Alimentos e sua vigência

Maria Berenice Dias[1]

 

O princípio da dignidade da pessoa humana tem um tão grande espectro que seus ecos estão demorando a serem ouvidos. Para emprestar-lhe efetividade, é necessário rever conceitos, superar jurisprudência sedimentada e proclamar a inconstitucionalidade de um punhado de dispositivos legais.

Uma verdade que se tem por absoluta é que os alimentos são devidos desde a data da citação. Até porque isso é o que está escrito na Lei de Alimentos (LA, 5.578-68, art. 13, § 2º): Em qualquer caso os alimentos fixados retroagem à data da citação. Como há a determinação de aplicação dessa lei às ações de separação, de anulação de casamento e às revisionais, em todas as demandas em que há a fixação de verba alimentar o encargo tem como termo inicial a data da citação.

Parece que este é um ponto que ninguém questiona: alimentos são devidos desde o momento em que o réu foi citado para a ação e … ponto final.

 

Na ação de alimentos

Para assegurar a tutela diferenciada que determinados direitos merecem, leis especiais prevêem ritos abreviados. Assim, os alimentos, que dizem com a subsistência, com a sobrevivência, necessitam de adimplemento imediato. Por isso, mediante a prova do vínculo de parentesco ou da obrigação alimentar (LA, art. 2º), o juiz estipula, desde logo, alimentos provisórios. Aliás, mesmo se não requeridos, os alimentos devem ser fixados, a não ser que o credor expressamente declare que deles não necessita (LA, art. 4º).

Desde o momento em que fixados pelo juiz os alimentos provisórios são devidos e devem ser pagos de imediato. Equivocado o entendimento que, invocando o § 2º do art. 13 da Lei de Alimentos, sustenta que os alimentos provisórios se tornam exigíveis somente a partir da citação do devedor. Não há como sujeitar o pagamento dos alimentos ao ato citatório. Mantendo o devedor vínculo empregatício, ao fixar os alimentos o juiz oficia ao empregador para que ele, desde logo, dê início ao desconto da pensão da folha de pagamento do alimentante. Os descontos passam a acontecer mesmo antes da citação do réu. Porém, não mantendo o devedor vínculo laboral, não há como lhe conceder prazo distinto para iniciar o pagamento dos alimentos, qual seja, após ser citado. Descabido tratamento diferenciado. Além de deixar o credor desassistido, estar-se-ia incentivando o devedor a esquivar-se da citação, a esconder-se do Oficial de Justiça.

Os alimentos provisórios são devidos até o momento em que, eventualmente, venham a ser modificados: no curso da demanda, pela sentença ou quando do julgamento do recurso. Alterados os alimentos provisórios passa a vigorar o novo valor, quer tenha sido majorado ou reduzido. A eficácia retroativa dos alimentos definitivos vai depender se houve aumento ou diminuição de valores. Este tratamento diferenciado decorre do princípio da irrepetibilidade do encargo alimentar. Assim, fixados os alimentos provisórios, devem eles ser pagos. Havendo redução, o novo valor terá eficácia ex nunc, ou seja, só valerá com relação às parcelas futuras. As prestações vencidas, ainda que impagas, continuam sendo devidas pelo valor dos alimentos provisórios. Somente quando são fixados alimentos definitivos em valor maior que a verba provisória é que se pode falar em efeito retroativo. O devedor terá que proceder ao pagamento da diferença desde a data da citação. Há que se atentar a um detalhe. Como os alimentos provisórios vigem desde a data da fixação, e os definitivos retroagem à data da citação, havendo majoração do valor dos alimentos, a diferença alcança somente as parcelas vencidas depois da data da citação. As prestações vencidas entre a fixação dos provisórios e a citação permanecem pelo valor provisório.

