Direito das Famílias: alguns ganhos significativos

Maria Berenice Dias[1]

 

 

Marcar o decurso do tempo oportuniza mensurar o que aconteceu em determinado período. Daí o significado de festejar aniversários e a passagem do ano. Nestas oportunidades se contabilizam vitórias, conquistas, avanços e também se medem os prejuízos decorrentes do descumprimento dos projetos que não se tornaram realidade.

Assim, a chegada do final do ano leva a que se questione o que mudou, em que se progrediu. Este momento também serve de motivação para assumir novas posturas, renovando-se as esperanças de se alcançar a tão almejada felicidade.

Como todos são agentes sociais, as mudanças na sociedade têm a marca da participação de cada um e as conquistas são resultado do agir individual, segundo o compromisso que se assume perante si e os demais.

Este questionamento também cabe ser feito com referência à Justiça. Dos ramos do Direito, o mais sensível é o Direito das Famílias que diz com a vida de cada um enquanto partícipe do mais significativo grupamento social. Por isso cabe perquirir quais foram as mais importantes conquistas no âmbito do, que, afinal, é o mais humano dos direitos.

Os avanços cabem ser mensurados não só na órbita do Judiciário, mas também no âmbito do Legislativo, que, de um modo geral, acaba transformando em lei o que a justiça já vinha reconhecendo ao solver os conflitos que lhe batem à porta. As mudanças sociais são primeiro percebidas pelo juiz, porquanto é ele que tem o compromisso de dar uma resposta aos anseios de uma sociedade sempre em mutação, o que deixa brechas na legislação que tem dificuldade de acompanhar a evolução social. Como a falta de lei não significa ausência de direito, cabe ao Poder Judiciário completar esses vazios. Porém, não basta ao juiz utilizar as ferramentas disponibilizadas, como a analogia e os princípios gerais do direito. A única forma de dar uma resposta satisfatória às situações ainda não contempladas na lei é fazer uso da sensibilidade sem ter medo de fazer justiça.

Cristalizadas as decisões, a jurisprudência acaba adquirindo força normativa e outra não é a saída do legislador senão proclamar os direitos reconhecidos no âmbito do Judiciário. A legislação fruto das decisões de magistrados independentes e atentos é a melhor resposta do direito para garantir a justiça.

As leis editadas neste ano têm estas características que defere a guarda compartilhada e assegura alimentos gravídicos. Também significativos os avanços da jurisprudência quanto às uniões homoafetivas, sinalizando a necessidade de o legislador romper a barreira do preconceito, uma vez que o STJ acolheu a possibilidade jurídica de serem apreciadas no âmbito do Direito das Famílias.

 

Guarda compartilhada

Historicamente, quando da separação dos pais, os filhos ficavam sob a guarda materna. Até a lei dizia isso (Lei do Divórcio 10, §1º).

Agora houve uma profunda alteração (Lei 11.698/2008), ao ser dada nova redação a alguns dispositivos do Código Civil.  Deixa de ser priorizada a guarda individual. Além de definir o que é guarda unilateral e guarda compartilhada (CC 1.583, § 1º), a essa é dada preferência (CC 1.584, § 2º), por garantir maior participação de ambos os genitores no crescimento e desenvolvimento da prole. É assegurada a ambos os genitores a responsabilidade conjunta, conferindo-lhes de forma igualitária os direitos e deveres concernentes à autoridade parental.

Tem o juiz o dever de informar aos pais sobre o significado da guarda compartilhada: mais prerrogativas a ambos, fazendo com que estejam presentes de forma mais intensa na vida dos filhos. A finalidade é priorizar o direito da criança. A guarda conjunta garante, de forma efetiva, a permanência da vinculação mais estrita de ambos os pais na formação e educação do filho, o que a simples visitação não dá espaço. Compartilhar a guarda é o reflexo mais fiel do que se entende por poder familiar. A participação conjunta no processo de desenvolvimento da prole impõe a pluralização das responsabilidades, estabelecendo verdadeira democratização de sentimentos.

