Código Civil, 15 anos: há o que comemorar?

Maria Berenice Dias[1]

 

 

 

Há a tradição de marcar datas com números redondos. Quer para comemorar, quer para se refletir sobre ganhos ou traçar metas.

A exceção é o atingir 15 anos, principalmente para as jovens. Quem sabe por festejar o ingresso na vida reprodutiva. Dado meramente histórico, como prova o assustador número da gravidez na adolescência.

A tendência de fazer balanços não acontece somente quando as pessoas completam décadas de vida. Tudo o mais também fica sujeito a estes questionamentos.

É o que o IBDFAM está fazendo quando o Código Civil completa 15 anos.

E a pergunta é: há o que comemorar?

Por uma questão de lealdade, primeiro é preciso questionar:

 

Com quantos anos nasceu o Código Civil?

O Projeto original do Código Civil data de 1972, anterior, inclusive, à Lei do Divórcio, que é de 1977. Tramitou pelo Congresso Nacional antes da promulgação da Constituição Federal, em 1988, que adotou uma nova ordem de valores: privilegiou a dignidade humana; estabeleceu a igualdade entre homens e mulheres; esgarçou o conceito de família e proibiu descriminações entre filhos.

Daí o sem-número de emendas que o Projeto sofreu e as críticas com que, até hoje, é bombardeado, após sua promulgação em 2002.

Esta inexplicável lentidão faz com que o Código enxergue a família do início do século passado, constituída somente pelo casamento.  Uma verdadeira instituição, matrimonializada, patrimonializada, patriarcal, hierarquizada e heterossexual. Ignora o surgimento dos novos paradigmas, quer pela emancipação da mulher, quer pela inserção dos vínculos homoafetivos no âmbito da tutela jurídica. Enorme o reflexo no próprio conceito de família com o surgimento dos métodos contraceptivos e a evolução da engenharia genética. Todos estes fatores dissociam os conceitos de casamento, sexo e reprodução. O moderno enfoque dado à família volta-se muito mais à identificação do vínculo afetivo que enlaça seus integrantes. A facilidade com que as pessoas migram de um relacionamento a outro, levando consigo filhos das uniões anteriores fez surgir um caleidoscópio de vínculos parentais.

Não só isso evidencia que o Código Civil já nasceu velho e desatualizado. Sofre de um imobilismo perverso, ao deixar de se amoldar frente a realidade da vida, sempre em ebulição. Consequência: condena à invisibilidade todos os que se afastam do modelo legal.

Por isso são urgentes algumas emendas retificativas. Quem sabe até algumas cirurgias plásticas, para adquirir o viço que a sociedade merece.

 

O que não mudou e o que precisa ser mudado

Ainda que o Código se debruce sobre vários temas, uma mirada no que diz com os vínculos afetivos já permite vislumbrar inúmeros equívocos, presentes em todo o contexto do Direito das Famílias.

 

Separação

Apesar da tendência da doutrina e dos tribunais, insistiu o Código Civil em manter o instituto da separação, dualismo que serviu de justificativa para se conseguir aprovar a Lei do Divórcio.

O casamento era considerado indissolúvel, tentativa legal que, no entanto, nunca impediu as pessoas de trocarem de par. A saída era o desquite, que “rompia” mas não “dissolvia” a sociedade conjugal. A Lei do Divórcio singelamente mudou o se nome para “separação judicial”, com iguais efeitos.

Tão injustificável era sua mantença que a Emenda Constitucional 66/2010, encaminhada pelo IBDFAM, simplesmente subtraiu do texto constitucional a separação, que levou consigo o instituto da culpa.

De forma desleixada, o legislador deixou de promover a adequação legal, o que ensejou a inclusão, no Código de Processo Civil, de sete referências à separação.[2] Do mesmo modo, o Superior Tribunal de Justiça, atentando ao princípio da autonomia da vontade, admitiu que persiste a possibilidade de as pessoas se separarem.[3]   No entanto esta é uma prerrogativa admissível somente em se tratando  de separação consensual. Promovida a ação de separação judicial por um dos cônjuges, a discordância do réu, não permite o decreto da separação.  Manifestando o demandado interesse no divórcio, cabe ao juiz decretá-lo, eis que se trata de direito potestativo que não depende da aquiescência de ambos.

