Direito fundamental à homoafetividade

Maria Berenice Dias[1]

 

 

Sumário: 1. Liberdade e igualdade; 2. Direito à sexualidade; 3. Família e afetividade; 4. Homoafetividade; 5. Uniões homoafetivas.

 

 

1.       Liberdade e igualdade

A regra maior da Constituição brasileira é a que consagra o respeito à dignidade humana, servindo de norte ao sistema jurídico nacional. Este é o pressuposto do Estado Democrático de Direito, conforme expressamente proclama o art. 1º, inciso III, da Constituição Federal. Esse compromisso assenta-se nos princípios da igualdade e da liberdade, sendo consagrados já no preâmbulo da norma maior do ordenamento jurídico.

O art. 5º da Carta Constitucional, ao elencar os direitos e garantias fundamentais, consagra: todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. Garante o mesmo dispositivo, modo expresso, o direito à liberdade e à igualdade. Mas de nada adianta assegurar respeito à dignidade humana e à liberdade. Pouco vale afirmar a igualdade de todos perante a lei, dizer que homens e mulheres são iguais, que não são admitidos preconceitos ou qualquer forma de discriminação. Enquanto houver segmentos alvos da exclusão social, tratamento desigualitário entre homens e mulheres, enquanto a homossexualidade for vista como crime, castigo ou pecado, não se está vivendo em um Estado Democrático de Direito.

 

2.       Direito à sexualidade

A sexualidade integra a própria condição humana. É um direito humano fundamental que acompanha o ser humano desde o seu nascimento, pois decorre de sua própria natureza. Como direito do indivíduo, é um direito natural, inalienável e imprescritível. Ninguém pode se realizar como ser humano, se não tiver assegurado o respeito ao exercício da sexualidade, conceito que compreende tanto a liberdade sexual como a liberdade de livre orientação sexual. O direito a tratamento igualitário independente da tendência sexual. A sexualidade integra a própria natureza humana e abrange a dignidade humana. Todo ser humano tem o direito de exigir respeito ao livre exercício da sexualidade. Sem liberdade sexual, o indivíduo não se realiza.

A orientação sexual adotada na esfera de privacidade não admite restrições. Qualquer interferência configura afronta à liberdade fundamental, a que faz jus todo ser humano, no que diz com sua condição de vida. Como todos os segmentos alvos do preconceito e da discriminação social, as relações homossexuais sujeitam-se à deficiência de normação jurídica, sendo deixados à margem da sociedade e à míngua do Direito.

 

3.       Família e afetividade

Tanto o Estado como a Igreja buscam limitar o exercício da sexualidade ao casamento. A Igreja eleva o casamento à condição de sacramento, e o Estado o identifica como uma instituição. Acaba sendo regulado não só o casamento, mas a própria postura dos cônjuges. A lei impõe-lhes deveres e assegura direitos de natureza pessoal, além de estabelecer seqüelas de ordem patrimonial.

O casamento inicialmente era indissolúvel. A família tinha um perfil conservador, era uma entidade matrimonializada, patriarcal, patrimonializada, indissolúvel, hierarquizada e heterossexual. A dificuldade de as relações extramatrimoniais serem identificadas como verdadeiras famílias revelava a tendência em sacralizar o conceito de casamento. Os relacionamentos que fugissem ao molde legal, além de não adquirir visibilidade, estavam sujeitos a severas sanções. Chamados de marginais, os vínculos afetivos extramatrimoniais nunca foram reconhecidos como família. Primeiro se procurou identificá-los com uma relação de natureza trabalhista, e só se via labor onde existia amor. Depois, a jurisprudência passou a permitir a partição do patrimônio, considerando uma sociedade de fato o que nada mais era do que uma sociedade de afeto.

Com o influxo do Direito Constitucional, o Direito de Família foi alvo de uma profunda transformação, que ocasionou uma verdadeira revolução ao banir injustificáveis discriminações. A Constituição, ao outorgar proteção à família, independentemente da celebração do casamento, vincou um novo conceito, o de entidade familiar, albergando vínculos afetivos outros. No entanto, é meramente exemplificativo o enunciado constitucional ao fazer referência expressa somente à união estável entre um homem e uma mulher e às relações de um dos ascendentes com sua prole.

