E a família? Vai muito bem, obrigada!

Maria Berenice Dias[1]

 

 

O modelo tradicional da família sempre foi a união abençoada pelos sagrados laços do matrimônio entre um homem e um a mulher.

O varão sempre precisou ser mais alto, mais velho e ganhar mais do que a mulher. Esta só precisava ser virgem, recatada e obediente, além de uma boa dona de casa, é claro. As jovens nunca precisaram ter preocupação de ordem intelectual ou profissional, pois, com o casamento se tornariam a rainha do lar. A única obrigação – verdadeira missão – era cuidar do lar e criar os filhos.

Aliás, a cerimônia do casamento retrata esta realidade: a noiva, vestida de branco – símbolo de sua pureza e castidade – é entregue pelo pai ao futuro marido.

Com o casamento a identidade da mulher desaparecia, pois era obrigada a adotar o sobrenome do varão. O regime era o da comunhão universal, pois, afinal, cabia ao chefe da sociedade conjugal, ao cabeça do casal, a administração do patrimônio.

A virgindade da noiva era um atributo ligado à sua própria identidade, tanto que, o marido tinha o prazo de 10 dias para pedir a anulação do casamento caso descobrisse que a esposa não era virgem ao casar. Tratava-se de erro quanto à pessoa a tornar insuportável a convivência. Só que tal circunstância não era uma qualidade em si da mulher, mas somente uma maneira de o homem ter certeza de que os filhos eram dele.

Também o casamento era indissolúvel – até que a morte os separasse. Era não, ainda é, pois para pôr fim ao casamento ainda é necessário prazos ou identificação de culpados.

O chamado débito conjugal – que nunca esteve na lei – servia para obrigar o cumprimento do designo: crescei e multiplicai-vos. No entanto, a negativa do exercício da sexualidade ainda autoriza a anulação do casamento, por frustrar a “justa” expectativa de quem casa. Pelo jeito, seria verdadeira afronta ao princípio da confiança, ligada à boa fé-objetiva e que proíbe comportamento contraditório, chamado venire contra factum proprium.

Mas esse modelo de família, imposto pela igreja, não foi obedecido sequer pelo casal mais famoso do mundo. Maria, ao casar, estava grávida de um filho que não era do marido. Também entre eles não havia o débito conjugal, pois haviam feito voto de castidade. Ao depois, como Jesus não era filho de José, é o primeiro caso que se tem notícia de adoção à brasileira, pois foi o recenseamento que fez o casal  ir para  Belém.

Assim, casar grávida, decidir o casal por não ter filhos e  marido perfilhar o filho da mulher são arranjos familiares que já se conhece há, no mínimo, 2 mil anos.

Ou seja, estas são realidades que sempre existiram.

Se não votos de castidade, ao menos métodos contraceptivos para evitar filhos.

Se não concepção por revelação, concepção pelos métodos de reprodução assistida.

Também a filiação socioafetiva que autoriza a adoção unilateral – ao invés de erradamente registrar o filho da mulher em seu nome, a chamada adoção à brasileira – é prática ainda comum.

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Quando a ciência aprendeu a fazer a fertilização de um óvulo em laboratório e conseguiu implantá-lo no ventre da mesma ou de outra mulher, ocasionou a maior revolução que o mundo teve a oportunidade de presenciar no campo da genética. Em face dessa evolução, a concepção não mais decorre, necessariamente, de um contato sexual entre um homem e uma mulher. Agora o sonho de ter filhos está ao alcance de qualquer um. Ninguém precisa ter par, manter relações sexuais, ser fértil para tornar-se pai ou mãe.

Os métodos se sofisticaram, e não é possível negar o uso dos meios reprodutivos em face da orientação sexual de quem quer constituir uma família, ter filhos. O fato é que os homossexuais passaram a se socorrer da concepção medicamente assistida.

O fato é que o alargamento conceitual da entidade familiar acabou ensejando o florescimento da toda uma nova concepção da família com seus diversos matizes. Não se pode dizer que a família está em crise. Crise havia quando a mantença do casamento era imposta a qualquer preço. Os vínculos de filiação eram estabelecidos por meras presunções e o afeto não tinha qualquer relevância jurídica

E a família?

Vai muito bem obrigada!

 

Publicado em 10/09/2009.

[1] Advogada

Ex-desembargadora do Tribunal de Justiça do RS

Vice-Presidente Nacional do IBDFAM

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