Direito à identidade trans

Maria Berenice Dias[1]

 

Há uma resistência generalizada em aceitar o que refogue à mesmice do igual.

A zona de conforto de todo mundo é identificar-se com a maioria, afastando tudo o que aparenta ser diferente. Esta tendência da sociedade de excluir quem não é espelho, enseja uma perversa invisibilidade. Ainda assim o legislador tem enorme resistência em albergar no âmbito da tutela jurídica segmentos que se distanciam do padrão convencional.

Forma-se, assim, um verdadeiro círculo vicioso.  Quem é diferente é repudiado. Esta rejeição leva os parlamentares a se omitirem. Com medo de comprometer sua reeleição, eles simplesmente ignoram o direito dos segmentos minoritários alvo da rejeição social. E, sem lei, quem bate às portas do Poder Judiciário, no mais das vezes, recebe como resposta um solene não: não dispõe de direito algum, sua pretensão é impossível por não ser reconhecida por uma regra legal.

Este silogismo raso leva a injustiças enormes.

No âmbito da sexualidade – tema ainda mais propenso à imposição de rígidos parâmetros comportamentais – as sequelas são ainda mais severas.

Para livrar-se das responsabilidades para com os seus cidadãos, o Estado sacraliza a família, concedendo-lhe especial proteção. Em contrapartida, impõe o dever de mutua assistência ao par; a solidariedade para com os parentes; confere aos pais os encargos do poder familiar com relação aos filhos; bem como o dever de cuidado para com seus idosos.

Daí o interesse pela mantença da família. Tanto que sempre houve enorme resistência em aceitar a dissolução do casamento, que devia perdurar para sempre, mesmo na tristeza, na saúde e na pobreza.

Também foi difícil aceitar que o conceito de entidade familiar enlaça outras estruturas de convívio. Tudo pelo temor de um desvirtuamento da precípua função imposta à família de perpetuar a espécie e assumir as responsabilidades parentais.

Outra não pode ser a justificativa para a rejeição às famílias homoafetivas. A impossibilidade de o casal cumprir o designo de se multiplicar, deixa evidente o exercício da sexualidade para fins meramente recreativos, o que é considerado pecado por muitas religiões.

Do mesmo preconceito é alvo quem não corresponde à representação binária entre sexo e identidade de gênero. Travestis, transexuais, transgêneros e intersexuais, por não se identificarem com o gênero aparente que levou à escolha do nome e do sexo quando do registro do seu nascimento, ainda são marginalizados e excluídos. Mais uma vez em razão do afastamento do modelo da sagrada família, constituída pelo homem, a mulher e filhos.

Apesar de o conservadorismo social ter sido atropelado com o florescer dos direitos humanos, a rigidez legal persistiu e até recrudesceu, em face da onda conservadora e fundamentalista que se alastra na sociedade e vem, perigosamente, invadindo as instâncias de poder.

Diante deste verdadeiro obscurantismo, a luz tem sido o Poder Judiciário. Juízes passaram a preencher os vazios legais invocando os princípios que encharcam a Constituição Federal.

O silêncio do legislador deixou de obstaculizar o acesso à justiça. Omissões legais não mais são reconhecidas como ausência de direito. Passou a justiça a exercer função supletiva e integrativa, de modo a dar significado aos comandos constitucionais que impõem o primado do respeito à dignidade, com base nos princípios da igualdade e da liberdade.

Flagrado que alguém não se percebe com a identidade sexual que consta no registro civil, descabida a ideologia de gênero da cisgeneridade compulsória. Nada, absolutamente nada pode à impedir a correção desta dissintonia, que causa enormes constrangimentos.

Em um primeiro momento as cirurgias de adequação genital, foram reconhecidas como mutilantes, a configurar o delito de lesões corporais.