Esta sempre foi a posição pacífica da jurisprudência e respaldada na doutrina amplamente majoritária. Porém, nada justifica limitar a obrigação alimentar ao ato citatório. Os encargos decorrentes do poder familiar surgem quando da concepção do filho, sendo que a lei põe a salvo desde a concepção os direitos do nascituro (CC, art. 2º). Ora, com o nascimento, mesmo antes do momento em que o pai procede ao registro do filho, está por demais consciente de todos os deveres inerentes ao dever familiar, entre os quais o de assegurar o sustento e a educação da prole. Enquanto os pais mantêm vida em comum, e o genitor tem o filho sob sua guarda, atender aos deveres decorrentes do poder familiar constitui obrigação de fazer. Cessada a convivência dos genitores não se modificam os direitos e deveres com a relação aos filhos (CC, arts. 1.579 e 1.632). Restando a guarda do filho com somente um dos pais, a obrigação decorrente do poder familiar resolve-se em obrigação de dar, consubstanciada no pagamento de pensão alimentícia.

Assim, o genitor que deixa de conviver com o filho deve alcançar-;lhe alimentos de imediato. Ou espontaneamente, mediante pagamento de alimentos, de forma documentada, ou por meio da ação de oferta de alimentos. Como os alimentos destinam-se a garantir a subsistência, precisam ser pagos antecipadamente. Assim, no dia em que o genitor sai de casa deve depositar alimentos em favor do filho. O que não pode é, comodamente, ficar aguardando que o filho proponha a ação alimentar e, enquanto isso, quedar-se omisso e só adimplir a obrigação depois da propositura da ação. Ou pior, só pagar após citado.

Cabe lembrar que, na ação de alimentos, há inversão dos encargos probatórios. Ao autor cabe, tão-só, comprovar o vínculo de parentesco ou a obrigação alimentar do réu. Não há como lhe impor que comprove os ganhos do demandado, pois são informações sigilosas que integram o direito à privacidade. É do réu o ônus de provar seus ganhos para que o juiz possa fixar os alimentos atendendo ao critério da proporcionalidade. Também quanto à cessação do convívio e ao não-pagamento dos alimentos, compete ao autor indicar as circunstâncias em que ocorreu a mora, sendo do réu o encargo de demonstrar que continuou exercendo os deveres inerentes do poder familiar.

Em se tratando de obrigação decorrente do poder familiar, é inequívoca a ciência do réu do direito reclamado pelo autor. Não há porque constituir o devedor em mora pelo ato citatório para lhe impor o adimplemento da obrigação alimentar (CPC, art. 219). A mora constituiu-se quando deixou o genitor de prover o sustento do filho. Este é o marco inicial da obrigação alimentar. Assim, proposta a ação, além da prova do parentesco, mister também que venha comprovado o momento em que deixou o devedor de adimplir a obrigação. Por ocasião da sentença, o juiz fixará o termo inicial do encargo alimentar, aquém da data da citação e aquém da data da propositura da ação. O dies a quo será o momento em que houve a cessação do adimplemento do dever de sustento decorrente do poder familiar.

 

Na ação investigatória de paternidade

Nas ações de alimentos, separação, anulatória de casamento, entre outras, existe a prova pré-constituída do vínculo obrigacional de natureza alimentar. Daí a possibilidade uso de lei especial (Lei 5.478-68), que dispõe de rito diferenciado, e admite a concessão de tutela antecipada por meio dos alimentos provisórios.

Na ação de investigação de paternidade, inexiste o vínculo constituído da relação de parentesco. Aliás, este é o objeto da ação. Ainda assim, por salutar construção jurisprudencial, passou-se a conceder alimentos provisórios também nessas ações. Havendo indícios de prova da parentalidade, são fixados alimentos initio litis. Também são deferidos alimentos provisórios de modo incidental, ou quando do resultado positivo do exame de DNA ou quando da recusa do réu em se submeter à perícia.

Depois de algumas vacilações, a jurisprudência, ao atentar à natureza declaratória da demanda investigatória de paternidade, deu mais um significativo passo e o Superior Tribunal de Justiça veio a editar a Súmula 227: Julgada procedente a investigação de paternidade, os alimentos são devidos a partir da citação.