O novo modelo de co-responsabilidade é um avanço, pois favorece o desenvolvimento dos filhos com menos traumas, propiciando a continuidade da relação com os dois genitores, com o que retira da guarda a idéia de posse. A lei produziu verdadeira mudança do paradigma jurídico. A guarda compartilhada pode ser fixada por consenso ou por determinação judicial. Caso não estipulada na ação de separação, divórcio ou dissolução da união estável, há a possibilidade de ser buscada em demanda autônoma ou via medida cautelar.  Também pode ser requerida por qualquer dos pais em ação própria (CC 1.584, I). Caso um dos genitores não aceite, deve o juiz determiná-la de ofício ou a requerimento do Ministério Público. Ainda que tenham os pais definido a guarda unilateral, há a possibilidade de um deles pleitear a alteração.

Na demanda em que um dos genitores reivindica a guarda do filho, constatando o juiz que ambos demonstram condições de tê-lo em sua companhia, deve determinar a guarda compartilhada, encaminhando os pais, se necessário, a acompanhamento psicológico ou psiquiátrico (ECA 129, III), para desempenharem a contento tal mister. Mesmo se ambos os pais discordarem, para atender ao melhor interesse do filho, o juiz pode impor o compartilhamento, contanto que tenha por comprovado sua viabilidade. Essa forma, com certeza, traz menos malefícios ao filho do que a regulamentação minuciosa das visitas, com a definição de dias e horários e a previsão de sanções para o caso de inadimplemento.

A dissolução dos vínculos conjugais não leva à cisão nem quanto aos direitos nem quanto aos deveres com relação aos filhos. O rompimento da vida em comum dos genitores não deve comprometer a continuidade dos vínculos parentais, pois o exercício do poder familiar em nada é afetado pela separação. É necessário manter os laços de afetividade, minorando os efeitos que a separação acarreta aos filhos.

Compartilhar a guarda é garantir ao filho que terá pais igualmente engajados no atendimento aos deveres inerentes ao poder familiar.

 

Alimentos gravídicos

A Lei 11.804/2008, que assegura à mulher grávida o direito de receber alimentos de quem ela afirma ser o pai do seu filho, é mais um avanço ao consagrar direito já reconhecido pela jurisprudência.

A obrigação alimentar, desde a concepção, estava mais do que implícita no ordenamento jurídico, mas nada como a lei para vencer a injustificável resistência de alguns juízes em deferir direitos não claramente expressos.  Afinal, a Constituição garante o direito à vida (CF 5º). Também impõe à família, com absoluta prioridade, o dever de assegurar aos filhos o direito à vida, à saúde, à alimentação (CF 227), encargo a ser exercido igualmente pelo homem e pela mulher (CF 226, § 5º). Além disso, o Código Civil põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro (CC 2º).  Ainda assim, a tendência sempre foi reconhecer a obrigação paterna exclusivamente depois do nascimento do filho, e a partir do momento em que ele vem a juízo pleitear alimentos.

Agora, com o nome de gravídicos, os alimentos são garantidos desde a concepção, fazendo retroagir a responsabilidade alimentar do genitor a partir do momento em que são assegurados direitos ao nascituro.

A lei enumera as despesas da gestante que precisam ser atendidas no período que vai da concepção até o parto (2º): alimentação especial, assistência médica e psicológica, exames complementares, internações, parto, medicamentos e demais prescrições preventivas e terapêuticas indispensáveis, a critério do médico. Outros custos podem ser considerados pertinentes pelo juiz.

Bastam indícios da paternidade para a concessão dos alimentos que irão perdurar mesmo após o nascimento, oportunidade em que a verba fixada se transforma em alimentos a favor do filho (6º, parágrafo único). De forma salutar, foram afastados dispositivos do projeto que traziam todo um novo e moroso procedimento, o que não se justificava em face da existência da Lei de Alimentos. Permaneceu somente uma regra processual: a definição do prazo da contestação em cinco dias (7º). Com isso fica afastado o poder discricionário do juiz de fixar o prazo para a defesa (L 5.478/68 5º, § 1º).

