Culpado ou inocente?

Maria Berenice Dias[1]

 

 

* Pronunciamento na Mesa de Encerramento do IV Congresso Brasileiro de Direito de Família, em que foram apresentadas as propostas do IBDFAM de alteração e modificação do Código Civil, em Belo Horizonte – MG, no dia 17 de setembro de 2003.

 

A averiguação e a identificação de um culpado tem significado quando o agir de uma pessoa coloca em risco a vida ou a integridade física, moral, psíquica ou patrimonial de outrem ou de algum bem jurídico tutelado pelo Direito. Assim, a segregação de quem comete um ato que pode ameaçar a segurança da sociedade é a maneira eleita pelo Estado para assegurar a organização social.

No entanto, migrar o instituto da culpa para obter-se o desenlace do matrimônio não tem qualquer justificativa. Revela-se de nítido caráter punitivo vedar ao “culpado” a iniciativa do processo de separação, assegurando legitimidade somente ao “inocente” para buscar a desconstituição do casamento (art. 1.572). Ou seja, quem não tem motivo, quem nada tem a imputar contra o par simplesmente precisa aguardar o prazo de um ano para buscar a separação (art. 1.572, § 1º) ou o decurso de dois anos para obter o divórcio (art. 1.580, § 2º). De outro lado, se o autor não logra provar a responsabilidade do réu pelo fim do casamento, o pedido de separação é desacolhido, ele perde a ação e as partes continuam casadas mesmo depois de todo o desgaste de um processo judicial.

Não são exclusivamente esses os motivos que evidenciam o absurdo de o novo Código Civil ter mantido e até tornado mais severa a necessidade de identificar um culpado pela separação, impondo conseqüências de várias ordens.

A Constituição Federal é chamada de Constituição cidadã por priorizar a dignidade da pessoa humana, consagrando como fundamentais os direitos à privacidade e à intimidade, sendo a liberdade o pressuposto do Estado Democrático de Direito. Há que reconhecer que não é somente paradoxal, mas é nitidamente inconstitucional impor a quem busca a separação que invada a privacidade e desnude a intimidade do outro, sem que se possa atinar a razão de o Estado se imiscuir na vida privada de um casal e condicionar a desconstituição do casamento à identificação de um culpado.

Cresce a perplexidade ao se perceber que tal exigência existe somente por diminuto tempo. É que somente se impõe a comprovação da causa do fim do vínculo matrimonial pelo período de um ano, pois, após decorrido esse lapso temporal, qualquer um pode pedir a separação pelo só decurso desse interstício. Mas, se o casal esperar mais um ano, é possível a qualquer um pedir o divórcio, sem que caiba identificar a causa do desenlace do matrimônio. Há outra hipótese em que a causa da separação perde a razão de ser. Quando da conversão da separação em divórcio o culpado é absolvido, pois é vedado que a sentença revele o motivo da separação (art. 1.580, § 1º).

No entanto, a lei não contempla a única causa que pode tornar insuportável a vida em comum. Nenhuma das diversas hipóteses ressuscitadas pelo novo CC permite a identificação de um culpado. O que elenca a lei são meras conseqüências de uma única causa. Somente comete adultério, tenta matar quem não ama mais. O exaurimento do vínculo de afetividade é a única causa que leva alguém a agridir, abandonar, manter conduta desonrosa. Tais atitudes são meros reflexos do fim do amor.

A perquirição da culpa, além de ser de todo impertinente, tem seqüelas perversas, que evidenciam que o interesse do legislador é simplesmente a mantença dos sagrados laços do matrimônio, punindo quem dele quer se afastar. O culpado perde a própria identidade, pois o uso do nome depende da benemerência do inocente (art. 1.578). Ainda que não mais seja condenado a morrer de fome (art. 19 da Lei 6515/1977), o responsável pela separação irá receber alimentos tão-só para assegurar a sobrevivência (art. 1.704, parágrafo único). Afora tal, a inocência do sobrevivente garante-lhe direitos sucessórios ainda que separado de fato há dois anos (art. 1.830).

Não bastasse tudo isso, não deixa de causar estranheza que toda essa everiguação só cabe no processo de separação, sendo absolutamente despicienda quando se tratar de união estável. Nada mais é preciso além da identificação do termo final do período de convívio para a declaração do desfazimento da entidade familiar extramatrimonial.

Ainda que seja dolorido ver o sonho do amor eterno desfeito, ninguém manda no coração e ninguém pode ser condenado por deixar de amar. Portanto, de todo descabida a mantença do instituto da culpa para se chancelar a desconstituição do casamento, devendo ser respeitada a vontade de cada um dos cônjuges. Se o amor descabe impor prejuízos e perdas ou proclamar culpados.

 

 

Publicado em 30/09/2003.

[1]                              Vice-Presidente Nacional do IBDFAM