Adoção: um depósito de crianças e o absoluto desleixo estatal.

Maria Berenice Dias[1]

 

 

  1. Prioridade absoluta

A Constituição da República assegura proteção integral, com “prioridade absoluta”, a crianças e adolescentes.[2] A ninguém mais é conferido um leque de direitos e garantias com tal magnitude.

O adimplemento de todos estes encargos é imposto, primeiramente, à família. Quando esta deixa de cumprir os deveres decorrentes do poder familiar é que surge a obrigação subsidiária da sociedade e do Estado.

Contudo, não pode o Estado se colocar em situação tão confortável. É dele a obrigação primeira para com os cidadãos do amanhã. Dita responsabilidade começa mesmo antes do nascimento, pois tem o dever de assegurar ao nascituro o acompanhamento indispensável para seu desenvolvimento intrauterino nas melhores condições. A atuação coacta se sobrepõe até à vontade da gestante, uma vez que a omissão do dever de cuidado autoriza a intervenção, como a imposição de submeter-se ao acompanhamento pré-natal.

Claro que, quando se invoca a necessidade de intervenção estatal, logo vêm à mente o assustador número de mulheres dependentes químicas, que vivem nas ruas. Elas praticam sexo não seguro em troca da droga, o que muitas vezes resulta em gravidez indesejada.  A maioria sequer sabe quem é o genitor e acaba vendendo o filho para sustentar o vício.

Nestas – e em outras situações nem tão extremas – é urgente a ação do Estado, para evitar que a criança, por exemplo, nasça com síndrome da abstinência, o que gera graves sequelas para seu desenvolvimento saudável.

É neste momento que cabe ser invocado o interesse prioritário de quem veio ao mundo em situação tão adversa, apesar de todos os direitos que lhe são assegurados. Ora, se a genitora, durante o período da gravidez, não demonstrou qualquer preocupação para com o filho, não será quando de seu nascimento que vai assumir o punhado de deveres decorrentes do poder familiar.

Ou seja, não é possível insistir que ela permaneça com o filho. Aliás, sequer pode sair da maternidade com ele, sem uma assistência especializada muito próxima, para saber das condições em que ambos vão viver. Este suporte, no entanto, não existe. E não dá para aguardar que sejam implementadas políticas públicas ou estruturas governamentais para tal acompanhamento. Com isso a criança acaba exposta a situações de absoluta negligência: é jogada no lixo, é vendida, ou fica refém do meio inadequado em que passa a vier.

Deste modo, é necessária uma resposta efetiva e urgente.

E esta resposta é uma só: a adoção.

 

  1. A falência do sistema

Ao assegurar a Constituição o direito à convivência familiar, maior é a responsabilidade estatal quando crianças e adolescentes são afastados dos pais, encontrando-se em situação de absoluta vulnerabilidade.

Frente a este encargo, foram criados mecanismos de institucionalização, inserção em família extensa, destituição do poder familiar para que, só então, seja possível a adoção. Estas providências costumam levar tempo exacerbado, tempo que crianças não podem esperar. Afinal, o tempo delas é urgente.

No momento em que a guarda de uma criança ou um adolescente é transferida ao Estado pelos pais, ou é deles afastados, por evidências de maus tratos ou abusos, deve imediatamente ser entregue à guarda provisória do pretendente à adoção, para reduzir, ao mínimo, o período de abrigamento.

Ainda que a falta ou a carência de recursos materiais não constitua motivo suficiente para alijar os filhos do convívio dos pais, o fato de terem sido institucionalizados – por retirada compulsória ou entrega voluntária – evidencia, por si só, a inexistência de responsabilidade parental. Assim, de todo descabido aguardar que os genitores adquiram condições de recuperar a guarda dos filhos. Enquanto isso eles ficam literalmente depositados, na esperança que os pais os visitem quando em vez. Isso evidencia a primazia do direito dos pais e não o superior interesse dos filhos. É nada mais, nada menos do que tratar crianças e adolescentes como objetos de propriedade dos pais.

