Amor não tem sexo

Maria Berenice Dias[1]

 

 

Esta, ainda que pareça ser uma afirmativa chocante, é absolutamente verdadeira: o amor não tem sexo, não tem idade, não tem cor, não tem fronteiras, não tem limites.

O amor não tem nada disso, mas tem tudo. Corresponde ao sonho de felicidade de todos, tanto que existe uma parcela de felicidade que só se realiza no outro. Pelo jeito, ninguém é feliz sozinho. Como diz a música, é impossível ser feliz sozinho, sem ter alguém para amar.

Essa realidade adquiriu dimensão tamanha, que o amor passou a ter relevância jurídica e acabou ingressando no ordenamento jurídico. Em um primeiro momento, somente o casamento selava o envolvimento afetivo. Verdadeiro sacramento para a Igreja, era considerado pelo Estado a instituição-base da sociedade.

Com a evolução dos costumes e a quebra de inúmeros preconceitos e tabus, não mais foi possível deixar de ver o surgimento de novos relacionamentos, muitas vezes formados pelos partícipes dos vínculos oficializados desfeitos. Esses novos núcleos, sem nome e sem lei, foram ao Judiciário em busca de reconhecimento.

Ainda que de forma tímida e conservadora, e mais por não conseguir a Justiça conviver com a mais chocante injustiça, que é o enriquecimento injustificado, o afeto começou a receber respaldo jurisdicional. No princípio, confundindo-se amor com lavor, e as relações chamadas concubinárias foram vistas como verdadeiros vínculos empregatícios. Depois, identificado como sociedade de fato o que nada mais era do que uma sociedade de afeto, as relações extramatrimoniais foram inseridas no Direito Obrigacional. Um verdadeiro negócio jurídico, segundo o art. 981 do CC, uma combinação de esforços ou recursos para lograr fins comuns.

O respaldo judicial concedido às relações extramatrimoniais acabou levando a Constituição Federal a alargar o conceito de família. Não exclusivamente ao casamento o legislador constituinte emprestou o nome de entidade familiar. Também assim chamou a união estável e as relações de um dos pais com seus filhos.

Embora vanguardista, o conceito de família cunhado pela Lei Maior ainda é acanhado, pois não logrou envolver vínculos afetivos outros, que não correspondem ao paradigma convencional: casamento, sexo e reprodução. O surgimento dos métodos contraceptivos e a eclosão do movimento feminista concederam à mulher o livre exercício da sexualidade. Passaram a ser considerados família os relacionamentos não identificados pelo casamento. Em face do atual estágio da evolução da engenharia genética, a reprodução não mais depende da ocorrência de contato sexual. Assim, imperioso que se busque um novo conceito de família.

A identificação da presença de um vínculo amoroso, o enlaçamento de vidas, é o que basta para que se reconheça a existência de uma família. Conforme Saint Exupéry, você é responsável pelas coisas que cativa. Nesse comprometimento mútuo é que se encontra a causa do Direito de Família: leva ao surgimento de encargos e obrigações, além de conceder direitos e prerrogativas a quem passa a compartilhar uma vida afetiva.

Se basta o afeto para se ver uma família, nenhum limite há para seu reconhecimento. É desnecessária a presença de qualquer outro requisito ou pressuposto para sua identificação. Essa nova concepção tem levado cada vez mais a sociedade a conviver com os mais variados tipos e espécies de relacionamentos, mesmo que não mais correspondam ao modelo tido como “oficial”.

Mas é alvo de acirrada polêmica e ainda gera significativo índice de rejeição a possibilidade – ora legalmente chancelada na Holanda – de os casais homossexuais adotarem crianças. Essa resistência mostra a inaceitação de tais vínculos, que, no entanto, como qualquer outro, têm o afeto como razão de existir. Em nome da preservação do menor: medo de que seja alvo da repulsa no ambiente escolar, temor de comprometimento de ordem psicológica ou falta de referências definidas que lhe sirvam de modelo, acabam-se perpetrando verdadeiros infanticídios.

Há uma realidade da qual não se pode fugir. Crianças vivem com parceiros do mesmo sexo, quer por serem concebidas de forma assistida, quer por serem filhos de apenas um deles. Havendo a convivência familiar, a negativa da adoção veda a possibilidade do surgimento de um vínculo jurídico do filho com quem desempenha o papel de pai, o que, ao invés de benefícios, só acarreta-lhe prejuízos. Mesmo tendo dois pais ou duas mães, a vedação de chancelar dita situação impede, em caso de morte, a percepção de direitos sucessórios ou benefícios previdenciários. Se ocorrer a separação, não haverá direito a alimentos, não se podendo garantir sequer o direito de visitas.

Por isso, merece ser louvada a as decisões judiciais, que, de forma corajosa, pensam muito mais no interesse das crianças do que nos preconceitos da sociedade. Estão cercados da proteção legal os filhos que são frutos do afeto. Gerados de forma responsável, geram a responsabilidade jurídica dos pais.

Essa é, com certeza, a consagração do amor sem estigmas e sem medos, concedendo a muitos menores abandonados a chance de se criarem de forma saudável e feliz, cercados de um amor e no seio de uma família que merece ser chamada de homoafetiva.

 

 

Publicado em 24/11/2009.

[1] Advogada especializada em Direito Homoafetivo, Famílias e Sucessões

Ex-Desembargadora do Tribunal de Justiça do RS

Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFam

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