 

Ora, não mais se justifica a permanência do instituto da separação. Findo o amor, possível ser buscado o divórcio, que pode ser decretado mesmo antes da citação do réu, pratica dotada por muitos magistrados. Somente o mandado de averbação é expedido após a citação do réu.

Na eventualidade de a ação ser julgada improcedente, será que o Estado tem legitimidade para impor que permaneçam unidas pessoas que não mais se amam?

 

Culpa

Qual o motivo de o Estado buscar a identificação culpados quando do fim do casamento? Às claras, postura nitidamente punitiva e intimidatória.

Na tentativa de manter o casamento, elenca a lei um rol de atitudes que justificariam o pedido de separação. Somente o “inocente” podia pleitear a separação, provando em juízo a culpa do réu. Mas como identificar o responsável pelo fim do amor? Como comprovar o carinho que não foi feito, as mágoas que se transformam em frustrações, brigas e até em agressões?

Mas há mais. Caso o autor não conseguisse provar a postura culposa do réu, simplesmente o juiz julgaria improcedente a ação, mantendo casados quem já havia se digladiado em uma ação judicial.

Mais ainda. Depois da separação, era necessário aguardar o decurso do prazo de um ano para que qualquer dos ex-cônjuges pudesse pedir o divórcio. Enquanto isso, ficavam em um verdadeiro limbo: não mais eram casados, mas não podiam casar de novo!

Com o passar do tempo, as sequelas da atribuição da culpa foram sendo abrandadas. Primeiro o culpado perdia a guarda dos filhos, o sobrenome e o direito a alimentos. Ou seja, era condenado à morte por inanição, sem identidade e sozinho.

O Código Civil ao menos acabou com a pena de morte ao admitir que o cônjuge culpado recebesse alimentos do seu ex, o coitado do inocente. Só que tinha direito a receber somente alimentos naturais: o valor indispensável para garantir a subsistência.

No momento que a separação foi extinta – e foi -, não há mais a busca de culpados. Não se justifica dilação probatória e a fixação dos alimentos resta atrelada somente às necessidades de quem precisa e das possibilidades de quem paga.

Ainda que tenha o Estado interesse na preservação da família, dispõe de legitimidade para invadir a auréola de privacidade e intimidade dos cônjuges, impondo-lhes que revelem o comportamento do par? Onde andarão as garantias tão preservadas pela nossa Constituição cidadã?

 

União estável

A Constituição Federal concede a mesma e igual proteção à família, independente da sua formatação: se por meio do casamento ou da união estável.

A simples recomendação – aliás, para lá de inútil – de ser facilitada a conversão da união estável em casamento, não hierarquiza os dois institutos. Não coloca o casamento como modelo.

O texto constitucional lhes confere a especial proteção do Estado, sendo ambos fonte geradora de família de mesmo valor jurídico, sem qualquer adjetivação discriminatória.  É uma afronta ao princípio da igualdade diferenciações entre casamento e união estável.

Em que pese a equiparação constitucional, a lei civil, de forma retrógrada e equivocada, outorga à união estável tratamento notoriamente diferenciado. A união estável está regulamentada, em três escassos artigos, no último capítulo do livro do direito das famílias, antes somente da tutela e da curatela. É reconhecida como estável a convivência duradoura, pública e contínua de um homem e de uma mulher, estabelecida com o objetivo de constituição de família. Socorreu-se o legislador da ideia de família como parâmetro para conceder efeitos jurídicos à união estável.

Apesar do desdém do legislador, não existe hierarquia entre casamento e união estável. Casamento e união estável são merecedores da mesma e especial tutela do Estado. Todavia, concede-lhe o Código Civil três escassos artigos (CC 1.723 a 1.726) onde disciplina seus aspectos pessoais e patrimoniais.