Igualmente é absurda a institucionalização do recém-nascido quando a gestante manifesta o desejo de entregá-lo à adoção. É inócuo buscar algum familiar que o queira. Até porque, durante a gestação nenhum parente se dispôs a assumir a criança que iria nascer.

O fato é que, a espera é tão grande que as crianças crescem enquanto quem quer adotá-las, acaba perdendo a esperança de conseguir um filho. Claro que com o passar dos anos, até para tamponar a angústia da espera, buscam outros pontos de gratificação. Ou, o que está acontecendo de modo muito recorrente, é a utilização das técnicas de reprodução assistida. Assim, a cada nascimento que acontece, uma criança sobra em um abrigo.

Crianças só querem ter um lar. Não podem ficar à espera do Estado que, em ao invés de cuidá-las, as desprotege, deixando-as encarceradas durante anos. De outro lado, também impõe doloroso tempo de espera a quem só tem amor para dar.

Cabe a todos os agentes públicos o dever de minimizar a condição de desamparo em que se encontram crianças e adolescentes afastados da família. Eles não podem esquecer que têm o dever de cumprir o preceito constitucional de dar proteção especial, com absoluta prioridade, a crianças e adolescentes. E, se o caminho da adoção é obstaculizado, sobra um contingente de futuros cidadãos a quem é negado o direito fundamental ao afeto, ao aconchego de uma família.

 

  1. Uma lei superada em matéria de adoção

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) foi editado para dar efetividade às garantias constitucionais asseguradas a crianças e adolescentes. Estando em vigor há quase 30 anos – equivocada e repetidamente – privilegia o vínculo genético para além do razoável. As inúmeras emendas a que foi submetido, mais o deformaram do que o reformaram.

Consagra a biologização do vínculo familiar. Ao considerar como prioritária a chamada “família natural”, insiste na permanência dos filhos com os pais. Ou busca entregá-los a algum parente, que muitas vezes nem os conhecem.

A adoção é estigmatizada de tal forma que 15 dispositivos a consideram como última opção, olvidando que o mais importante é constituição de um vínculo de filiação afetiva.

Cabe lembrar que o Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM),[3] atribuiu valor jurídico ao afeto e promoveu a mais fantástica revolução no Direito de Família, que passou a ser chamado de “Direito das Famílias”. Ao destacar o compromisso ético dos vínculos familiares, redesignou os conceitos de conjugalidade e parentalidade. Estes avanços, porém, não alcançaram o segmento mais sensível da sociedade: crianças e adolescentes afastados do convívio familiar e que se encontram sob a responsabilidade do Estado.

Na ânsia de manter os elos consanguíneos, deixa-se de atentar ao melhor interesse de quem se encontra em situação de abandono, negligência ou maus tratos. Ora, relegar a adoção como medida excepcional, impede que seja buscada a imediata inserção de quem não tem uma família, em uma estrutura familiar que já se encontra previamente habilitada a adotá-los.

Quando a genitora não tem condições de manter o filho em sua companhia, seu desejo é entregá-lo à adoção. Não quer que sejam convocados os parentes para atribuir-lhes a guarda. Aliás, houvesse tal intenção ou possibilidade, a mãe não a teria entregado à justiça. Muito menos, ela quer que o filho fique deposito em um abrigo por um prazo indefinido. Seu sonho é que ele viva em uma família, tenha o lar que ela não conseguiu lhe garantir.

Esta tendenciosidade legal acaba por desrespeitar tanto o direito da mulher de não ser mãe, como o direito do filho de ter uma família para chamar de sua. Afinal, o direito à convivência familiar, assegurado constitucionalmente, não significa viver com a família natural ou extensa.

 

  1. A longa espera

Apesar de o ECA afirmar que o acolhimento institucional é medida provisória e excepcional, de caráter transitório, não implicando em privação de liberdade, bebês, crianças e adolescentes abandonados pelos pais ou deles alijados, acabam depositados em verdadeiras prisões.

