As uniões homoafetivas frente a Constituição Federal

Maria Berenice Dias[1]

 

 

A tendência de engessamento dos vínculos afetivos sempre existiu, variando segundo valores culturais e, principalmente, influências religiosas dominantes em cada época.  No mundo ocidental, tanto o Estado como a Igreja buscam limitar o exercício da sexualidade ao casamento. Ora identificado como uma instituição, ora nominado como contrato – o mais solene que existe no ordenamento jurídico –, o casamento é regulamentado exaustivamente: impedimentos, celebração, efeitos de ordem patrimonial e obrigacional. A própria postura dos cônjuges é determinada pela lei, que impõe deveres e assegura direitos de natureza pessoal, como, por exemplo, o dever de fidelidade.

O casamento inicialmente era indissolúvel. A família, consagrada pela lei, tinha um modelo conservador: entidade matrimonial, patriarcal, patrimonial, indissolúvel, hierarquizada e heterossexual. O vínculo que nascia da livre vontade dos nubentes era mantido, independente e até contra a vontade dos cônjuges. Mesmo após o advento da Lei do Divórcio, a separação e o divórcio só são deferidos quando decorridos determinados prazos ou mediante a identificação de um culpado. Quem não tem motivo para atribuir ao outro a culpa pelo fim do casamento não pode tomar a iniciativa do processo de separação, o que evidencia a intenção do legislador de punir quem simplesmente não mais quer continuar casado.

A sacralização do casamento e a tentativa de sua mantença como única estrutura de convívio lícita e digna de aceitação fez com que os relacionamentos chamados de marginais ou ilegítimos, por fugirem do molde legal, não fossem reconhecidos, sujeitando seus atores a severas sanções.

Os vínculos afetivos extramatrimoniais, por não serem admitidos como família, eram condenados à invisibilidade. Ainda assim, existiam. Chamada a Justiça para solver as questões de ordem patrimonial, com a só preocupação de não chancelar o enriquecimento sem causa, primeiro foi identificada uma relação de natureza trabalhista, e só se via labor onde existia amor. Depois, a jurisprudência passou a permitir a partição do patrimônio, considerando uma sociedade de fato o que nada mais era do que uma sociedade de afeto.

O Direito das Famílias, ao receber o influxo do Direito Constitucional, foi alvo de profunda transformação, que ocasionou verdadeira revolução ao banir discriminações no campo das relações familiares. Num único dispositivo o constituinte espancou séculos de hipocrisia e preconceito[2]. Foi derrogada toda a legislação que hierarquizava homens e mulheres, bem como a que estabelecia diferenciações entre os filhos pelo vínculo existente entre os pais. Também se alargou o conceito de família para além do casamento.

Mesmo quando a Constituição inseriu no conceito de entidade familiar o que chamou de “união estável”, houve resistência em migrar as demandas para o âmbito do Direito das Famílias. Apesar dos protestos da doutrina, as uniões continuaram sendo vistas como sociedades de fato e julgadas segundo o Direito das Obrigações. A dificuldade de as relações extramatrimoniais serem identificadas como entidades familiares revela a tendência de sacralizar o conceito de família. Mesmo inexistindo qualquer diferença estrutural com os relacionamentos oficializados, a sistemática negativa de estender a esses novos arranjos os regramentos do direito familiar, nem ao menos por analogia, mostra a tentativa de preservação da instituição da família dentro dos padrões convencionais. Porém, como adverte Paulo Lôbo, não há necessidade de degradar a natureza pessoal de família convertendo-a em fictícia sociedade de fato, como se seus integrantes fossem sócios de empreendimento lucrativo[3].

A Constituição, ao outorgar proteção à família, independentemente da celebração do casamento, vincou um novo conceito de entidade familiar, albergando vínculos afetivos outros. Mas é meramente exemplificativo o enunciado constitucional ao fazer referência expressa à união estável entre um homem e uma mulher e às relações de um dos ascendentes com sua prole. O caput do art. 226 é, conseqüentemente, cláusula geral de inclusão, não sendo admissível excluir qualquer entidade que preencha os requisitos de afetividade, estabilidade e ostensibilidade[4].

Pluralizou-se o conceito de família, que não mais se identifica pela celebração do matrimônio. Não há como afirmar que o art. 226, § 3º, da Constituição Federal, ao mencionar a união estável formada entre um homem e uma mulher, reconheceu somente esta convivência como digna da proteção do Estado. O que existe é uma simples recomendação em transformá-la em casamento. Em nenhum momento foi dito não existirem entidades familiares formadas por pessoas do mesmo sexo. Exigir a diferenciação de sexos no casal para haver a proteção do Estado é fazer distinção odiosa[5], postura nitidamente discriminatória que contraria o princípio da igualdade, ignorando a existência da vedação de diferenciar pessoas em razão de seu sexo.

