Até que enfim, o fim da separação!
Maria Berenice Dias[1]
A Emenda Constitucional nº 66,[2] ao excluir a parte final do § 6º do art. 226 do Constituição Federal trouxe três avanços significativos: acabou com a imposição de prazos para a concessão do divórcio; eliminou a identificação de culpados ao afastar a inquirição de causas para o decreto da dissolução do casamento; e, finalmente, acabou com o instituto da separação.
Todas estas mudanças se evidenciam ao se atentar ao que antes estava escrito. A redação anterior dizia: O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, após prévia separação judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou comprovada separação de fato por mais de dois anos. Ou seja, eram impostas restrições à concessão do divórcio: (a) ter ocorrido a separação judicial há mais de um ano; ou (b) estarem os cônjuges separados de fato há pelo menos dois anos.
Ao ser excluída a parte final do indigitado dispositivo constitucional, desapareceu toda e qualquer restrição para a concessão do divórcio, que cabe ser concedido sem prévia separação e sem o implemento de prazos. A partir de agora a única ação dissolutória do casamento é o divórcio que não mais exige a indicação da causa de pedir. Eventuais controvérsias referentes a causa, culpa ou prazos deixam de integrar o objeto da demanda. Via de consequência não subsiste sequer a necessidade do decurso de um ano do casamento para a obtenção do divorcio (CC 1.574).
No entanto, como foi mantido o verbo “pode” há quem sustente que não desapareceu o instituto da separação, persistindo a possibilidade de os cônjuges buscarem sua concessão pelo só fato de continuar na lei civil dispositivos regulando a separação.
A conclusão é para lá de absurda, pois vai de encontro ao significativo avanço levado a efeito: afastou a interferência estatal que, de modo injustificado, impunha que as pessoas se mantivessem casadas. O instituto da separação foi eliminado. Todos os dispositivos da legislação infraconstitucional a ele referente restaram derrogados e não mais integram o sistema jurídico. Logo, não é possível buscar em juízo a decretação do rompimento da sociedade conjugal.
Outra tentativa de não ver o novo, é sustentar a necessidade de manter a odiosa identificação de um culpado para a separação, porque a quantificação do valor dos alimentos está condicionada à culpa de quem os pleiteia (CC 1.694, § 2º). No entanto, tal redutor está restrito ao âmbito dos alimentos e de forma alguma pode condicionar a concessão do divórcio, até porque caíram por terra os arts. 1.702 e 1.704 da lei civil.
Há um argumento derradeiro de quem quer assegurar sobrevida à separação. Havendo arrependimento, a necessidade de ocorrer novo casamento obrigaria a partilha dos bens do casamento anterior ou a adoção do regime da separação obrigatória (CC 1.523, III e 1.641, I).
Mais uma vez a resistência não convence. Havendo dúvidas ou a necessidade de um prazo de reflexão, tanto a separação de fato como a separação de corpos preservam o interesse do casal. Qualquer dessas providências suspende aos deveres do casamento e termina com a comunicabilidade dos bens. A separação de corpos, inclusive, pode ser levada a efeito de modo consensual por meio de escritura pública. E, ocorrendo a reconciliação tudo volta a ser como era antes. Sequer há a necessidade de revogar a separação de corpos. O único efeito – aliás, bastante salutar – é que bens adquiridos e as dívidas contraídas durante o período da separação é de cada um, a não ser que o par convencione de modo diferente.
Ao que se percebe, a dificuldade que ainda remanesce por parte de alguns, talvez seja uma vã tentativa de garantir uma reserva de mercado de trabalho. Mantida a separação, persistiria a necessidade da dupla contratação de advogado, a propositura de dois procedimentos judiciais ou a lavratura de duas escrituras.
Parece que não se está atentando ao prevalente interesse das partes: significativa economia de tempo, dinheiro e desgaste emocional não só dos cônjuges, mas principalmente de sua prole. E mais, não se pode desprezar a redução do volume de processos no âmbito do Poder Judiciário, a permitir que os juízes deem mais atenção ao invencível número de demandas que exigem rápidas soluções.
A nova regra entrou imediatamente em vigor, não carecendo de regulamentação. Afinal, o divórcio está regrado no Código Civil, e a Lei do Divórcio manda aplicar ao divórcio consensual o procedimento da separação por mútuo consentimento (art. 40, § 2º). Assim, nada mais é preciso para implementar a nova sistemática. Por isso é necessário alertar que a novidade atinge as ações em andamento. Todos os processos de separação perderam o objeto por impossibilidade jurídica do pedido (CPC 267, inc. VI). Não podem seguir tramitando demandas que buscam uma resposta não mais contemplada no ordenamento jurídico.
Como a pretensão do autor, ao propor a ação, era pôr um fim ao casamento, e a única forma disponível no sistema legal pretérito era a prévia separação judicial, no momento em que tal instituto deixa de existir, ao invés de extinguir o processo cabe deve o juiz transformá-la em ação de divórcio.
De um modo geral, nas ações de separação não há inconformidade de nenhuma das partes quanto a dissolução da sociedade conjugal. Somente era utilizado dito procedimento por determinação legal, que impunha a indicação de uma causa de pedir: decurso do prazo da separação ou imputação da culpa ao réu. Como o fundamento do pedido não cabe mais ser questionado, deixa de ser necessária qualquer motivação para o decreto da dissolução do casamento.
Eventualmente cabe continuar sendo objeto de discussão as demandas cumuladas, mas o divórcio deve ser decretado de imediato. Existindo filhos menores ou incapazes, as questões relativas a eles precisam ser acertadas. É necessária a definição da forma de convivência com os pais – já que a preferência legal é pela guarda compartilhada – e o estabelecimento do encargo alimentar. Sequer os aspectos patrimoniais carecem de definição, eis ser possível a concessão do divórcio sem partilha de bens (CC 1.581).
Uma vez que o pedido de separação tornou-se juridicamente impossível, ocorreu a superveniência de fato extintivo ao direito objeto da ação, o que precisa ser reconhecido de ofício (CPC 462). Logo, sequer há a necessidade de a alteração ser requerida pelas partes. Cabe ao juiz dar ciência às partes da conversão da demanda de separação em divórcio. Caso os cônjuges silenciem, tal significa concordância que a ação prossiga com a concessão do divórcio. A discordância de uma das partes – seja do autor, seja do réu – não impede a dissolução do casamento. Somente na hipótese de haver expressa oposição de ambos os separandos à concessão do divórcio deve ser decretada a extinção do processo por impossibilidade jurídica do pedido, pois não há como o juiz proferir sentença chancelando direito não mais previsto na lei.
Do mesmo modo, encontrando-se o processo de separação em grau de recurso, descabe ser julgado. Nem ao menos é necessário o retorno dos autos à origem, para o divórcio ser chancelado pelo juízo singular. Deve o relator intimar as partes e, não havendo a irresignação de ambas, cabe decretar o divórcio, o que não fere o princípio do grupo grau de jurisdição.
A verdade é uma só: a única forma de dissolução do casamento é o divórcio, eis que o instituto da separação foi banido – e em boa hora – do sistema jurídico pátrio. Qualquer outra conclusão transformaria a alteração em letra morta.
Publicado em 14/09/2010.
[1] Advogada especializada em Direito das Famílias e Sucessões
Ex-Desembargadora do Tribunal de Justiça-RS
Vice-Presidenta Nacional do IBDFAM
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[2] Emenda Constitucional nº 66 de 13.07.2010 – DOU 14.07.2010. Art. 1º: O § 6º do art. 226 da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte redação: O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio.