Do meu bem aos meus bens

Maria Berenice Dias[1]

 

 

Agora é lei: família é uma relação íntima de afeto.

É o que diz a chamada Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06, art. 5º, inc. III). Ainda que se trate de legislação que visa a coibir e prevenir a violência doméstica, passou a existir uma definição legal da família. Como o sistema jurídico é único, os conceitos servem para todos os fins, não tendo significado restrito à lei em que se encontra.

Com esta tomada de posição do legislador – trazendo para a lei o que está na vida – fica suprida a omissão do Código Civil, que trata da família sem a definir. Limita-se a regular as questões patrimoniais do casamento. No mais, pouca coisa há sobre a união estável e nada, absolutamente nada, é dito sobre as famílias monoparentais, reconhecidas como entidade familiar pela própria Constituição.

A grande preocupação sempre foi o destino dos bens, quer durante o casamento, quer depois de sua dissolução. Daí o cardápio de regimes de bens a ser eleito via pacto pré-nupcial, além da possibilidade de sua alteração durante o casamento.   Mantendo-se omissos os noivos no que diz com os bens, a lei impõe regime que tem nítido conteúdo ético: o da comunhão parcial, em que os bens particulares pertencem a seus titulares, se comunicando os amealhados durante o casamento, em face da presunção de ter havido esforço comum na sua aquisição.

A tentativa de preservar o patrimônio familiar sempre foi – e ainda é – muito acentuada. Tanto quem elabora a lei como quem a aplica revela a clara intenção de manter os bens no âmbito da família, sem atentar às conseqüências de tal postura. Nunca se vislumbrou o mínimo constrangimento em comprometer até a própria sobrevivência de quem ameaça a integridade patrimonial. Nem alimentos eram assegurados. Basta lembrar que os filhos chamados de ilegítimos não podiam ser reconhecidos. Durante décadas as uniões extramatrimonias eram identificadas como sociedades de fato e, até hoje, há enorme resistência em admitir a existência de famílias paralelas ao casamento. A nada esses intrusos faziam jus. Sempre foram condenados à invisibilidade e à fome quem pode comprometer a indivisão dos bens da família constituída pelos “sagrados” laços do matrimônio.

Mas, no momento em que surge um conceito legal de família tendo por tônica o vínculo de afetividade, impõe-se um novo paradigma para a identificação de responsabilidades. É necessário estabelecer consequências ao afeto também na esfera patrimonial.

Chamar alguém de “meu bem” não é uma simples manifestação de carinho. Tem um sentido de propriedade da pessoa que se tornou “objeto” do amor. Mas, quando o afeto gera um vínculo de mútuo compromisso, o envolvimento tem reflexos de outra ordem: o que é meu passa a ser nosso; os meus bens são também seus bens.

A titularidade do patrimônio adquirido durante o período de convivência, em que há investimento de ambos na construção de um núcleo de natureza familiar, gera um estado condominial. Assim, impõe-se a co-titularidade dos bens de conteúdo econômico amealhados durante o período de convivência.

Deixar de chamar alguém de “meu bem”, não pode transformar os “nossos bens” em “meus bens”!

 

 

Publicado em 06/10/2008.

[1] Advogada especializada em Direito Homoafetivo, Famílias e Sucessões

Ex-desembargadora do Tribunal de Justiça do RS

Vice-Presidente Nacional do IBDFAM

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