Amor e dor?

Maria Berenice Dias
Advogada especializada em direito das famílias e sucessões
Ex-desembargadora do Tribunal de Justiça do RS
Vice-Presidente Nacional do IBDFAM
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Até parece que rima, mas amor não pode gerar dor. Inquestionável que uma das causas é a ideologia patriarcal que ainda subsiste. O homem se tem como proprietário do corpo e da vontade da mulher. Essa errônea concepção de poder é que assegura o suposto direito de o macho fazer uso de sua superioridade corporal e força física sobre a fêmea.

Ao homem sempre coube o espaço público, e a mulher foi confinada no limite doméstico. Isso enseja a formação de dois mundos: um de dominação e outro de obediência. A essa distinção estão associados papéis ideais: o homem de provedor da família e a mulher o cuidado do lar e dos filhos. A sociedade outorga ao sexo masculino um papel paternalista, exigindo do sexo feminino uma postura de submissão.

A evolução da Medicina, com a descoberta de métodos contraceptivos, bem como as lutas emancipatórias acabaram impondo a redefinição do modelo ideal de família. A mulher, ao integrar-se no mercado de trabalho, saiu para fora do lar, cobrando do varão a necessidade de assumir responsabilidades dentro de casa. Essa mudança acabou por provocar o afastamento do parâmetro preestabelecido.

Mas o significativo avanço das mulheres em várias áreas e setores do mundo público, não consegue encobrir a mais cruel sequela da discriminação: a violência doméstica, que tem como justificativa a cobrança de possíveis falhas no cumprimento ideal dos papéis de gênero.

O medo, a dependência econômica, o sentimento de inferioridade, a baixa autoestima, decorrentes da ausência de pontos de realização pessoais, sempre impuseram à mulher a lei do silêncio. Foi neste contexto que surgiu a chamada de Lei Maria da Penha. A violência doméstica não guarda correspondência com qualquer tipo penal. Primeiro são identificadas ações que configuram violência doméstica ou familiar contra a mulher: qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial.  Depois são definidos os espaços onde o agir configura violência doméstica: no âmbito da unidade doméstica, da família e em qualquer relação de afeto. Finalmente, de modo didático e bastante minucioso, são descritas as condutas que configuram violência física, psicológica, sexual, patrimonial e moral.

As formas de violência elencadas deixam evidente a ausência de conteúdo exclusivamente criminal no agir do agressor. A simples leitura das hipóteses previstas na lei mostra que nem todas as ações que configuram violência doméstica constituem delitos. Além do mais, as ações descritas, para configurarem violência doméstica, precisam ser perpetradas no âmbito da unidade doméstica ou familiar ou em qualquer relação íntima de afeto.

Assim, é possível afirmar que a Lei Maria da Penha considera violência doméstica as ações levadas a efeito no âmbito das relações familiares ou afetivas. Estas condutas, no entanto, mesmo que sejam reconhecidas como violência doméstica, nem por isso tipificam delitos que desencadeiam uma ação penal.

De qualquer modo, mesmo não havendo crime, é necessário garantir proteção à vítima, encaminhá-la a atendimento médico, conduzi-la a local seguro ou acompanhá-la para retirar seus pertences. Além disso, deve proceder ao registro da ocorrência, tomar por termo a representação e, quando a vítima solicitar alguma medida protetiva, remeter a juízo o expediente.

Todas estas providências devem ser tomadas diante da denúncia da prática de violência doméstica, ainda que – cabe repetir – o agir do agressor não constitua infração penal que justifique a instauração do inquérito policial. Dita circunstância, no entanto, não afasta o dever da polícia de tomar as providências determinadas na lei. Isso porque, é a violência doméstica que autoriza a adoção de medidas protetivas, e não exclusivamente o cometimento de algum crime.

Este é o verdadeiro alcance da Lei Maria da Penha. Conceitua a violência doméstica divorciada da prática de algum delito, o que não inibe a concessão das medidas protetivas, tanto por parte da autoridade policial como pelo juiz.

Assim, sabedora a mulher da possibilidade de ser imposta a seu cônjuge ou companheiro a obrigação de submeter-se a acompanhamento psicológico ou de participar de programa terapêutico, certamente terá coragem de denunciá-lo.

Não somente quando já estiver cansada de apanhar, mas quando, pela vez primeira, for violada sua integridade física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral. Afinal, todas estas formas de violência são violência doméstica.

 

 

Publicado em 21/03/2017.