A partir da década de 70, com os avanços das técnicas cirúrgicas, o Conselho Federal de Medicina editou sucessivas normatizações, vigorando hoje, resolução[2] que considera o paciente transexual portador de “desvio psicológico permanente” de identidade sexual, com rejeição do fenótipo e tendência à automutilação e/ou autoextermínio. São estabelecidas diretrizes para a realização de cirurgia de “transgenitalismo” às transmulheres, em face dos bons resultados a neoculpovulvoplastia. Não dispondo do mesmo sucesso as cirurgias de neofaloplastia em transhomens, sua realização, em caráter experimental, está restrita aos hospitais universitários públicos adequados à pesquisa.

A seleção dos pacientes é condicionada ao acompanhamento, pelo prazo de, no mínimo, dois anos, por equipe multidisciplinar constituída por médico psiquiatra, cirurgião, endocrinologista, psicólogo e assistente social.

O tratamento só pode ser realizado em maiores de 21 anos, depois de um diagnóstico médico e diante de características físicas apropriadas à cirurgia.

Depois disso, é que o paciente entra na fila, que demora muitos anos.

O Ministério da Saúde, em 2008, admitiu o Processo Transexualizador pelo Sistema Único de Saúde – SUS. A Portaria 2.803/2013, no entanto, não inclui a cirurgia do tipo neofaloplastia, ofertando aos transhomens somente os procedimentos cirúrgicos mastectomia e histerectomia.

Ainda hoje a transexualidade é catalogada pelo Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – DSM-5, 2014 como doença mental: disforia de gênero – sofrimento que pode acompanhar a incongruência entre o gênero experimentado ou expresso e o gênero designado de uma pessoa.

Há um movimento mundial pela exclusão dessas expressões e despatologização da transexualidade.

Se um grupo significativo de pessoas não corresponde a um critério antropologicamente estabelecido – de ser homem ou ser mulher – não são as pessoas que estão doentes: o critério é que não funciona. Nesse sentido, o Manifesto da Rede Internacional pela Despatologização Trans: Legitimar as normas sociais que constrangem nossas vivências e maneiras de sentir implica invisibilizar e patologizar o restante das opções existentes e marcar um único caminho que não questione o dogma político sobre o qual se fundamenta nossa sociedade: a existência, única e exclusiva, de somente duas formas de ser e sentir.[3]

O dia 20 de outubro o “Dia Internacional de Ação pela Despatologização da Indentidade Trans”.

Neste sentido o anteprojeto do Estatuto da Diversidade Sexual, elaborado pela Comissão da Diversidade Sexual e Gênero do Conselho Federal da OAB, que se encontra na fase de coleta de assinaturas para ser apresentado por iniciativa popular.[4]

Quem nasceu com o órgão sexual diferente do gênero que o identifica, é alvo de bullying homofóbico, tanto por parte da família como na escola, o que leva ao prematuro abandono dos estudos. A desqualificação acaba por limitar a inserção no mercado de trabalho e leva à marginalização social. Os números são assustadores. O Brasil é o país do mundo em que mais se mata travestis e transexuais. No ano de 2016, foram registradas 347 mortes, sem contar as subnotificações.[5]

Em face de todas estas dificuldades e barreiras, as pessoas trans iniciam o tratamento hormonal por conta própria e sem nenhum acompanhamento médico. Apesar dos riscos da automedicação, os resultados são satisfatórios, pois surgem caracteres de identidade secundários, que lhes permite se apresentarem socialmente como pertencentes ao sexo que os identifica.

Quer por medo, quer por pressa, as alterações morfológicas cirúrgicas nem sempre são desejadas.  Como poucos são os hospitais aptos a realizá-las através do SUS, a fila de espera é de muitos anos. Na rede privada o custo é estratosférico.

Deste modo, qual a saída? Claro que se socorrer da Justiça!

Com relação à alteração do nome e da identidade de gênero, longa e demorada foi a trajetória jurisprudencial.

A tendência inicial era negar a alteração do nome em face do princípio da preservação da segurança das relações jurídicas, com base na Lei dos Registros Públicos.[6] Ora, trata-se de lei anterior à Constituição Federal, que consagra, no inciso III do seu art. 1º, o primado do respeito à dignidade da pessoa, que deve prevalecer à regra da imutabilidade do prenome.