Permanecem praticamente encarcerados, em situação pior do que os criminosos. Os apenados, ao serem condenados, sabem quando serão soltos. Eles têm direito de receber visitas, enquanto ninguém tem acesso às crianças e aos adolescentes institucionalizadas. Nem as pessoas que se dispõem a fazer algum trabalho voluntário ou querem dar-lhes um pouco de carinho e atenção. Sequer os Grupos de Apoio à Adoção, ou mesmo os candidatos devidamente cadastrados a adotá-los, podem conhecê-los.

Ainda que prevista na lei a permanência de crianças e adolescentes fora de um lar, enquanto se procura quem os queira no âmbito da sua família biológica, a demora afronta o princípio constitucional que garante, com absoluta prioridade, o direito à convivência familiar. Por melhor que sejam alguns espaços de abrigamento, o que eles precisam é de um lar, alguém para chamar de mãe, de pai.

São mais do que precários os serviços e programas oficiais de proteção, apoio e promoção para que os filhos fiquem em suas famílias de origem. As tentativas de ressocializar os pais, retirá-los da rua, afastá-los das drogas, inseri-los no mercado de trabalho para que tenham condições de ficarem com os filhos, têm se mostrado absolutamente infrutíferas.

Depois de muito se insistir que os genitores acolham os filhos de volta, parte-se na busca de algum parente. Esta simplista e irresponsável solução decorre da equivocada crença de que se devem manter os vínculos biológicos a qualquer custo. O período de tentativas de inserção na família, geralmente ultrapassa o prazo legal, que é de até seis meses.

Justificativas não faltam para a perpetuação do período de abrigamento. Há uma absoluta ausência de controle das instituições de acolhimento institucional e falta acompanhamento do programa de acolhimento familiar.

Soma-se a tudo isso a falta de estrutura do Poder Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria Pública para agilizar os procedimentos de guarda, destituição do poder familiar e adoção.

Enquanto isso o tempo passa. Tempo demasiadamente longo para quem não tem um lar.

As vãs tentativas de reinserção na família natural e a longa espera de ser encontrado um parente que os queiram faz com que as frustrações se acumulam, o que causa danos psicológicos irreparáveis.

O desleixo do Estado é total e o resultado é desastroso.

 

  1. Família extensa não existe

Esgotadas todas as possibilidades de se conseguir que os filhos retornem à convivência dos genitores – algo que, no mais das vezes, já demanda tempo excessivo – a providência que melhor atende ao interesse de crianças e adolescentes deveria ser a imediata colocação sob a guarda de quem está habilitado a adotá-los.

No entanto, o ECA determina a procura de parentes, a quem as crianças são oferecidas. Assim, de bandeja, como meros objetos e não como seres humanos, cuja dignidade há de ser priorizada. Pior, nenhum estudo psicossocial é feito para verificar se o parente tem condições de assumir a guarda.

Define a lei como família extensa os parentes próximos com os quais a criança ou o adolescente convive e mantém vínculos de afinidade e afetividade.  Não corresponde ao conceito de parentesco, em linha reta ou em linha colateral, até o quarto grau. Para merecer o qualificativo de família extensa, é indispensável que a criança conviva com eles e mantenha vínculos de afinidade e afetividade.

Antes de serem convocados os parentes, seria indispensável questionar a criança sobre o desejo de passar a residir com algum deles, pois sua vontade há que ser considerada. E, caso se trate de adolescente, é necessário seu consentimento.

Quando se trata de um recém-nascido, o equívoco em buscar a família extensa é flagrante. Quem acabou de nascer não tem vínculo com ninguém, o que dispensa esta longa e ineficaz providência, que só aumenta o tempo em que o bebê ficará abrigado.

Para a busca da família extensa a lei defere o prazo de três meses, prorrogável por mais três meses. O inadimplemento deste prazo é cotidianamente ultrapassado, sem gerar qualquer consequência, o que faz com que estas “diligências” se eternizem.

