 horas para a inscrição das crianças e dos candidatos habilitados ao cadastro, sob pena de responsabilidade (ECA 50 § 8º). Cabe ao Ministério Público a alimentação dos cadastros e a convocação dos postulantes à adoção (ECA 50 § 12). Assim, amedrontaram-se juízes e promotores em face da previsão de multa administrativa, em valor de até três mil reais (ECA 258-A). Para não serem penalizados desencadeou-se verdadeira caça a crianças. Mandados de busca e apreensão são expedidos de forma in continenti sem ao menos ser oportunizado averiguar a situação em que se a criança se encontra.

Parece que todo mundo, por puro medo de ser responsabilizado, esqueceu que o ECA busca proporcionar a crianças e adolescentes verdadeiras vantagens para o seu desenvolvimento físico, educacional e emocional sendo prioritária sua permanência no ambiente familiar.

Nada, absolutamente nada permite a retirada da criança do lar onde se encontra.  Imperioso é primeiro averiguar o que atende ao seu melhor interesse. A permanência de crianças em lares que não são de seus pais biológicos configura guarda de fato. E, quando presente tal situação não é permitida a expedição de mandado de busca e apreensão. Nesta hipótese simplesmente não é dispensa a realização de estágio de convivência (ECA 46 § 2º). A lei determina o acompanhamento por equipe interdisciplinar, que deve apresentar relatório a cerca da sua permanência (ECA 46 § 4º).

A colocação em família substituta continua sendo admitida. Basta haver a expressa concordância dos pais, manifestada diretamente em cartório (ECA 166). Agora foi somente explicitada a dispensabilidade da assistência de advogado.  O consentimento dos titulares do poder familiar precisa ser levado a efeito por escrito, devendo ser chancelada em audiência, após receberem orientações e esclarecimentos por equipe interprofissional (ECA 166 § 3º).

O respeito às listagens não é obrigatória. Tanto que o § 13 do art. 50 do ECA enumera as causas em que é permitida a adoção a candidatos não cadastrados, e o art. 197-E § 1º admite a quebra da ordem cronológica quando comprovado ser esta a melhor solução no interesse do adotando.

Deste modo, quando uma criança se encontrar sob a guarda de fato de alguém que não esteja habilitado, ou sem que tenha sido respeitada a ordem de inscrição, ao invés de retirá-la de onde se encontra, deve o juiz determinar o seu acompanhamento por equipe interdisciplinar.

A providência excepcional do abrigamento e a entrega ao inscrito em primeiro lugar só cabe quando o laudo elaborado por equipe interdisciplinar se manifestar pela conveniência da medida e que esta é a melhor solução para atender ao interesse da criança.

O fato de a transferência da guarda ter eventualmente ocorrido sem a chancela judicial não pode gerar a penalização da criança. Se alguém deve ser penalizado é quem eventualmente afrontou a lei. Mas a pena não é a perda do filho.

Entre o medo e o dever, todos devem preservar o direito de crianças permanecerem no seu lar. Tornar obrigatória a observância do cadastro é de uma inconstitucionalidade flagrante por desrespeitar o princípio do melhor interesse e o sagrado direito à convivência familiar.

Desobedecer a norma constitucional e desrespeitar as regras postas na lei é que pode gerar a responsabilização que juízes e promotores tanto temem, por cometerem verdadeiros crimes contra quem merece proteção integral com absoluta prioridade.

Finalmente são disponibilizadas à adoção. Ingressam em um cadastro e ficam invisíveis e inacessíveis.

Enquanto institucionalizadas estão sujeitas a toda sorte de negligência, maus tratos e até a violência física e sexual, o que gera severas sequelas de ordem emocional e psicológica. Quanto mais crescem, maiores são as dificuldades de serem adotadas. Pelo medo da rejeição, testam quem as quer adotar. Por isso – e infelizmente – muitas vezes ocorrem devoluções.

Conclusão: chegam bebês e de lá saem quando atingem a maioridade. São jogados à vida, sem qualquer preparo para viverem em sociedade.

De outro lado, o tempo de espera de quem deseja ter um filho é longo demais. Só o procedimento de habilitação demora mais do que o tempo de uma gestação. Depois, anos de espera, sem a mínima chance de conhecer as crianças que anseiam por um lar. Nem acesso às fotos eles têm. Não lhes é dada a oportunidade de amarem alguém fora do perfil sonhado.

Esta é uma realidade que ninguém vê. Afinal, as crianças estão guardadas, ninguém as conhece. Elas não têm voz, não têm como se rebelarem, como chamar atenção para o descaso a que estão sujeitas. Enfim, permanecem presas sem terem cometido crime algum.

É necessário responsabilizar o Estado pelo negligente abandono a que submete o segmento mais vulnerável da sociedade: crianças e adolescentes que não têm pais, não tem família. Ninguém as cuida como merecem e nem lhes é dada a chance de terem uma família para chamar de sua.

 

 

Publicado em 23/07/2016.

[1] Advogada

Vice-Presidente Nacional do IBDFAM