O primeiro passo foi admitir somente a troca do nome, o que acabava criando um ser híbrido, com o nome de um sexo e a identificação do gênero de outro. Era exigida a prova da realização de cirurgia de redesignação sexual e o requerente era interrogado e submetido a perícia médica e psicossocial. Ainda assim a tendência era determinar que a mudança fosse averbada no registro civil, constando a condição de transexual na respectiva certidão.

O tema chegou ao Superior Tribunal de Justiça em 2007,[7] que acolheu o recurso do Ministério Público para que ficasse averbado no registro civil que a modificação do nome e do sexo decorreu de decisão judicial.

O Min. João Otávio de Noronha reconheceu haver amparo legal para transexual operado obter autorização judicial para a alteração de seu prenome, substituindo-o por apelido público e notório pelo qual é conhecido no meio em que vive. No livro do cartorário, deve ficar averbado, à margem do registro do prenome e do sexo, que as modificações procedidas decorreram de decisão judicial.[8]

De relatoria da Min. Fátima Nancy, data de 2009, a primeira decisão do STJ admitindo a alteração do prenome e da designação do sexo, de masculino para feminino, de transexual operado. Foi determinado que não constasse das certidões do registro público que a alteração era oriunda de decisão judicial, tampouco que ocorreu por motivo de redesignação transexual.[9]

O Min. Marco Buzzi, em decisão monocrática, acolheu em parte o recurso do Ministério Público autorizando a averbação da alteração do nome e do gênero, apenas no livro cartorário e à margem do registro, de que a retificação do prenome e do sexo da requerente é oriunda de decisão judicial, vedada, qualquer menção a este fato nas certidões do registro público.[10]

Em nenhuma oportunidade o STJ negou homologação a sentenças estrangeiras que determinaram retificações no registro civil de nome e do sexo.[11]

No entanto, Brasil a fora, se multiplicaram decisões admitindo a retificação registral, independente da realização de intervenções cirúrgicas. Nem há como quantificá-las, porque, na maioria das vezes, as ações não chegam ao segundo grau, por ausência de recurso do agente ministerial. E a Justiça sequer dispõe de banco de dados que permita conhecer as decisões dos tribunais.

O julgamento mais recente é do Min. Luiz Felipe Salomão,[12] afirmando que a simples modificação de nome não seria suficiente para a concretização do princípio da dignidade da pessoa humana. Também seriam violados o direito à identidade, à não discriminação e o direito à felicidade.

O tema acabou chegando também ao Supremo Tribunal Federal. Em dois processos houve o reconhecimento da existência de repercussão geral.

Nenhum dos julgamentos está concluído, mas em ambos os temas foram ementados.

E determinado o julgamento conjunto do RE 670.422 e da  ADI 4.275, proposta pela Procuradoria Geral da República, em que é buscado o reconhecimento do direito dos transexuais à troca do prenome e sexo, correspondente à identidade de gênero, impondo-se a interpretação em conformidade com a Constituição do art. 58 da Lei 6.015/73, de modo a ser compreendido o nome social dos transexuais como apelidos públicos notórios, acarretando, em consequência, mudança do registro relativo ao sexo.

Tema 761 – Possibilidade de alteração de gênero no assento de registro civil de transexual, mesmo sem a realização de procedimento cirúrgico de redesignação de sexo.[13]

Tema 778 – Possibilidade de uma pessoa, considerados os direitos da personalidade e a dignidade da pessoa humana, ser tratada socialmente como se pertencesse a sexo diverso do qual se identifica e se apresenta publicamente.[14]

O fato é que não pode o Poder Judiciário impor a alguém que se submeta a cirurgia que não deseja, muitas vezes por medo e outras por não a reconhecer necessária para sentir-se realizado e aceito socialmente.