De outro lado, não é indicado quem deve assumir este encargo investigativo. Às claras que não compete ao juiz, ao escrivão, aos oficiais de justiça, nem ao promotor ou às autoridades policiais, e muito menos aos defensores públicos, saírem à caça de um parente que deseje assumir a guarda dos filhos que foram alijados da convivência dos pais biológicos. Aliás, se alguém tivesse interesse em assumir esta responsabilidade, certamente não teria ocorrido a institucionalização.

Na busca da família extensa, os primeiros lembrados são sempre os avós, os quais, no entanto, não podem adotar os netos. Dito impedimento acontece também com relação aos irmãos. A estes – e de modo geral aos demais parentes – é deferida apenas a guarda, o que enseja uma condição jurídica das mais precárias. Quem está sob a guarda de outrem, dispõe apenas de direitos previdenciários. Nada mais. Caso o guardião venha a falecer não tem o “guardado” direito nem a alimentos e nem a direitos sucessórios.

No mais das vezes, os parentes – que sequer conheciam a criança ou o adolescente e nem sabiam do abrigamento –, por solidariedade ou piedade, acabam concordando em assumir a guarda. Ausente prévio vínculo de convivência e afetividade, e sem qualquer preparação ou acompanhamento, eles, depois de um tempo, acabam desistindo. Daí as frequentes devoluções. . E as consequências são para lá de nefastas para quem nutriu a esperança de ter uma família. Sentem-se novamente rejeitados.

Como a Justiça tem imposto obrigação indenizatória em caso de desistência, são cada vez mais remotas as chances de acolhimento por parentes.

De qualquer modo, continuar vivendo no mesmo ambiente familiar faz o passado estar sempre presente. Não terá a criança ou o adolescente um lar, um pai, uma mãe; dois pais ou duas mães. Somente terá avós, tios ou o parente que acolheu. Assim, sempre sofrerá o estigma de ser filho de quem não o quis. Não há dúvida que este será o sentimento quando encontrar a mãe nas reuniões de família, muitas vezes com outros filhos.

 

  1. Entrega voluntária

Entregar filho à adoção não é proibido. Não é crime. Não configura o delito de abandono de incapaz.[4] Até porque, abrir mão do filho quando não se tem condições de criá-lo é um enorme e dolorido gesto de amor.

Mesmo que o consentimento da mãe seja manifestado por escrito, ela precisa comparecer na Justiça da Infância e da Adolescência, onde recebe assistência psicológica. O juiz pode encaminhá-la à rede pública de saúde e assistência social para atendimento especializado.

A gestante ou a mãe que manifestar interesse de entregar o filho à adoção tem direito ao sigilo, mas, paradoxalmente, o adotado pode conhecer sua origem biológica.

Apresentado um relatório multidisciplinar, a vontade da mãe precisa ser ratificada em audiência, quando é ouvida pelo juiz, na presença do Ministério Público e com a assistência de advogado ou defensor público.

Mesmo depois de reconhecida como livre a manifestação da genitora, ela pode voltar atrás até 10 dias depois da sentença de extinção do pode familiar.

Acontece que a mãe acaba submetida a uma verdadeira lavagem cerebral, pois tentam convencê-la de não abrir mão do filho. A maternidade é glorificada com invocação de preceitos religiosos, sendo alertada sobre a irrevogabilidade da adoção. Sentindo-se pressionada a não “cometer o pecado” de abrir mão do filho, muitas vezes, ela acaba desiste. Fica com o filho, mas não recebe qualquer acompanhamento. E o que acontece? Acaba abandonando o filho. Surpreende o número de recém-nascidos encontrados em lixões. E isso que só é noticiado quando são encontrados vivos.

Antes do nascimento da criança, nenhuma providência é levada a efeito. Ou seja, não há a possibilidade de a criança ser entregue, ao nascer, a quem se encontra habilitado a adotá-lo. A mãe não pode conhecer quem serão os pais de seu filho.