Pluralizou-se o conceito de família, que não mais se identifica pela celebração do matrimônio. Não há como afirmar que o art. 226, § 3º, da Constituição Federal, ao mencionar a união estável formada entre um homem e uma mulher, reconheceu somente essa convivência como digna da proteção do Estado. O que existe é uma simples recomendação em transformá-la em casamento. Em nenhum momento é dito não existirem entidades familiares formadas por pessoas do mesmo sexo. Exigir a diferenciação de sexos do casal para merecer a proteção do Estado é postura nitidamente discriminatória, que contraria o princípio da igualdade, ignorando a vedação de diferenciar pessoas em razão de seu sexo.

Desimporta a identificação do sexo do par, se igual ou diferente, para se emprestarem efeitos jurídicos aos vínculos afetivos, no âmbito do Direito de Família. Atendidos os requisitos legais para a configuração da união estável, necessário que sejam conferidos direitos e impostas obrigações independentemente da identidade ou diversidade de sexo dos conviventes.

A homossexualidade existe, é um fato que se impõe, estando a merecer a tutela jurídica. O estigma do preconceito não pode fazer com que um fato social não se sujeite a efeitos jurídicos. É no mínimo perverso impor às uniões homossexuais a mesma trilha percorrida pela doutrina e pela jurisprudência às relações entre um homem e uma mulher fora do casamento, até o alargamento do conceito de família por meio da constitucionalização da união estável.

 

4.       Homoafetividade

A sociedade que se proclama defensora da igualdade é a mesma que ainda mantém uma posição discriminatória nas questões da sexualidade. Nítida é a rejeição à livre orientação sexual. A homossexualidade existe e sempre existiu, mas é marcada pelo estigma do preconceito. Tenta-se excluir a homossexualidade do mundo do Direito, mas imperativa sua inclusão no rol dos direitos humanos fundamentais, como expressão de um direito subjetivo que se insere em todas as suas categorias, pois ao mesmo tempo é direito individual, social e difuso.

O direito à homoafetividade, além de estar amparado pelo princípio fundamental da isonomia, cujo corolário é a proibição de discriminações injustas, também se alberga sob o teto da liberdade de expressão. Como garantia do exercício da liberdade individual, igualmente cabe ser incluído entre os direitos de personalidade, precipuamente no que diz com a identidade pessoal e a integridade física e psíquica.

Qualquer discriminação baseada na orientação sexual configura claro desrespeito à dignidade humana, a infringir o princípio maior consagrado pela Constituição Federal. Infundados preconceitos não podem legitimar restrições a direitos, o que fortalece estigmas sociais que acabam por causar sentimento de rejeição e sofrimentos. O núcleo do atual sistema jurídico é o respeito à dignidade humana, que se sustenta nos princípios da liberdade e da igualdade. A proibição da discriminação sexual, eleita como cânone fundamental, alcança a vedação à discriminação da homossexualidade, pois diz com a conduta afetiva e o direito à orientação sexual.

A identificação do sexo da pessoa escolhida em relação a quem escolhe não pode ser alvo de tratamento diferenciado. Se todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, aí está incluída a orientação sexual. O exercício da sexualidade, a prática da conjunção carnal ou a identidade sexual não distinguem os vínculos afetivos. A identidade ou diversidade do sexo do par gera espécies diversas de relacionamento. Assim, melhor é falar em relações homoafetivas ou heteroafetivas do que em relações homossexuais ou heterossexuais.

 

5. Uniões homoafetivas

Impondo a Constituição Federal respeito à dignidade humana, são alvo de proteção os relacionamentos afetivos independente do sexo do par: se formados por homens e mulheres ou só por mulheres ou só por homens. Ainda que, quase intuitivamente, se conceitue a família como uma relação interpessoal entre um homem e uma mulher tendo por base o afeto, necessário reconhecer que há relacionamentos que, mesmo sem a diversidade de sexos, são cunhados também por um elo de afetividade.

Nem a ausência de leis e nem o conservadorismo do Judiciário servem de justificativa para negar direitos aos vínculos afetivos que não têm a diferença de sexo como pressuposto. É absolutamente discriminatório afastar a possibilidade de reconhecimento das uniões estáveis homossexuais. São relacionamentos que surgem de um vínculo afetivo, gerando o enlaçamento de vidas com desdobramentos de caráter pessoal e patrimonial, estando a reclamar regramento jurídico.