E mais uma vez, vem a Justiça suprir a injustificável, preconceituosa e criminosa omissão do legislador. À população LGBTI, que ainda não conta com a empatia e o respeito da sociedade, não pode ser penalizada por um Estado que se diz democrático e com o dever constitucional de garantir o direito à dignidade, à identidade, à privacidade e, principalmente, o direito fundamental à busca da felicidade.

 

CONCLUSÃO

À evolução social tem sido sensível a Justiça, colmatando as omissões do legislador. Por isso, é imperioso que seja revisto o Tema firmado em face das decisões já superadas pelo próprio Superior Tribunal Justiça.

Não há como persistir o enunciado:

As pessoas que passarem por procedimento de redesignação sexual tem direito a alteração do prenome e do gênero no registro civil de nascimento.

 

Mister estabelecer sintonia com o Tema 761 do Supremo Tribunal Federal:

 

Possibilidade de alteração de gênero no assento de registro civil de transexual, mesmo sem a realização de procedimento cirúrgico de redesignação de sexo.

 

 

Jurisprudência do STJ

Mudança de sexo. Averbação no registro civil. 1. O recorrido quis seguir o seu destino, e agente de sua vontade livre procurou alterar no seu registro civil a sua opção, cercada do necessário acompanhamento médico e de intervenção que lhe provocou a alteração da natureza gerada. Há uma modificação de fato que se não pode comparar com qualquer outra circunstância que não tenha a mesma origem. O reconhecimento se deu pela necessidade de ferimento do corpo, a tanto, como se sabe, equivale o ato cirúrgico, para que seu caminho ficasse adequado ao seu pensar e permitisse que seu rumo fosse aquele que seu ato voluntário revelou para o mundo no convívio social. Esconder a vontade de quem a manifestou livremente é que seria preconceito, discriminação, opróbrio, desonra, indignidade com aquele que escolheu o seu caminhar no trânsito fugaz da vida e na permanente luz do espírito. 2. Recurso especial conhecido e provido. (STJ, REsp 678.933/RS, 3ª T., Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, j. 22/03/2007).