Acabou por invocar-se dispositivo da Lei de Alimentos (LA, 5.578-68, art. 13, § 2º): Em qualquer caso os alimentos fixados retroagem à data da citação. A referência “em qualquer caso” é à determinação constante no caput do artigo de aplicação dessa lei às ações de separação, de anulação de casamento e às ações revisionais de alimentos. Em todas essas demandas existe a prova pré-constituída do vínculo obrigacional de natureza alimentar. Na demanda investigatória tal não existe, mas a solução foi providencial. Uma bela forma de dar um basta às posturas procrastinatórias do réu que usava todos os expedientes protelatórios e um sem número de recursos manifestamente improcedentes para retardar o desfecho da ação, pois a condenação ao pagamento dos alimentos ocorria somente na sentença. Com isso livrava-se o réu durante anos, ou décadas, do encargo alimentar.

Mas pai é pai desde a concepção do filho. A partir daí, nascem todos os ônus, encargos e deveres decorrentes do poder familiar. O simples fato de não assumir a responsabilidade parental não o desonera. No entanto, é isso o que se vê acontecer todos os dias. Ao saber que a namorada ou companheira está grávida, o homem tenta induzi-la ao aborto, nega ser o pai, a abandona. Ameaça denegrir sua imagem argüindo a malsinada exceptio plurium concumbentium. Diz que levará vários amigos como testemunhas para afirmarem que tiveram contato sexual com ela. A genitora, fragilizada, normalmente abandonada pela família, acaba tendo o filho sozinha. Tem enorme dificuldade de procurar um advogado, amealhar provas de um relacionamento íntimo que lhe causou tanto sofrimento e que muitas vezes, por imposição do varão, se manteve na clandestinidade.

O filho tem direito à identidade, à proteção integral, merece viver com dignidade, precisa de alimentos, quer ter alguém para chamar de pai, mas acaba, durante muitos anos, no mais completo abandono. Quando, depois de vários anos, consegue obter o reconhecimento da paternidade, os alimentos surpreendentemente são fixados a partir da citação do genitor. Como se o filho tivesse nascido naquele dia. Diante dessa orientação consolidada da jurisprudência, não há como se falar em responsabilidade parental. Quem é o pai que irá acompanhar a mãe, registrar o filho e pagar alimentos sabendo que, se ficar inerte e lograr se safar da citação poderá ficar anos sem arcar com nada?

O filho necessita de cuidados especiais mesmo durante a vida intra-uterina. A mãe tem que se submeter a exames pré-natais, e o parto sempre gera despesas, ainda que feito  pelo SUS. Durante a gravidez, a mãe precisa de roupas especiais e alimentação adequada, sem olvidar que tem sua capacidade laboral reduzida durante a gestação e depois do nascimento do filho. Também seus ganhos são limitados durante o período da licença-maternidade.

É necessário dar efetividade ao princípio da paternidade responsável que a Constituição (CF, art. 227) procurou realçar quando elegeu, como prioridade absoluta, a proteção integral a crianças e adolescentes, delegando não só à família, mas à sociedade e ao próprio Estado, o compromisso pela formação do cidadão de amanhã. Esse compromisso é também do Poder Judiciário, que não pode simplesmente desonerar o genitor de todos os encargos decorrentes do poder familiar e, na ação investigatória de paternidade, responsabilizá-lo, exclusivamente, a partir da citação.

Mas há outro princípio constitucional que necessita ser invocado: o que impõe tratamento isonômico aos filhos, vedando tratamento discriminatório (CF, art. 227, §6º). O pai responsável acompanha o filho desde sua concepção, participa do parto, registra o filho, o embala no colo. Deve a Justiça procurar suavizar essas desigualdades e não as acentuar ainda mais.

