Descer do trono

Maria Berenice Dias[1]

 

Desde o nascimento, as mulheres são submetidas a um rigoroso treinamento para o desempenho da missão à qual foram predestinadas. As meninas são vestidas de “cor de rosa”, furam-lhes as orelhas e colocam-lhes brincos, sendo adornadas com laços, rendas e fitas. Afinal, têm de ser belas e sedutoras e, além disso, meigas, castas e recatadas. Seus brinquedos são bonecas, panelinhas, casinhas, nada mais do que instrumentos que se destinam ao bom desempenho dos seus deveres.

O único e grande sonho de realização é encontrar o príncipe encantado, casar e ser feliz para sempre. Eis que chega o grande dia. Vestida de noiva, com véu e grinalda, é entregue pelo pai ao marido, até que a morte os separe…

Aí começa o seu reinado. Seu cetro é a vassoura, sua coroa, quem sabe, uma lata d’água e seu manto, montanhas de roupas para passar. Como lhe ensinaram, a ela cabe o papel de esposa e mãe, sendo responsável pelas tarefas domésticas. Isso inclui limpar, cozinhar, lavar, costurar, fazer compras, além, é claro, de cuidar da educação e do bom desenvolvimento dos filhos, sem descuidar do marido. Porém, essas lides caseiras não são reconhecidas, não gozam de qualquer prestígio social. Por não ser trabalho remunerado, não é contabilizado, não possui valor econômico. Assim, as donas-de-casa são trabalhadoras que não recebem salário, não fazem jus a descanso semanal, limite de jornada, feriados, licenças nem a aposentadoria ou previdência social.

A obrigação pelo exercício dessas atividades está ligada à equivocada noção de que elas decorrem da natural divisão do trabalho. Por terem as mulheres o monopólio da função reprodutiva e a capacidade de amamentação, a elas se atribui, com exclusividade, toda a responsabilidade pela criação dos filhos e organização do lar.

Todos olvidam que a mulher desempenha papel fundamental para a subsistência não só da família, mas do próprio Estado, pois é responsável pela procriação e criação dos cidadãos de amanhã. Seus filhos são a força de trabalho que irá garantir a continuidade da sociedade. Ainda assim, o trabalho que desempenha não é valorizado.

Quando, apesar de todos esses obstáculos e limitações que as atividades domésticas lhes impõem, elas conseguem se inserir no mercado de trabalho, passam a desempenhar dupla jornada. Como não conseguem se livrar de seus encargos familiares, têm menos disponibilidade de viajar, freqüentar cursos, estudar, isto é, têm menos condições de se qualificar, o que limita salários e dificulta a ascensão profissional.

Não bastasse tudo isso – ou talvez em face de tudo isso –, a rainha do lar ocupa uma posição subordinada e de submissão, pois deve obediência ao marido, dono e senhor da casa.

É preciso que as mulheres tomem consciência de suas potencialidades, busquem a realização pessoal fora do circuito doméstico, desçam do trono e empunhem a bandeira da luta pela igualdade e pelo respeito à sua dignidade humana.

 

Publicado em 05/04/2004.

[1] Desembargadora do Tribunal de Justiça do RS

Vice-Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família

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