Recurso especial. Transexual submetido à cirurgia de redesignação sexual. Alteração do prenome e designativo de sexo. Princípio da dignidade da pessoa humana. – Sob a perspectiva dos princípios da Bioética – de beneficência, autonomia e justiça –, a dignidade da pessoa humana deve ser resguardada, em um âmbito de tolerância, para que a mitigação do sofrimento humano possa ser o sustentáculo de decisões judiciais, no sentido de salvaguardar o bem supremo e foco principal do Direito: o ser humano em sua integridade física, psicológica, socioambiental e ético-espiritual. – A afirmação da identidade sexual, compreendida pela identidade humana, encerra a realização da dignidade, no que tange à possibilidade de expressar todos os atributos e características do gênero imanente a cada pessoa. Para o transexual, ter uma vida digna importa em ver reconhecida a sua identidade sexual, sob a ótica psicossocial, a refletir a verdade real por ele vivenciada e que se reflete na sociedade. – A falta de fôlego do Direito em acompanhar o fato social exige, pois, a invocação dos princípios que funcionam como fontes de oxigenação do ordenamento jurídico, marcadamente a dignidade da pessoa humana – cláusula geral que permite a tutela integral e unitária da pessoa, na solução das questões de interesse existencial humano. – Em última análise, afirmar a dignidade humana significa para cada um manifestar sua verdadeira identidade, o que inclui o reconhecimento da real identidade sexual, em respeito à pessoa humana como valor absoluto. – Somos todos filhos agraciados da liberdade do ser, tendo em perspectiva a transformação estrutural por que passa a família, que hoje apresenta molde eudemonista, cujo alvo é a promoção de cada um de seus componentes, em especial da prole, com o insigne propósito instrumental de torná-los aptos de realizar os atributos de sua personalidade e afirmar a sua dignidade como pessoa humana. – A situação fática experimentada pelo recorrente tem origem em idêntica problemática pela qual passam os transexuais em sua maioria: um ser humano aprisionado à anatomia de homem, com o sexo psicossocial feminino, que, após ser submetido à cirurgia de redesignação sexual, com a adequação dos genitais à imagem que tem de si e perante a sociedade, encontra obstáculos na vida civil, porque sua aparência morfológica não condiz com o registro de nascimento, quanto ao nome e designativo de sexo. – Conservar o “sexo masculino” no assento de nascimento do recorrente, em favor da realidade biológica e em detrimento das realidades psicológica e social, bem como morfológica, pois a aparência do transexual redesignado, em tudo se assemelha ao sexo feminino, equivaleria a manter o recorrente em estado de anomalia, deixando de reconhecer seu direito de viver dignamente. – Assim, tendo o recorrente se submetido à cirurgia de redesignação sexual, nos termos do acórdão recorrido, existindo, portanto, motivo apto a ensejar a alteração para a mudança de sexo no registro civil, e a fim de que os assentos sejam capazes de cumprir sua verdadeira função, qual seja, a de dar publicidade aos fatos relevantes da vida social do indivíduo, forçosa se mostra a admissibilidade da pretensão do recorrente, devendo ser alterado seu assento de nascimento a fim de que nele conste o sexo feminino, pelo qual é socialmente reconhecido. – Vetar a alteração do prenome do transexual redesignado corresponderia a mantê-lo em uma insustentável posição de angústia, incerteza e conflitos, que inegavelmente atinge a dignidade da pessoa humana assegurada pela Constituição Federal. No caso, a possibilidade de uma vida digna para o recorrente depende da alteração solicitada. E, tendo em vista que o autor vem utilizando o prenome feminino constante da inicial, para se identificar, razoável a sua adoção no assento de nascimento, seguido do sobrenome familiar, conforme dispõe o art. 58 da Lei n.º 6.015/73. – Deve, pois, ser facilitada a alteração do estado sexual, de quem já enfrentou tantas dificuldades ao longo da vida, vencendo-se a barreira do preconceito e da intolerância. O Direito não pode fechar os olhos para a realidade social estabelecida, notadamente no que concerne à identidade sexual, cuja realização afeta o mais íntimo aspecto da vida privada da pessoa. E a alteração do designativo de sexo, no registro civil, bem como do prenome do operado, é tão importante quanto a adequação cirúrgica, porquanto é desta um desdobramento, uma decorrência lógica que o Direito deve assegurar. – Assegurar ao transexual o exercício pleno de sua verdadeira identidade sexual consolida, sobretudo, o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, cuja tutela consiste em promover o desenvolvimento do ser humano sob todos os aspectos, garantindo que ele não seja desrespeitado tampouco violentado em sua integridade psicofísica. Poderá, dessa forma, o redesignado exercer, em amplitude, seus direitos civis, sem restrições de cunho discriminatório ou de intolerância, alçando sua autonomia privada em patamar de igualdade para com os demais integrantes da vida civil. A liberdade se refletirá na seara doméstica, profissional e social do recorrente, que terá, após longos anos de sofrimentos, constrangimentos, frustrações e dissabores, enfim, uma vida plena e digna. – De posicionamentos herméticos, no sentido de não se tolerar “imperfeições” como a esterilidade ou uma genitália que não se conforma exatamente com os referenciais científicos, e, consequentemente, negar a pretensão do transexual de ter alterado o designativo de sexo e nome, subjaz o perigo de estímulo a uma nova prática de eugenia social, objeto de combate da Bioética, que deve ser igualmente combatida pelo Direito, não se olvidando os horrores provocados pelo holocausto no século passado. Recurso especial provido. (STJ, RESP 1008398/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª T., j. 15/10/2009, DJE 18/11/2009).