Claro que a alegação do demandado sempre será de que desconhecia a gravidez, não sabia do nascimento do filho e sequer tomara conhecimento da sua existência, só vindo a saber de tais fatos quando citado para a ação de investigação. Nessas ações, como a prova é de fato que acontece a descoberto de testemunha, não há divisão tarifada dos encargos probatórios segundo os ditames do estatuto processual (CPC, art. 333). Agora, em face do alto grau de certeza dos exames de DNA e da presunção que decorre da negativa em submeter-se à perícia (CC, arts. 230 e 231), a atribuição dos ônus probatórios até perdeu relevo. No entanto, com referência à prova da ciência da paternidade persistem os mesmos princípios, ou seja, cabe ao autor demonstrar as circunstâncias em que réu tomou conhecimento de sua concepção, do seu nascimento ou da sua existência. Não logrando o réu comprovar que desconhecia ser o pai do autor antes da citação, deverá ser imposto o pagamento dos alimentos desde o momento em que tomou ciência da paternidade.

Outro fundamento a ser utilizado pelo réu, para livrar-se do pagamento dos alimentos com efeito retroativo, é que não tinha certeza da paternidade, não podendo assumir o encargo sem saber se o filho era seu. No entanto, desde que o exame do DNA dispõe de índice de certeza quase absoluto, não há mais como alegar dúvida sobre a verdade biológica. Nem o custo do exame, nem a negativa da genitora em deixar o filho submeter-se ao exame servem de justificativa para o genitor não buscar a verdade. Basta ingressar com a ação declaratória da paternidade ou negatória de paternidade. Também possível ajuizar cautelar de produção antecipada de prova. Em todas as hipóteses tem acesso ao exame genético gratuito.

Nada justifica livrar o genitor das obrigações decorrentes do poder familiar, que surgem desde a concepção do filho. Como a ação investigatória de paternidade tem carga eficacial declaratória, todos os efeitos retroagem à data da concepção, até mesmo a obrigação alimentar. A filiação, que existia antes, embora sem caráter legal, passa a ser assente perante a lei. O reconhecimento, portanto, não cria: revela-a. Daí resulta que os seus efeitos, quaisquer que sejam, remontam ao dia do nascimento, e, se for preciso, da concepção do reconhecido.[2]

Esta é a orientação que já vem se insinuando na doutrina[3] e desponta na jurisprudência.[4]

É muito bonito falar-se em dignidade humana, em paternidade responsável, em proteção integral às crianças. Só é preciso dar efetividade a todos esses princípios. Certamente a responsabilidade é da Justiça. Para isso, não é necessário aguardar o legislador. Basta o Poder Judiciário continuar desempenhando o seu papel com coragem e responsabilidade, para garantir a cidadania a todos, principalmente a crianças e adolescentes.

 

Publicado em 10/03/2013.

[1] Advogada especializada em Direito das Famílias e Sucessões

Ex-Desembargadora do Tribunal de Justiça-RS

Vice-Presidenta Nacional do IBDFAM

www.mbdias.com.br

www.mariaberenice.com.br

[2] MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado, 3ª. Ed., Tomo IX, Borsoi: 1971, p. 99.

[3] FERNANDES, Thycho Barhe. Do Termo Inicial dos Alimentos na Ação de Investigação de Paternidade, Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 694, p. 268-70, 1993; COLTRO, Antônio Carlos Mathias. O Termo Inicial dos Alimentos e a Ação de Investigação de Paternidade, Revista do Instituto dos Advogados de São Paulo, São Paulo, n. 6, p. 50-60, 2000; BORGHEZAN, Miguel. O Termo Inicial dos Alimentos e A Concreta Defesa da Vida na Ação de Investigação de Paternidade, Repertório IOB de Jurisprudência, São Paulo, 3/18048, 2001.

[4] INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. RECUSA EM SUBMETER AO EXAME DE DNA. ALIMENTOS. FIXAÇÃO E TERMO INICIAL À DATA DA CONCEPÇÃO. A recusa em se submeter ao exame de paternidade gera presunção da paternidade. O fato de inexistir pedido expresso de alimentos não impede o magistrado de fixá-los, não sendo extra petita a sentença.

O termo inicial da obrigação alimentar deve ser o da data da concepção quando o genitor tinha ciência da gravidez e recusou-se a reconhecer o filho. REJEITADA A PRELIMINAR. APELO DESPROVIDO, POR MAIORIA. (TJRGS – AC 70012915062 – 7ª C.Cív. – Rel. Desa. Maria Berenice Dias – j. 9/11/2005).