 

  1. Ação de perda, destituição ou extinção do poder familiar

Durante o período de acolhimento familiar ou institucional, a cada três meses, equipe multidisciplinar deve remeter ao à autoridade judiciária relatório circunstanciado acerca da situação de cada abrigado e de sua família. Com tal subsídio o juiz decide pela possibilidade de reintegração familiar ou pela colocação em família substituta – assim chamada quem está habilitado a adotá-lo. Esta providência, normal Injustificadamente, não é adotada.

Para emprestar maior celeridade, o processo de destituição do poder familiar deve ser cumulado com a ação de adoção, para que a transferência do poder familiar dos pais biológicos para os adotivos não sofra solução de continuidade.

Constatada a impossibilidade de reintegração na família de origem, o Ministério Público tem o prazo de 15 dias, para propor a ação de destituição do poder familiar.

Mesmo que acompanhe a petição inicial todos os estudos e relatórios periodicamente realizados, o agente ministerial não requer, em caráter liminar, a suspensão do poder familiar e a entrega, a título de guarda provisória, a quem está habilitado a adotá-lo.   De igual modo, ao despachar a inicial, o juiz, de ofício, não toma tal providência.

E, de forma surpreendente, são realizados novos estudos sociais e perícias, geralmente pelos mesmos profissionais, havendo espaço para a ouvida de testemunhas. Proferida sentença de procedência, apesar da presença de amplos elementos probatórios, ainda assim a Defensoria Pública esgota todas as possibilidades recursais, mesmo quando os pais são revéis. Ora, havendo o interesse maior de crianças e adolescentes terem uma família, de todo descabido buscar a manutenção do poder familiar, quando comprovado que os genitores não têm condições de exercer este encargo.

Apesar de a sentença estar sujeita a recurso sem efeito suspensivo, somente depois do trânsito em julgado é que acontece a inclusão no Cadastro de Adoção.

Desde o fim do convívio familiar, quanto tempo se passou?

Muitas vezes a criança cresceu institucionalizada e o adolescente atingiu a maioridade.

 

  1. Adoção

Desde que foram instituídos os cadastros nacionais de adotantes e de adotandos, a tendência dos juízes e promotores é transformar estes meros instrumentos facilitadores em uma ferramenta impeditiva da adoção.  Atenta-se cegamente à ordem de anterioridade, deixando de ser considerado que a adoção deve ser deferida quando apresentar reais vantagens a quem será adotado e fundar-se em motivos legítimos.

A adoção depende de processo judicial, que, no entanto, não dispõe de um procedimento próprio.

A sentença que defere a adoção produz efeitos desde logo, ainda que sujeita a apelação, que deve ser recebida exclusivamente no efeito devolutivo. Este dispositivo, no entanto, é sistematicamente desconsiderado. A adoção é deferida somente após o trânsito em julgado da sentença.

O prazo máximo para o término da ação é de quatro meses, prorrogável, uma única vez, por igual prazo. Sem punição, a imposição de prazos não tem qualquer sentido e, às claras, não é respeitado.

Olvidando-se a situação de vulnerabilidade de quem se encontra institucionalizado, o intuito de proteger acabou por burocratizar de tal forma os sucessivos e morosos procedimentos que a adoção se tornou um verdadeiro suplício, não só para quem quer adotar, mas principalmente para quem anseia por uma família.

De qualquer modo, é indispensável abrir as portas dos abrigos, para possibilitar que os candidatos à adoção tenham acesso a todas as instituições em que há crianças abrigadas.

É preciso oportunizar que surja empatia entre a criança e quem quer ser seu pai, sua mãe, para que aconteça o milagre da identificação entre eles.

 

  1. A busca pela inscrição

A morosidade não impera somente com relação a quem espera ser adotado. O procedimento de habilitação à adoção também é bastante burocrático.

O interessado deve comparecer ao Juizado da Infância e Juventude da comarca em que reside, munido de um rol de documentos, desde atestado de sanidade física e mental até certidão negativa de ações cíveis.

O requerimento é autuado e enviado ao Ministério Público, que pode requerer diligências e até a designação de audiência para a ouvida dos postulantes e de testemunhas.