Foi o Supremo Tribunal Federal colocou as coisas nos trilhos.  Ao reconhecer como inconstitucional o art. 1.790 do Código Civil, acabou com a odiosa diferenciação entre união estável e casamento – tanto heterossexual como homoafetiva –, no que diz com o direito de concorrência sucessória.  A julgamento dispõe de repercussão geral e tem efeito vinculante e ensejou a edição de tese:[4]

Como o fundamento foi a afronta ao princípio da igualdade, não tem aplicação somente quanto a forma de divisão do patrimônio quando da morte de um dos parceiros. Espraia-se para toda e qualquer diferenciação tanto no âmbito do direito de sucessões como no direito das famílias e em todas as distinções estabelecidas na legislação infraconstitutcional.

Conceder tratamento igual ao casamento e a união estável não afronta o princípio da autonomia da vontade? Será que não mais existe casamento, ou foi a união estável que desapareceu? Agora casamento e união estável são a mesma coisa?

Diante do atual conceito de família: “vínculo de afeto que gera responsabilidades”, os direitos e os deveres são os mesmos. Quer o par resolva casar ou viver em união estável. Quem decide constituir uma família, assume os mesmos e iguais encargos. É indiferente se forem ao registro civil ou ao tabelionado, ou simplesmente tenham o propósito de viverem juntos.

A pessoa é livre para permanecer sozinha ou ter alguém para chamar de seu. Ao optar por uma vida a dois, as consequências de ordem patrimonial e sucessória precisam ser iguais.

Concubinato

Outro questionamento que merece o Código Civil diz com a exclusão do concubinato como entidade familiar (CC 1.727). Nítida a tentativa de negar proteção legal ao que se chama de concubinato adulterino. Acabou o texto ressuscitando a expressão concubinato, sepultada, em boa hora, pela Lei do Divórcio. Ao ser vetada a possibilidade do seu reconhecimento como entidade familiar, se está subtraindo efeitos patrimoniais ao vínculo que, com o respaldo social ou não, existe.

Mas cabe perguntar: quem mantém uniões simultâneas? O homem que traiu foi quem afrontou o princípio da monogamia, cometeu adultério e deixou de cumprir o dever de fidelidade. Logo, é injustificável que seja beneficiado quem mantém um duplo vínculo afetivo. Questiona-se somente com relação a ele a intenção de constituir família. Presume-se que o fato de manter duas entidades familiares significa que ele não quis formar nenhuma família. Assim, o homem sai do relacionamento sem qualquer responsabilidade e o prejuízo é sempre da mulher. O que parece ser um apenamento é um privilégio que só beneficia o parceiro adúltero que não divide o patrimônio amealhado, muitas vezes, com a sua colaboração, nem lhe alcança alimentos e nem tem ela direito sucessórios.

 

Multiafetividade

Talvez a última barreira que falte romper, seja o reconhecimento de iguais direitos aos amores livres, bela expressão que identifica vínculos afetivos entre mais de duas pessoas. O nome poliamor é uma novidade, mas sua existência não.

A amante foi chamada de concubina e depois de companheira. Ao invés de concubinato adulterino, passou-se a falar em união paralela ou simultânea.  No máximo vem a justiça deferindo a divisão dos benefícios previdenciários entre esposa e companheira.

O fato é que, ao invés de rótulos, de presunções legais, da necessidade da chancela estatal, o indispensável é exigir um comportamento ético a todos os atores dos vínculos afetivos. Sem ser piegas, cabe invocar a máxima do Pequeno Príncipe: a responsabilidade por quem se cativa.

Esta é a única limitação cabível quando se fala em afeto e em suas múltiplas facetas. Todos podem amar muitos, mas precisam assumir os ônus decorrentes da confiança que gera no outro. Daí a imposição da paternidade responsável, a primazia da filiação socioafetiva, o reconhecimento judicial da multiparentalidade.

Este é o único limite ao amor: a responsabilidade pelos seus afetos.

Conclusão

Na ânsia em estabelecer a igualdade, olvidou-se o Código Civil de marcar a diferença. A mulher ainda está fora do mercado de trabalho mais qualificado, ganha menos no desempenho das mesmas funções e tem dupla jornada de trabalho, ou seja, ainda não dá para falar em igualdade.

Outra realidade que se impõe, em números quase absolutos, é que os filhos ficam sob a guarda da mãe.

