Alimentos e investigação de paternidade

Maria Berenice Dias[1]

 

Como os alimentos dizem com a garantia de subsistência a necessidade de seu adimplemento é urgente. Para garantir seu adimplemento imediato a Lei de Alimentos (LA 5.478-68) prevê rito abreviado, autorizando a concessão de tutela antecipada, mediante a prova pré-constituída do vínculo obrigacional de natureza alimentar. Daí a possibilidade do deferimento de alimentos provisórios. Os alimentos são devidos desde a data em que o juiz despacha a petição inicial, antes mesmo da citação do devedor (LA, art. 4º).

Nas ações de investigação de paternidade, inexiste o vínculo pré-constituído da relação de parentesco. Aliás, este é o próprio objeto da ação. Ainda assim, por salutar construção jurisprudencial, passou-se a conceder alimentos provisórios também nessas demandas. Havendo indícios de prova do vínculo de parentalidade são fixados alimentos initio litis. Também são deferidos alimentos provisórios de modo incidental, ou quando do resultado positivo do exame de DNA ou quando da recusa do réu em se submeter à perícia.

Depois de algumas vacilações, a jurisprudência, atentando à natureza declaratória da demanda, deu mais um significativo passo ao emprestar efeito retroativo aos alimentos fixados na sentença. O Superior Tribunal de Justiça acabou por editar a Súmula 227: Julgada procedente a investigação de paternidade, os alimentos são devidos a partir da citação.

Acabou por invocar-se dispositivo da Lei de Alimentos (LA, 5.578-68, art. 13, § 2º): Em qualquer caso os alimentos fixados retroagem à data da citação. A determinação é de aplicação dessa lei às ações de separação, de anulação de casamento e às ações revisionais de alimentos.

Em todas essas demandas existe a prova pré-constituída do vínculo obrigacional de natureza alimentar. Na demanda investigatória tal não existe, mas a solução foi providencial. Uma bela forma de dar um basta às posturas procrastinatórias do réu que usava todos os expedientes protelatórios e recursos manifestamente improcedentes para retardar o desfecho da ação, pois a condenação ao pagamento dos alimentos ocorria somente na sentença. Com isso livrava-se durante anos ou décadas do encargo alimentar.

O filho tem direito à identidade, à proteção integral, merece viver com dignidade, precisa de alimentos, quer ter alguém para chamar de pai, mas acaba, durante muitos anos, no mais completo abandono. Quando, depois de vários anos, consegue obter o reconhecimento da paternidade, os alimentos são devidos somente a partir da citação do genitor.  Diante dessa orientação consolidada da jurisprudência, não há como se falar em paternidade responsável. Quem é o pai que acompanhará a mãe, prestará auxílio, registrará o filho e prestará alimentos tendo conhecimento de que, se ficar inerte e lograr se safar da citação, poderá ficar anos sem arcar com nada?

Mas pai é pai desde a concepção do filho. A partir daí, nascem todos os ônus, encargos e deveres decorrentes do poder familiar. O simples fato de não assumir a responsabilidade parental não pode desonerá-lo. O filho necessita de cuidados especiais ainda durante a vida intra-uterina. A mãe tem que se submeter a exames pré-natais, e o parto sempre gera despesas, ainda que feito  pelo SUS. Durante a gravidez, a mãe precisa de roupas especiais e alimentação adequada, sem olvidar que tem sua capacidade laboral reduzida durante a gestação e depois do nascimento do filho. Também seus ganhos são limitados durante o período da licença-maternidade.

É preciso dar efetividade ao princípio da paternidade responsável que a Constituição procurou realçar quando elegeu, como prioridade absoluta a proteção integral a crianças e adolescentes (CF, art. 227), delegando não só à família, mas também à sociedade e ao próprio Estado, o compromisso pela formação do cidadão de amanhã. Esse compromisso é também do Poder Judiciário, que não pode simplesmente desonerar o genitor de todos os encargos decorrentes do poder familiar e, na ação investigatória de paternidade, responsabilizá-lo exclusivamente a partir da citação.

Mas há outro princípio constitucional que necessita ser invocado: o que impõe tratamento isonômico aos filhos, vedando tratamento discriminatório (CF, art. 227, §6º). O pai responsável acompanha o filho desde sua concepção, participa do parto, registra o filho, o embala no colo. Deve a Justiça procurar suavizar essas desigualdades e não as acentuar ainda mais.

Claro que a alegação do réu sempre será de que desconhecia a gravidez, não sabia do nascimento do filho e sequer tomara conhecimento da sua existência, só vindo a saber de tais fatos quando citado para a ação de investigação. Nessas ações, como a prova é de fato que acontece a descoberto de testemunha, não há divisão tarifada dos encargos probatórios segundo os ditames do estatuto processual (CPC, art. 333). Agora, em face do alto grau de certeza dos exames de DNA e da presunção que decorre da negativa em submeter-se à perícia (CC, arts. 230 e 231), a atribuição dos ônus probatórios até perdeu relevo. No entanto, com referência à prova da ciência da paternidade persistem os mesmos princípios, ou seja, cabe ao autor demonstrar as circunstâncias em que réu tomou conhecimento de sua concepção, do seu nascimento ou da sua existência. Não logrando o demandado comprovar que desconhecia ser o pai do autor antes da citação, deverá ser imposto o pagamento dos alimentos desde o momento em que tomou ciência da paternidade.

Outro fundamento a ser utilizado pelo réu, para livrar-se do pagamento dos alimentos com efeito retroativo, é que não tinha certeza da paternidade, não podendo assumir o encargo sem saber se o filho era seu. No entanto, desde o surgimento do exame do DNA, que dispõe de índice de certeza quase absoluto, não há mais como alegar dúvida sobre a verdade biológica. Nem o seu elevado custo, nem a negativa da genitora em deixar o filho submeter-se ao exame servem de justificativa para o genitor não buscar a verdade. Basta ingressar com a alguém ação declaratória da paternidade ou negatória de paternidade. Também possível ajuizar cautelar de produção antecipada de prova. Em todas as hipóteses teria acesso ao exame genético gratuito.

Nada justifica livrar o genitor das obrigações decorrentes do poder familiar, que surgem desde a concepção do filho. Como a ação investigatória de paternidade tem carga eficacial declaratória, todos os efeitos retroagem à data da concepção, até mesmo a obrigação alimentar.

Esta é a orientação que já vinha se insinuando na doutrina e agora desponta na jurisprudência:

INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. RECUSA EM SUBMETER AO EXAME DE DNA. ALIMENTOS. FIXAÇÃO E TERMO INICIAL À DATA DA CONCEPÇÃO. A recusa em se submeter ao exame de paternidade gera presunção da paternidade. O fato de inexistir pedido expresso de alimentos não impede o magistrado de fixá-los, não sendo extra petita a sentença.

O termo inicial da obrigação alimentar deve ser o da data da concepção quando o genitor tinha ciência da gravidez e recusou-se a reconhecer o filho. REJEITADA A PRELIMINAR. APELO DESPROVIDO, POR MAIORIA. (TJRGS – AC 70012915062 – 7ª C.Cív. – Rel. Desa. Maria Berenice Dias – j. 9/11/2005).

 

 

Publicado em 24/06/2009.

[1] Advogada especializada em Direito Homoafetivo, Famílias e Sucessões

Ex-desembargadora do Tribunal de Justiça do RS

Vice-Presidente Nacional do IBDFAM

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