Registro público. Mudança de sexo. Exame de matéria constitucional. Impossibilidade de exame na via do recurso especial. Ausência de prequestionamento. Sumula n. 211/STJ. Registro civil. Alteração do prenome e do sexo. Decisão judicial. Averbação. Livro cartorário. […] 4. A interpretação conjugada dos arts. 55 e 58 da Lei n. 6.015/73 confere amparo legal para que transexual operado obtenha autorização judicial para a alteração de seu prenome, substituindo-o por apelido público e notório pelo qual é conhecido no meio em que vive. 5. Não entender juridicamente possível o pedido formulado na exordial significa postergar o exercício do direito à identidade pessoal e subtrair do indivíduo a prerrogativa de adequar o registro do sexo à sua nova condição física, impedindo, assim, a sua integração na sociedade. 6. No livro cartorário, deve ficar averbado, à margem do registro de prenome e de sexo, que as modificações procedidas decorreram de decisão judicial. 7. Recurso especial conhecido em parte e provido. (STJ, REsp 737.993/MG, Rel. Min. João Otávio de Noronha, j. 10/11/2009).
Decisão Monocrática. Acolhido em parte o recurso do Ministério Público para autorizar a averbação, da alteração do nome e do gênero, apenas no livro cartorário e à margem do registro, de que a retificação do prenome e do sexo da requerente é oriunda de decisão judicial, vedada, qualquer menção a este fato nas certidões do registro público. (STJ, REsp 1.043.004/RS, Rel. Min. Marco Buzzi, 4ª T., j. 01/08/2013, Pub. 05/08/2013).

 

Homologações de sentenças estrangeiras

Pedido de homologação de sentença estrangeira, proferida em 18/02/2004 pelo Tribunal de Busto Arsizio – Itália, que determinou a retificação de seu assento civil para que lhe sejam atribuídos sexo e prenome femininos. (STJ, SE/001058/SE, Rel. Min. Barros Monteiro, j. 01/08/2006).

Pedido de homologação de sentença estrangeira, proferida em 23/03/2006 pelo Tribunal de Gênova, Itália, que determinou a retificação da atribuição do sexo na certidão de nascimento e a mudança do nome, após a realização de cirurgia para mudança de sexo. (STJ, SE 2.149 – IT (2006/0186695-0), Rel. Min. Barros Monteiro, j. 04/12/2006).

Pedido de homologação de sentença estrangeira, proferida pelo Tribunal de Treviso, República Italiana, que, em 3 de dezembro de 2003, autorizou a realização de intervenções cirúrgicas para a adequação de seu sexo e, por consequência, a retificação de seu registro civil, com a alteração da designação do gênero e de seu prenome (STJ, SE 002.732 – IT (2007/0105198-0), Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, j. 07/04/2009).

Pedido de homologação de sentença estrangeira proferida pelo Tribunal de Monza – Itália, em 19/09/ 2006, em razão de procedimento cirúrgico autorizado pela Justiça Italiana, determinou a retificação de seu registro civil, para a alteração da designação do gênero e de se prenome. (STJ, SE 004179 – IT (2008/0273512-4), Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, j. 07/04/2009).

Pedido de homologação de sentença estrangeira, proferida pelo Juizado de Primeira Instância N. 3 de Arrecife – Espanha, de autorização de mudança de sexo e de retificação de registro para mudança de prenome (STJ, SE/13.233 – ES (2015/0020486-7), Rel. Min. Francisco Falcão, j. 11/09/2015, Pub. 30/09/2015).

 

Jurisprudência do STF

Direito constitucional e civil. Registros públicos. Registro civil das pessoas naturais. Alteração do assento de nascimento. Retificação do nome e do gênero sexual. Utilização do termo transexual no registro civil. O conteúdo jurídico do direito à autodeterminação sexual. Discussão acerca dos princípios da personalidade, dignidade da pessoa humana, intimidade, saúde, entre outros, e a sua convivência com princípios da publicidade e da veracidade dos registros públicos. Presença de repercussão geral. (STF, Repercussão Geral no Recurso Extraordinário 670.422/RS, Rel. Min. Dias Toffoli, j. 06/09/2014).