A essa realidade deveria estar atento o codificador, mas omissões não faltam.

Não foram regulamentadas as novas estruturas familiares. Deixou a lei de atentar que a Constituição reconheceu as famílias monoparentais. Tal omissão prejudica o universo de 32% das famílias brasileiras que são chefiadas por mulheres.

Injustificável a falta de responsabilização de quem descumpre os deveres inerentes ao poder familiar. Nenhuma sequela é imposta a quem não cumpre a obrigação de visitar os filhos. Também não há qualquer punição a quem se exime de pagar alimentos de forma reiterada. Não gera a lei, por exemplo, a obrigação solidária de quem omite ou dá informações falsas, causando prejuízos ao credor de alimentos, não cumpre a ordem de desconto ou auxilia o alimentante a ocultar ou dissimular bens.

De outro lado, a falta de regulamentação da filiação socioafetiva, impede que sejam estabelecidos vínculos de filiação com quem exerce as funções parentais. Os exemplos são por demais frequentes. Completamente abandonados pelo pai, os filhos passam a ter estreita vinculação com o companheiro ou marido da mãe. O impedimento da adoção, sem o consentimento expresso do pai, a falta de previsão de concessão da guarda, e até da possibilidade de substituição do sobrenome do pai biológico pelo daquele que desempenha o papel de pai, são silêncios que não se justificam. Revelam a sacralização do vínculo familiar originário, ainda que desfeito, em detrimento do elo de afetividade que se estabeleceu.

Igualmente não foi regulamentada de forma mais explícita as obrigações dos avós, não tendo sequer sido assegurado a eles o direito de convivência. Assim, não auxiliam a genitora quer nos cuidados, quer na subsistência dos netos.

Tais falhas revelam profunda insensibilidade e a tendência generalizada de fingir que não existe o que desagrada à sociedade. É uma forma cruel e perversa de excluir o que não se quer ver. Trata-se postura que dispõe de caráter punitivo ou vingativo. O juiz precisa emprestar juridicidade às situações que lhe são trazidas a julgamento, mesmo na hipótese de inexistir previsão legal. Relegar à invisibilidade o que existe não faz nada desaparecer e, o só fato de existir, merece a proteção do Estado.

As omissões e equívocos do legislador levam a sociedade a continuar dependendo da sensibilidade dos juízes, que não são nem mágicos e nem fadas, pois não têm o dom de fazer desaparecer o que existe, pelo simples fato de ninguém querer enxergar.

 

Publicado em 03/07/2017.

[1] Advogada

Vice-presidente do IBDFAM

Presidente da Comissão da Diversidade Sexual e Gênero da OAB

www.mbdias.com.br

www.mariaberenice.com.br

www.direitohomoafetivo,com.br

www.estatutodiversidadesexual.com.br

 

 

[2]

[3] Recurso especial. Direito Civil. Família. Emenda Constitucional nº 66⁄10. Divórcio direto. Separação judicial. Subsistência.1. A separação é modalidade de extinção da sociedade conjugal, pondo fim aos deveres de coabitação e fidelidade, bem como ao regime de bens, podendo, todavia, ser revertida a qualquer momento pelos cônjuges (CC, arts. 1571, III e 1.577). O divórcio, por outro lado, é forma de dissolução do vínculo conjugal eextingue o casamento, permitindo que os ex-cônjuges celebrem novo matrimônio (CC, arts. 1571, IV e 1.580). São institutos diversos, com consequências e regramentos jurídicos distintos. 2. A Emenda Constitucional nº 66⁄2010 não revogou os artigos do Código Civil que tratam da separação judicial. 3. Recurso especial provido. (STJ, REsp 1.247.098/MS, 4ª T., Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, j. 14/03/2017).

[4] Tese de Repercussão Geral do STF: É inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros prevista no art. 1.790 do CC/2002, devendo ser aplicado, tanto nas hipóteses de casamento quanto nas de união estável, o regime do art. 1.829 do CC/2002. (STF, REs 878.694 e 646.721, T. Pleno, Rel, Min. Luís Roberto Barroso, j. 10/05/2017).