Bioética: uma nova visão interdisciplinar

 

Maria Berenice Dias

Advogada especializada em Direito Homoafetivo, Famílias e Sucessões

Ex-desembargadora do Tribunal de Justiça do RS

Vice-Presidente Nacional do IBDFAM

www.mariaberenice.com.br

 

“Aplicarei os regimes para o bem dos doentes segundo meu saber e a minha razão, nunca para prejudicar ou fazer mal a quem quer que seja.”

Esse é o juramento que se apresenta como um verdadeiro pressuposto para o exercício da Medicina.

A ética médica sempre foi baseada nessa visão hipocrática da Medicina. Transcendente era o princípio da benemerência, ou seja, fazer o bem segundo seu saber e sua razão, colocando o paciente em mera posição de beneficiado. A idéia básica era de que os médicos faziam tudo em prol dos pacientes, sendo o bem maior a vida, vida medida em quantidade de tempo, não interessando e sendo vedado inquirir sobre sua qualidade. No cotejo entre quantidade e qualidade de vida, talvez se cifre hoje, face a todos os avanços da Medicina em suas diversas facetas, o grande desafio.

O Papa Pio XII, por ocasião de um Congresso de Anestesiologia realizado em Roma, respondendo à pergunta de qual seria a obrigação dos médicos de tentarem manter vidas, disse, se não com estas, ao menos com palavras neste sentido: Até o limite de uso dos meios normais, não sendo necessário o uso de métodos excepcionais.

Mas, o que à época era excepcional, hoje faz parte dos meios normais: ventiladores de pulmão altamente sofisticados, acesso a exames com resultados rápidos, drogas novas, CTIs com monitorização plena, marca-passos de diversos tipos.

A jovem americana Kareen Killian, após usar tranqüilizantes e ingerir bebidas alcoólicas, entrou em coma e foi mantida em ventilação artificial por cerca de um ano. Inalterado seu estado, em aparente vida vegetativa, seus pais apelaram para a Suprema Corte Americana solicitando que fossem desligados os mecanismos de suporte à vida. Concedida a autorização, embora sem os ventiladores de pulmão ainda houve uma sobrevida de nove anos.

Esse episódio lançou a semente do que hoje é chamado de Bioética.

Por que o apelo à Suprema Corte? Como não havia saída para esse impasse dentro da lei médica, restava recorrer à Justiça.

Ainda que a ética médica se torne mais permissiva, há a necessidade de recorrer à Justiça na busca de respostas a indagações similares. Imperiosa uma visão multidisciplinar ante determinadas situações que geram um verdadeiro entrelaçamento entre a Medicina e o Direito. A necessidade de encontrar respostas levou ao surgimento dos chamados “Comitês de Ética Institucionais”, formados por médicos – a quem continua sendo atribuído o direito da opinião técnica – e representantes da sociedade, religiosos e até filósofos. A esses Comitês cabem as decisões de situações-tipo, que, para se usar um eufemismo, poderiam ser tituladas como “Casos Limítrofes à Vida” ou “A Discussão sobre os Limites da Vida”.

Mas a vida continua sendo vida. E as respostas devem ser buscadas – e isto é o que a Bioética se propõe – na leitura e interpretação de seus quatro princípios básicos: da não-maleficência, da beneficência, da autonomia e da justiça.

Não-maleficência significa não fazer o mal. Esse princípio geral, obrigatório não apenas a quem trabalha na área de saúde, significa que não deve receitar sem antes examinar e diagnosticar, praticar atos desnecessários ou fazer experimentações.

Beneficência é fazer o bem, novamente algo desejável para ser assumido por todos. No caso do médico, apenas obrigação de meios, e não de resultados.