A transformação dos alimentos fixados à gestante em favor do filho ocorre independentemente do reconhecimento da paternidade.  Caso o pai  não conteste a ação e não providencie o registro do filho, a procedência da ação deve ensejar a expedição do mandado de registro, sendo dispensável a instauração do procedi­mento de averiguação da paternidade para o estabelecimento do vínculo parental (L 8.560/92).

Claro que leis não despertam a consciência do dever, mas geram responsabilidades. Daí a importância da nova legislação que vem escancarar o princípio da paternidade responsável.

 

Uniões homoafetivas

Quanto a temas em que o legislador se omite, o Judiciário não pode deixar de desempenhar seu mister.  Histórica a decisão do Superior Tribunal de Justiça[2] ao determinar o prosseguimento da ação em que um casal formado por um brasileiro e um canadense buscou o reconhecimento judicial de constituírem uma união estável.

Vivendo juntos há 20 anos e casados no Canadá, pretendem a obtenção do visto de permanência para fixarem residência no Brasil. Tanto o juiz de São Gonçalo como o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro haviam fulminado a ação, alegando “impossibilidade jurídica do pedido”, ou seja, que a ação não poderia ser proposta por falta de previsão legal.

A decisão foi reformada pelo STJ que assegurou o acesso à justiça.  Não foi reconhecida a existência do vínculo entre ambos e nem declarado que se trata de uma união estável. Mas houve uma tomada de posição sobre tema envolto em preconceito e alvo de tanta discriminação. Daí o significado do julgamento, pois impõe a inclusão das uniões homoafetivas no âmbito de proteção do sistema jurídico  como entidade familiar.

Pela primeira vez é admitido, por um Tribunal Superior, que as pretensões envolvendo pares homossexuais merecem ser apreciadas pela Justiça. Aliás, neste sentido já vem se manifestando, de forma cada vez mais freqüente, tanto a justiça comum como as justiças especializadas de vários Estados, garantindo direitos patrimoniais e sucessórios.

O Supremo Tribunal Federal, ao menos em duas oportunidades, já manifestou postura francamente favorável ao reconhecimento das uniões homoafetivas como entidade familiar. Os Ministros Celso de Melo e Marco Aurélio, em decisões monocráticas, mostraram indignação ante ao descaso social a este segmento da população. Fora disso, o Superior Tribunal Eleitoral, pelo voto do Ministro Gilmar Mendes, declarou a inelegibilidade da parceira de quem ocupa cargo político.

Como as demandas propostas pelo Ministério Público, perante a Justiça Federal, têm eficácia erga omnes, tal levou o INSS a expedir Resolução Normativa para a concessão de direitos previdenciários aos parceiros do mesmo sexo.

Mas o grande mérito da recente decisão foi impor o cumprimento da lei. Afinal, a Lei 11.340/06, de combate à violência doméstica – a chamada Lei Maria da Penha – definiu entidade familiar como “qualquer relação íntima de afeto” e, repetidamente, refere que tais relações independem de orientação sexual.

Assim, ao determinar o prosseguimento da ação, o STJ cumpre sua função maior: assegurar a vigência da legislação infraconstitucional. Além disso, claramente, o Poder Judiciário manda um recado ao Poder Legislativo: falta de lei não significa ausência de direito.

Estes os principais avanços ocorridos no âmbito do Direito das Famílias. Não foram muitos, mas todos significativos. O jeito é torcer para que daqui para frente tanto o legislador como o juiz cada vez mais tenham a consciência de que é chegada a hora de reconhecer que o afeto é uma realidade digna de tutela.

 

Publicado em 02/01/2009.

[1] Advogada especializada em direito das famílias e sucessões

Ex-desembargadora do Tribunal de Justiça do RS

Vice-Presidente Nacional do IBDFAM

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[2] STJ – REsp 820475/RJ, Rel. Min.  Antônio de Pádua Ribeiro, Rel. p/ Acórdão Min.  Luis Felipe Salomão, quarta turma, julgado em 02/09/2008, DJ 06/10/2008.