As uniões homoafetivas no STF

Maria Berenice Dias[1]

 

 

O Supremo Tribunal Federal exerceu com coragem, sensibilidade e sabedoria o encargo que lhe é conferido pela Constituição Federal de colmatar as lacunas no sistema legal.

Afinal, para o reconhecimento de direitos, ninguém pode ficar à mercê do legislador, quando este se nega a legislar, quer alegando motivos de natureza religiosa, quer por temer ser rotulado de homossexuais, ou, quem sabe, por medo de comprometer sua reeleição.

Basta lembrar que data do ano de 1995 o primeiro projeto de lei que, tal qual um punhado de tantos outros, vagaram pelas casas legislativas sem nunca terem sido levados à votação. A maioria foi arquivada. Atualmente existem 16 projetos em tramitação, sem que se vislumbre a possibilidade de serem aprovados. Nem mesmo o que criminaliza a homofobia.

Mas a ausência de lei não significa ausência de direito e nenhum juiz pode se omitir do dever de julgar.

A constatação desta realidade inspirou a criação da Comissão Especial da Diversidade Sexual do Conselho Federal da OAB, que está elaborando um projeto de Estatuto da Diversidade Sexual. O IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família instalou a Comissão de Direito Homoafetivo para qualificar os advogados para atuarem neste novo ramo do direito.

Daí o derrame de ações que vem ocorrendo no âmbito das justiças de todos os tribunais do país.

Os avanços são significativos.

Apesar da dificuldade de se ter acesso ao que julgam juízes e tribunais, por falta de em uma fonte única de pesquisa, já foi possível identificar 1.026 julgados.  Tanto a justiça estadual como a federal, já concederam direitos à população de gays, lésbicas, bissexuais, transexuais e transexuais.

O próprio Supremo Tribunal homologou sentença estrangeira que deferiu a adoção ao parceiro do mesmo sexo do pai biológico. Também deixou de receber o recurso que impugnava a habilitação conjunta à adoção que havia sido admitida pelo Tribunal de Justiça do Paraná.

Por atos da administração, tanto o STF como o Conselho Nacional de Justiça, admitem a inclusão do parceiro de seus servidores no plano de saúde, na condição de dependente.

Os demais Tribunais Superiores se alinham no mesmo sentido. O Tribunal Superior Militar deferiu pensão vitalícia ao parceiro sobrevivente de um militar do Exército.

O Superior Tribunal Eleitoral, ao declarar a inelegibilidade da parceira de uma parlamentar ao cargo de prefeito, nada mais fez do que reconhecer que elas constituíam uma família.

No Superior Tribunal de Justiça foram proferidas 17 decisões.

A mais antiga data do ano de 1998. Apesar de identificar a união como uma sociedade de fato determinou a partilha de bens. No ano de 2010 duas decisões emblemáticas: o deferimento de pensão por morte ao parceiro sobrevivente e a concessão da adoção à parceira da genitora.

Atualmente três ações se encontram em julgamento. Depois de quatro votos favoráveis ao reconhecimento da união estável, aderindo ao posicionamento da Min. Fátima Nancy, houve pedido de vista.

No âmbito da justiça estadual, em dez Estados as ações envolvendo as relações homossexuais são julgadas nas varas de família.

Desde o ano de 2001 são deferidas às uniões homoafetivas direitos no âmbito do Direito das Famílias e das Sucessões.  Ora as reconhecendo como entidade familiar, ora aplicando por analogia a legislação da união estável.

As decisões pioneiras são do Rio Grande do Sul, mas todos os demais Estados vêm decidindo no mesmo sentido.

De modo recorrente, tanto no âmbito da justiça federal como da justiça estadual, são concedidos direitos previdenciários, pensão por morte e a inclusão em plano de saúde. Também se contam às dezenas as decisões que deferem direitos sucessórios, assegurando direito à meação, direito real de habitação, direito à herança bem como o exercício da inventariança. Igualmente vem sendo deferida a curatela do companheiro declarado incapaz. Do mesmo modo, é assegurada a adoção e a habilitação conjunta, bem como declarada a dupla parentalidade quando são usados os meios de reprodução assistida. Ainda que os parceiros sejam gays, reconhecida como doméstica a violência, são aplicadas medidas protetivas da Lei Maria da Penha.

De tão reiteradas as decisões, alguns direitos são deferidos em sede administrativa. Assim a concessão pelo INSS de pensão por morte e auxílio reclusão; o pagamento seguro DPVAT; a expedição de visto de permanência ao parceiro estrangeiro. Também está assegurada a inclusão do companheiro como dependente no imposto de renda.

Mas apesar das vitórias e dos avanços, o movimento LGBT vem elencando direitos não reconhecidos. No primeiro identificou 37. Depois foram enumerados 78 e agora são 112 os direitos sonegados.

O último censo revelou a existência de 60 mil famílias constituídas por pessoas do mesmo sexo. Mas o número não importa. Apesar do preconceito de que são alvo, da perseguição que sofrem, da violência de que são vítimas, não há como condenar à invisibilidade e deixar parcela da população fora do âmbito da tutela jurídica.

Não se pode dizer que se vive em um Estado Democrático de Direito quando parcela da população é condenada à invisibilidade por restar à margem do sistema jurídico.

Este é o significado maior da decisão unânime do Supremo Tribunal, que foi conclamado a suprir a omissão do legislador. Ao reconhecer as uniões homoafetivas como entidade familiar, assegurando aos parceiros homossexuais os mesmos direitos e deveres dos companheiros das uniões estáveis, impôs vigência à Constituição Federal que assegura o respeito à dignidade humana, sob a égide dos princípios da igualdade e da liberdade.

 

Publicado em 07/05/2011.

[1] Advogada

Presidente da Comissão da Diversidade Sexual da OAB

www.direitohomoafetivo.com.br