Benemerente compreende-se como o direito do paciente no uso pleno de sua razão – ou de seus responsáveis, quando faltar consciência – de estabelecer os limites em que gostaria de ver respeitada sua vontade em situações fronteiriças. Por exemplo: em um paciente terminal de câncer, são válidas tentativas de uso de quimioterápicos potentes na esperança de prolongar a dor? Ou simplesmente se deve tratar a dor, embora sabendo-se que com essas medidas pode estar sendo apressado o fim? Um paciente que sofreu um acidente vascular cerebral extenso, com comprometimento do tronco cerebral – que, na prática, é igual a morte – , deve ser mantido respirando com o coração batendo? Uma criança anencéfala deve ser encaminhada à UTI neo-natal?

Ou será que existe o direito do indivíduo de antecipadamente dizer: “não quero que tentem nada”. Não se estaria falando aqui  do Dr. Morte – o Dr. Kerosslan?

O mais delicado dos princípios é o da justiça, em face do qual se questiona até que ponto é legal, e não apenas legítimo, suspender os suportes de vida. E até que ponto – e esta é uma faceta que sempre é mistificada e escondida – não se encontram subjacentes motivações econômicas em várias argumentações?

ROBERT M. VEATCH, em seu livro “Death Dying and the Biological Revolution”, indica que, segundo cálculos americanos, um paciente de câncer custa em seu último ano de vida US$ 12.000,00, dispêndio esse, contudo, feito de um modo não-linear, pois nos primeiros seis últimos meses são gastos cerca de US$ 3.000,00 e só no último mês, US$ 3.000,00.

Essa indagação deve levar a profundas reflexões, pois a vida, sendo um bem contido em si mesmo, certamente não pode nem deve ter rótulos de preços. E, hoje, a morte, em alguns países, está-se tornando fator de pressão de gastos para os sistemas de saúde. A morte passou a ser asséptica dentro do silêncio barulhento das CTIs, em que as consciências são aplacadas: as consciências dos que lá trabalham, pois tudo fizeram; as consciências dos familiares, que tudo proporcionaram. E esse fato leva a que os gastos se tornem cada vez mais assustadores. Na luta entre verbas inelásticas e gastos incompressíveis, um novo termo, um novo eufemismo foi criado: o não-investimento.

Só que a Justiça não pode ser contabilista. Ao julgador compete obedecer ao condicionamento do mundo do direito. E, segundo Miguel Reale, o maior filósofo jurídico do país, criou a teoria Tridimensional do Direito: o direito é fato, valor e norma.

Não existem verdades absolutas, são necessárias relativizações. Ética substantivo é igual a moral. Porém, ética adjetivada é mutante com os tempos e com as latitudes e longitudes em um mesmo tempo. E o próprio tempo não é o mesmo em toda parte, aqui se referindo ao tempo dos valores, das riquezas e misérias.

Do poder imperial dos médicos, juízes do destino de seus pacientes, imbuídos do princípio da benemerência, passa-se ao relacionamento horizontal, em que as pessoas podem decidir sobre seus destinos, na proposta do diálogo, da informação, em resumo, da democracia do relacionamento, na assunção da cidadania plena, mesmo na hora da dor e da doença. E é nessa consulta prévia – princípio da autonomia – que reside a grande mudança conceitual. Essa é a reflexão a que nos transporta a Bioética.

É bom sempre recordar o conceito da Organização Mundial de Saúde (OMS), que diz que “Saúde é o completo estado de bem-estar físico, psíquico e social”. Esses bem-estares que, se conseguidos no coletivo, seriam a volta do paraíso na terra, utopia desejada, mas, raras vezes, alcançada, mesmo em nível individual, que costuma levar o nome simples e globalizante de felicidade.

 

 

(Artigo publicado no Jornal Medicina, Órgão Oficial do Conselho Federal de Medicina, nº 104, abril/1999, p. 28; Jornal da OAB/SP, 22ª Sub. São José do Rio Preto – SP, novembro/2003, p. 13 e no site Universo Jurídico. Disponível em: <http://www.uj.com.br/>. Acesso em: 02 fev. 2004).