Reconhecer como juridicamente impossíveis ações que tenham por fundamento uniões homossexuais é relegar situações existentes à invisibilidade. Enseja a consagração de injustiças, uma vez que chancela o enriquecimento sem causa. Nada justifica, por exemplo, deferir uma herança a parentes distantes em prejuízo de quem muitas vezes dedicou uma vida a outrem e participou da formação do acervo patrimonial. Descabe ao juiz julgar as opções de vida das partes. Deve-se cingir à apreciação das questões que lhe são postas, centrando-se exclusivamente na apuração dos fatos para encontrar uma solução que não se afaste de um resultado justo.

Descabido estabelecer a distinção de sexos como pressuposto para o reconhecimento da união estável. Não se diferencia mais a família pela ocorrência do casamento. Também a existência de prole não é essencial para que a convivência mereça reconhecimento e proteção constitucional, pois sua falta não enseja sua desconstituição. Como filhos ou capacidade procriativa não são essenciais para que a convivência de duas pessoas mereça a proteção legal, não se justifica deixar de abrigar, sob o conceito de família, as relações homoafetivas. Excepcionar onde a lei não distingue é uma forma cruel de excluir direitos.

Passando duas pessoas, ligadas por um vínculo afetivo, a manter relação duradoura, pública e contínua, como se casados fossem, formando um núcleo familiar à semelhança do casamento, mister identificá-la como geradora de efeitos jurídicos independentemente do sexo a que pertencem.

Em face do silêncio do constituinte e da omissão do legislador, deve o juiz cumprir a lei e atender à determinação constante do art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil e do art. 126 do Código de Processo Civil. Na lacuna da lei, ou seja, na falta de normatização, precisa o juiz se valer da analogia, costumes e princípios gerais de direito. Nada diferencia tais uniões de modo a impedir que sejam definidas como família. Enquanto não existir um regramento legal específico, mister, no mínimo, a aplicação analógica das regras jurídicas que regulam as relações que têm o afeto por causa: o casamento e as uniões estáveis.

A aversão da doutrina dominante e da jurisprudência majoritária de se socorrerem das leis que regem a união estável e o casamento tem levado singelamente ao reconhecimento da união homossexual como mera sociedade de fato. Sob o fundamento de se evitar enriquecimento injustificado, invoca-se o Direito das Obrigações, o que acaba subtraindo a possibilidade da concessão de um leque de direitos que só existem na esfera do Direito de Família. Presentes os requisitos legais: vida em comum, coabitação, laços afetivos, não se pode deixar de conceder às uniões homoafetivas os mesmos direitos deferidos às relações heterossexuais que tenham idênticas características.

O tratamento diferenciado a situações análogas acaba por gerar profundas injustiças. As relações sociais são dinâmicas. Totalmente descabido continuar pensando a sexualidade com preconceitos, com conceitos fixados pelo conservadorismo do passado e encharcados da ideologia machista e discriminatória, própria de um tempo já totalmente ultrapassado pela história da sociedade humana. Necessário é pensar com institutos jurídicos modernos, que estejam à altura da sociedade dos dias atuais.

Se duas pessoas passam a ter vida em comum, cumprindo os deveres de assistência mútua, em um verdadeiro convívio estável caracterizado pelo amor e respeito mútuo, com o objetivo de construir um lar, inquestionável que tal vínculo, independentemente do sexo de seus participantes, gera direitos e obrigações que não podem ficar à margem da lei.

Mais do que uma sociedade de fato, trata-se de uma sociedade de afeto, o mesmo liame que enlaça os parceiros heterossexuais.

Não se pode falar em homossexualidade sem pensar em afeto. Enquanto a lei não acompanha a evolução da sociedade, as mudanças de mentalidade, a evolução do conceito de moralidade, ninguém tem o direito de fechar os olhos e assumir uma postura preconceituosa ou discriminatória, para não enxergar essa nova realidade. Os aplicadores do Direito não podem ser fonte de grandes injustiças. Descabe confundir as questões jurídicas com as questões morais e religiosas. É necessário mudar valores, abrir espaços para novas discussões, revolver princípios, dogmas e preconceitos.

 

 

Publicado em 18/10/2005.

[1] Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul

Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família-IBDFAM

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