Cláusulas abertas e a ética do julgador

Maria Berenice Dias[1]

 

Palestra proferida na Sociedade de Psicologia no evento Direito e Psicanálise. São Paulo, 3/11/2010.

 

Não há lei – nem dos homens nem do deus de qualquer crença ou religião – que consiga impedir o ser humano de buscar a realização do sonho de ser feliz.

A função do legislador é estabelecer pautas de conduta como forma de garantir o convívio social.

A função principal do julgador, ao menos em sede de direito das famílias é preencher os espaços que o agir das pessoas, fora das estruturas de convívio existentes, escapam do referencial normativo. Mas a postura do legislador, na tentativa de inibir condutas que desatendam aos segmentos mais conservadores da sociedade, não pode ser repressiva, punitiva.

São desastrosas as tentativas legais que, singelamente, tentam inibir comportamentos negando direitos.

Condenar à invisibilidade é fonte de grandes injustiças, e os resultados são sempre perversos.

Basta lembrar a negativa de reconhecimento dos filhos havidos fora do casamento, os chamados filhos espúrios.

A vedação buscava coibir o adultério masculino como forma de preservação da instituição do matrimônio. No entanto, o resultado só fez gerar a irresponsabilidade dos homens casados: podiam ter filhos à vontade, pois tal não lhes gerava obrigação alguma.

Os únicos prejudicados eram os filhos, que, para não comprometer a paz da família de quem teve uma aventura amorosa e o azar de ter gerado um filho, podiam ser reconhecidos somente depois da morte ou da separação do genitor.

Também a negativa de reconhecimento do que era chamado de concubinato – as relações extramatrimoniais, hoje nominadas de uniões estáveis – acabou levando ao surgimento de uma legião de famintas e propiciando o enriquecimento ilícito dos homens: o varão aproveitava-se da dedicação da mulher, que cuidava da casa, dele e dos filhos, e, simplesmente por não serem casados, a união não era reconhecida como família. Essas uniões de afeto, pela ausência da chancela legal, passaram a ser identificadas pela jurisprudência como meras sociedades de fato. No máximo, dividia-se patrimônio ou concedia-se indenização por serviços prestados, mas não se reconheciam nem direitos sucessórios nem direito a alimentos.

Postura conservadora tentar impedir a adoção homoparental. A lei admite a adoção por qualquer pessoa maior de 18 anos, independente do estado civil e do sexo candidato à adoção. Mas, para adotar em conjunto, é indispensável que os adotantes sejam casados ou mantenham união estável. Ainda que venham a doutrina e a jurisprudência de vanguarda reconhecendo a união homoafetiva como união estável, nitidamente se visualiza, a vã tentativa de impedir que duas pessoas do mesmo sexo constituam uma família com prole.

Tais restrições que se encontram no Estatuto da Criança e do Adolescente e no Código Civil, além de equivocadas, revela uma postura preconceituosa e discriminatória. Além do mais, abriga duas ordens de inconstitucionalidade: cerceia aos parceiros do mesmo sexo o direito constitucional à maternidade e à paternidade – direito a todos garantido pela própria Constituição ao deferir especial proteção à família, reconhecendo-a como base da sociedade (art. 226) – e também deixa de cumprir o dever imposto ao Estado de garantir a crianças e adolescentes o direito à convivência familiar (art. 227).

Impedir significativa parcela da população que mantém vínculos afetivos estéreis de realizar o sonho da filiação revela atitude punitiva, quase vingativa, como se gays e lésbicas não tivessem condições de desempenhar as funções inerentes ao poder familiar. Também acaba negando a milhões de crianças o direito de sair das ruas, de abandonar os abrigos onde estão depositadas, sonegando-lhes o direito a um lar e a chance de chamar alguém de pai ou de mãe.

Tais restrições somente levará os casais homoafetivos a continuarem a fazer uso dos modernos métodos de reprodução assistida, quando se poderiam estar tirando da marginalidade crianças que o descaso, a violência, o abuso dos pais biológicos heterossexuais deixaram abandonados.

Mas talvez a pior seqüela dessa vã tentativa é que se estará chancelando o engodo, a burla à lei, a afronta à legislação, tal qual já vem ocorrendo. Todas as manobras arquitetadas, por escaparem do controle estatal, acabam desprotegendo a quem a lei quer proteger. Assim, em face da injustificável restrição, somente um do par busca a adoção. O estudo social é limitado ao candidato à adoção, não sendo realizada entrevista com o seu parceiro. Nem sequer é visitada a casa onde a criança irá residir.

Claro que tais deficiências só podem vir em prejuízo da criança que vai viver com ambos e vincular-se afetivamente com os dois. A convivência, certamente, fará surgir o que se chama de estado de filho afetivo, que leva à identificação do vínculo parental chamado de filiação socioafetiva. Porém, a ausência de vínculo jurídico mais uma vez virá em prejuízo da criança, pois não terá, com relação ao parceiro do adotante, a quem considera também seu pai ou sua mãe, qualquer direito, quer em caso de separação, quer em caso de morte. Não fará jus, por exemplo, nem a alimentos nem a direitos sucessórios.

Tudo isso afasta o princípio da proteção integral, que goza cada vez de mais prestígio. Aliás, em nome desse princípio é que se tentam encontrar justificativas para negar a adoção: a criança não terá referenciais de ambos os sexos para seu saudável crescimento; será alvo da discriminação na escola; poderá ter problemas de identidade sexual. No entanto, essa linha de argumentação não é jurídica, e todas as ciências comportamentais que acompanham tais núcleos familiares afirmam que não compromete o sadio desenvolvimento de alguém o fato de ter pais de igual sexo.

Parece que se olvida o que diz a Constituição: que é dever não só da família e da sociedade, mas é também dever do Estado proteger, com absoluta prioridade, o cidadão de amanhã.

E negar um lar não é proteger.

Não é proteger realizar estudo social somente com a pessoa que se candidata à adoção e não revela sua orientação sexual.

Não se pode esquecer que a criança que espera a adoção normalmente já passou por dolorosas experiências de vida – foi abandonada pelos pais, ou foram eles destituídos do poder familiar – e espera ansiosamente por alguém que a queira e a ame de verdade.

 

 

Publicado em 13/11/2010.

[1] Advogada especializada em direito homoafetivo, famílias e sucessões

Presidente da Comissão de Diversidade Sexual e Gênero da OAB

Vice-Presidente Nacional do IBDFAM

www.mbdias.com.br

www.mariaberenice.com.br