Alimentos, ônus e encargos

Maria Berenice Dias[1]

 

Estabelece o Código de Processo Civil uma divisão dos encargos probatórios. O art. 333 do CPC impõe ao autor o ônus de trazer as provas do que quer ver reconhecido em juízo. O direito alegado como existente deve ser provado para ser aceito como verdadeiro pelo juiz e ensejar o acolhimento da ação. Já ao réu resta o encargo de comprovar o que diz ter o condão de infirmar a pretensão do autor. Pleiteia o improvimento da ação por não existir obrigação inadimplida, competindo-lhe trazer os fatos impeditivos, modificativos ou extintivos, visando a evidenciar não ter o autor o direito que afirma.

Em linhas singelas esse é o tarifamento feito pela lei ao proceder à distribuição dos ônus probatórios. No entanto, nas demandas alimentícias, essa divisão de atribuições se inverte. Ainda que a Lei de Alimentos, em seu art. 2º, determine que deva o autor indicar quanto ganha aproximadamente ou os recursos de que dispõe o devedor, tal não é requisito essencial, cuja omissão torne inepta a inicial a ensejar a extinção da ação ou a não-fixação de alimentos provisórios.

O que a lei aponta como indispensável é a prova do parentesco ou da obrigação alimentar do devedor: (…) provando, apenas, o parentesco ou a obrigação de alimentar do devedor (…). Tanto esse é o único requisito indispensável, que o legislador utiliza a expressão “apenas”. Ou seja, impõe ao autor apenas o dever de provar a existência da obrigação. No que diz com as suas necessidades, o autor deve expô-las: O credor (…) exporá suas necessidades (…). Quanto aos ganhos e recursos do obrigado, usa a lei o verbo “indicar”, o que, na linguagem legislativa, não possui o grau de obrigatoriedade do verbo “provar”. Uma coisa é indicar, outra é provar. O que não é provado leva à improcedência da ação. A falta de indicação de algum dado não conduz ao mesmo resultado.

A previsão legal referente às condições do alimentante é imposição de um ônus e não de uma obrigação. O inadimplemento de um ônus traz eventual seqüela à própria parte, o que não se confunde com o descumprimento de uma obrigação, cuja omissão pode levar o autor a perder a demanda. A oneração do autor em trazer de forma aproximada os rendimentos do réu serve tão-só para subsidiar o magistrado na fixação dos alimentos provisórios. A ausência de tais dados pode vir eventualmente em prejuízo do autor, mas não afeta a higidez da peça inaugural da demanda que intentou. Descabida, portanto, a extinção da ação em face da ausência de indicações sobre a situação de fortuna do réu, até porque, no mais das vezes, é difícil ao autor fazer qualquer estimativa de quanto ganha alguém com quem não convive e que, não raro, mora em lugar distante.

Não se pode olvidar que se está em sede de Direito das Famílias, em que as animosidades são presumidas, do contrário a lide não viria à Justiça. Se não está o genitor alcançando alimentos ao filho, certamente não está convivendo com ele. A falta de vínculo de afetividade entre as partes dificulta ainda mais a possibilidade do credor saber dos ganhos de quem procura ocultar tal dado, exatamente para não adimplir a obrigação alimentar.

Afora isso, os rendimentos e rendas integram a auréola de privacidade da pessoa, gozando de proteção constitucional. Cabe, portanto, questionar: Como irá o filho saber quanto ganha seu genitor? Onde obterá informações sobre as rendas dele? De que maneira descobrirá quais os seus rendimentos?

Assim, é imperativo reconhecer que na ação de alimentos se invertem os ônus probatórios. O autor deve provar documentalmente a existência da obrigação, ou seja, o vínculo de parentesco com o réu. Em se tratando de ação que tem por fundamento obrigação alimentícia decorrente do casamento, ou quando há prova pré-constituída de união estável, precisa o autor justificar a necessidade dos alimentos. Na ação que tem por causa de pedir obrigação decorrente do vínculo de filiação, a demonstração da necessidade só se impõe quando o demandante é maior de idade. Mas se o autor é menor, sequer precisa provar suas necessidades, que são presumidas.

Tais dados são suficientes para que o juiz fixe alimentos provisórios em favor do autor. No entanto, para subsidiar o magistrado na quantificação da verba alimentar é que o autor deve declinar o que sabe sobre a situação econômico-financeira do réu: sua profissão, prováveis ganhos, qualidade de vida que ele se concede, o patrimônio de que seja proprietário, etc. Com tais elementos é que o magistrado irá fixar os provisoriamente os alimentos. Porém, se não vier na inicial qualquer referência sobre as condições do réu, isso não impede a fixação da verba provisória. Aliás, o juiz deve fixar alimentos provisórios mesmo quando não pleiteados. A omissão do autor sobre as possibilidades do réu levará provavelmente ao estabelecimento de uma pensão acanhada. Como a obrigação vigora desde a data de sua fixação, não há como onerar de forma exacerbada o devedor sem saber de suas condições para atender ao encargo.

Ao réu é que cabe dizer de suas possibilidades, isto é, provar o quanto ganha, para que o magistrado possa fixar os alimentos atendendo ao critério da proporcionalidade. Quando não traz o réu de forma correta sua real situação financeira, o prejuízo só pode ser dele e não do alimentando. Não fica o julgador adstrito a essa limitação probatória para fixar os alimentos. A ausência de provas da estatura econômica do devedor não impõe que os alimentos sejam fixados em quantia insignificante. Nesse caso, deve o magistrado estabelecer os alimentos atendendo às necessidades do beneficiário, desconsiderando o silêncio ou a ausência de sinceridade do réu. Sua omissão não pode beneficiá-lo.

Essas distinções e a precisa delimitação dos encargos probatórios nas ações alimentárias necessitam ficar bem definidas, sob pena de se estimular a prática – que vem se estabelecendo de maneira recorrente – de a omissão do devedor lhe favorecer. Além de tal postura vir em prejuízo do alimentando, acaba por incentivar o desatendimento do dever de lealdade que todas as partes devem ter para com a Justiça.

 

Publicado em 13/06/2010.

 

 

[1] Advogada especializada em Direito das Famílias e Sucessões

Ex-Desembargadora do Tribunal de Justiça-RS

Vice-Presidenta Nacional do IBDFAM

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