A nenhuma espécie de vínculo que tenha por base o afeto se pode deixar de conferir status de família, merecedora da proteção do Estado, pois a Constituição Federal (art. 1º, III) consagra, em norma pétrea, o respeito à dignidade da pessoa humana[6].

A Constituição Federal tem como regra maior o respeito à dignidade da pessoa humana, conforme expressamente proclama o seu art. 1º, inc. III, que serve de norte ao sistema jurídico. Tal valor implica dotar os princípios da igualdade e da isonomia de potencialidade transformadora na configuração de todas as relações jurídicas. Igualdade jurídica formal é igualdade diante da lei, como bem explicita Konrad Hesse: o fundamento de igualdade jurídica deixa-se fixar, sem dificuldades, como postulado fundamental do estado de direito[7].

Os princípios da igualdade e da liberdade estão consagrados já no preâmbulo da norma maior do ordenamento jurídico, ao conceder proteção a todos, vedar discriminação e preconceitos por motivo de origem, raça, sexo ou idade, assegurando o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos (…).

O artigo 5º da Carta Constitucional, ao elencar os direitos e garantias fundamentais, proclama: todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. Garante o mesmo dispositivo, de modo expresso, o direito à liberdade e à igualdade. Repetitivos são os dois primeiros incisos desta norma constitucional ao enfatizar a igualdade entre o homem e a mulher e a vedação de obrigar alguém a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.

Mas de nada adianta assegurar respeito à dignidade humana, à liberdade. Pouco vale afirmar a igualdade de todos perante a lei, dizer que homens e mulheres são iguais, que não são admitidos preconceitos ou qualquer forma de discriminação. Enquanto houver segmentos-alvo da exclusão social, tratamento desigualitário entre homens e mulheres, enquanto a homossexualidade for vista como crime, castigo ou pecado, não se está vivendo em um Estado Democrático de Direito.

Não é mais possível deixar de arrostar a realidade do mundo de hoje.

É necessário ter uma visão plural das estruturas familiares e inserir no conceito de família os vínculos afetivos que, por envolverem mais sentimento do que vontade, merecem a especial proteção que só o Direito das Famílias consegue assegurar.

O caminho está aberto, sendo imperioso que os juízes cumpram com sua verdadeira missão: fazer Justiça. Acima de tudo, precisam ter sensibilidade para tratar de temas tão delicados como as relações afetivas, cujas demandas precisam ser julgadas com mais sensibilidade e menos preconceito. Os princípios de justiça, igualdade e humanismo devem presidir as decisões judiciais.

Há muito já caiu a venda que tapava os olhos da Justiça. O símbolo da imparcialidade não pode servir de empecilho para o reconhecimento de que a diversidade necessita ser respeitada. Não mais se concebe conviver com a exclusão e com o preconceito.

A Justiça não é cega nem surda. Também não pode ser muda.  Precisa ter os olhos abertos para ver a realidade social, os ouvidos atentos para ouvir o clamor dos que por ela esperam e coragem para dizer o Direito em consonância com a Justiça.

 

 

Referências bibliográficas

DIAS, Maria Berenice. Manual do Direito das Famílias. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha (tradução de Luís Afonso Heck). Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1998.

LÔBO, Paulo Luiz Netto. Entidades Familiares Constitucionalizadas: para além do numerus clausus. Anais do III Congresso Brasileiro de Direito de Família. Família e cidadania – o novo CCB e a vacatio legis. Belo Horizonte: Del Rey, 2002.

SUANNES, Adauto. As Uniões Homossexuais e a Lei 9.278/96.  COAD. Ed. Especial out/nov. 1999.

VELOSO, Zeno. Homossexualidade e Direito. Jornal O Liberal. Belém do Pará, 22 maio 1999.

 

 

Publicado em 09/11/2008.

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[1] Advogada especializada em Direito Homoafetivo, Famílias e Sucessões

Ex- Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul

Vice-Presidente Nacional do IBDFAM

www.mariaberenice.com.br

[2] Zeno Veloso. Homossexualidade e Direito.

[3] Paulo Luiz Netto Lôbo. Entidades Familiares Constitucionalizadas:…, p. 101.

[4] Paulo Luiz Netto Lôbo. Entidades Familiares Constitucionalizadas:…, p. 95.

[5] Adauto Suannes. As Uniões Homossexuais e a Lei 9.278/9,. p. 32.

[6] Maria Berenice Dias. Manual do Direito das Famílias, 45.

[7] Konrad Hesse. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha, p. 330.