Transexual. Proibição de uso de banheiro feminino em shopping center. Alegada violação à dignidade da pessoa humana e a direitos da personalidade. Presença de repercussão geral. 1. O recurso busca discutir o enquadramento jurídico de fatos incontroversos: afastamento da Súmula 279/STF. Precedentes. 2. Constitui questão constitucional saber se uma pessoa pode ou não ser tratada socialmente como se pertencesse a sexo diverso do qual se identifica e se apresenta publicamente, pois a identidade sexual está diretamente ligada à dignidade da pessoa humana e a direitos da personalidade 3. Repercussão geral configurada, por envolver discussão sobre o alcance de direitos fundamentais de minorias – uma das missões precípuas das Cortes Constitucionais contemporâneas –, bem como por não se tratar de caso isolado. (STF, Repercussão Geral no Recurso Extraordinário 845.779/SC, Rel. Min. Roberto Barroso, j.13/111/2014).

Tema 778 – Possibilidade de uma pessoa, considerados os direitos da personalidade e a dignidade da pessoa humana, ser tratada socialmente como se pertencesse a sexo diverso do qual se identifica e se apresenta publicamente.

 

Publicado em 10/07/2017.

 

 

[1] Advogada

Desembargadora aposentada do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul

Pós Graduada e Mestre em Processo Civil

Presidente da Comissão da Diversidade Sexual e Gênero da OAB

Vice-Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM

www. mbdias@terra.com.br

www.mariaberenice.com.br

www. direitohomoafetivo.com.br

www.estatuto diversidadesexual.com.br

 

[2] Resolução 1.955/2010 do CFM.

[3] Manifesto da Rede Internacional pela Despatologização Trans, disponível em http://www.stp2012.info/old/pt/manifesto. Acesso em 25/06/2017.

[4] Texto e adesões disponíveis no site: www.estatutodiversidadesexual.com.br

[5] Brasil é país que mais mata travestis e transexuais, disponível em http://www.em.com.br/app/noticia/especiais/dandara/2017/03/09/noticia-especial-dandara,852965/brasil-e-pais-que-mais-mata-travestis-e-transexuais.shtml. Acesso em 25/06/2017.

[6] Lei 6.015/1973.

[7] STJ, REsp 678.933/RS, 3ª T., Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, j. 22/03/2007. (ementa abaixo e íntegra no site:www.direitohomoafetivo.com.br)

[8] STJ, REsp 737.993/MG, Rel. Min. João Otávio de Noronha, j. 10/11/2009. (ementa abaixo e íntegra no site:www.direitohomoafetivo.com.br)

[9] STJ, RESP 1008398/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª T., j. 15/10/2009, DJE 18/11/2009. (ementa abaixo e íntegra no site:www.direitohomoafetivo.com.br)

[10] STJ, REsp 1.043.004/RS, Rel. Min. Marco Buzzi, 4ª T., j. 01/08/2013, Pub. 05/08/2013. (ementa abaixo e íntegra no site:www.direitohomoafetivo.com.br)

[11] SE/001058/SE, Rel. Min. Barros Monteiro, j. 01/08/2006; STJ, SE 2.149 – IT (2006/0186695-0), Rel. Min. Barros Monteiro, j. 04/12/2006; SE 002.732 – IT (2007/0105198-0), Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, j. 07/04/2009; SE 004179 – IT (2008/0273512-4), Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, j. 07/04/2009; SE/13.233 – ES (2015/0020486-7), Rel. Min. Francisco Falcão, j. 11/09/2015, Pub. 30/09/2015. (ementas abaixo e íntegra no site:www.direitohomoafetivo.com.br)

[12] STJ, RE 1.626.739/RS, 4ª T., Rel. Min. Luís Felipe Salomão, j. 09/05/2017. Acórdão não publicado.

[13] STF, Repercussão Geral no Recurso Extraordinário 670.422/RS, Rel. Min. Dias Toffoli, j. 06/09/2014. (ementa abaixo e íntegra no site:www.direitohomoafetivo.com.br)

[14] STF, Repercussão Geral no Recurso Extraordinário 845.779/SC, Rel. Min. Roberto Barroso, j.13/11/2014. (ementa abaixo e íntegra no site:www.direitohomoafetivo.com.br)