Os candidatos sujeitam-se a um período de preparação psicossocial e jurídica. É obrigatória a participação em programa que inclua preparação psicológica, orientação e estímulo à adoção inter-racial, de crianças ou de adolescentes com deficiência, com doenças crônicas ou com necessidades específicas de saúde, bem como de grupos de irmãos.

A preparação deve incluir contato com crianças e adolescentes em regime de acolhimento. Ou seja, antes de terem a possibilidade de adotar, os candidatos podem conhecer quem está institucionalizado. Depois de inseridos no cadastro de adotantes, as portas estão fechadas a eles.

Concluídas todas estas etapas, a equipe técnica elabora um relatório deve conter subsídios que permitam aferir a capacidade e o preparo do candidato ao exercício da parentalidade responsável, o juiz pode determinar as diligências e designar audiência de instrução e julgamento.

O prazo máximo para a conclusão do procedimento de habilitação é de quatro meses, prorrogável por mais quatro meses, mas, em regra, demora de um a dois anos.

A habilitação tem prazo de validade de três anos, devendo haver nova avaliação por equipe interprofissional.

Deferida a habilitação, o postulante é inscrito no cadastro, aguardando – durante anos – receber um e-mail que o informe que existe alguém que corresponde ao perfil eleito.

Claro que todas as pessoas idealizam os filhos que desejam ter, por isso querem adotar quem corresponde a seus sonhos. Daí a preferência por bebês ou crianças de pouca idade. Como são proibidos de visitar as instituições de acolhimento, não têm a chance de conhecer quem está abrigado, é difícil alterarem o perfil que elegeram.

Diante de tal condenação à invisibilidade, grupos de irmãos, adolescentes e crianças maiores, pretas, pardas ou com algum tipo de deficiência física ou mental não têm a mínima chance de cativar alguém. Afinal, ninguém adota uma criança com alguma espécie de limitação se não a tiver conhecido e se encantado por ela.

Como nada disso é possível, o jeito é esperar.

Conclusão: diante do longo o período de espera, quando os candidatos são contatadas, por ter sido encontrada a criança que desejavam, muitas vezes, o desejo pela adoção às vezes já desapareceu.

Talvez decorra daí o número significativo de desistências e até de devoluções.

 

  1. Adoção consensual

Os trâmites legais são tão, tão morosos e burocráticos que de modo muito frequente a mãe elege a quem entregar o filho. Quer em face de alguma identidade ou afinidade, quer pela certeza que ele terá imediatamente uma  família. Ou ainda pelo desejo que o filho seja adotado e não entregue a alguém de sua família ou, pior, permaneça, por anos, depositado em um abrigo.

É a chamada adoção direta, afetiva, consensual ou intuito personae.

Esta é uma solução repudiada por todos, por não se sujeitar a nenhum controle estatal. Mas certamente é a modalidade mais praticada no Brasil.

A forma que o Estado encontra para tentar coibir tal prática é – ao fim e ao cabo – punindo a criança. Mesmo quando já consolidado o vínculo de filiação socioafetiva com quem ela reconhece como pais, por ter sido desrespeitado ao famigerado cadastro, promotores requererem, e juízes deferem, a busca e apreensão. E assim é feita a retirada compulsória de criança de seus lares, do seio da única família que conhece, dos pais que a amaram, cuidaram, ninaram desde sempre.

Sequer é feito, como deveria, um estudo social, para verificar a presença de um elo de afetividade e afinidade, e identificar a constituição de um vínculo familiar que atende ao seu melhor interesse.

A criança é institucionalizada e começa o moroso procedimento de tentar reinseri-la na família natural, encontrar algum parente. Depois, é promovida a ação de destituição do poder familiar, para só então ela ser disponibilizada à adoção, para o primeiro candidato do cadastro.  Certamente depois de anos.

A finalidade desta medida extrema é punir eventual erro da mãe que não teve chance de fazer com que sua vontade fosse respeitada. Quando engravidou, não pode abortar. Quando manifestou o desejo de entregar o filho à adoção, encontrou resistência de toda a ordem.

No entanto, quem acaba punido é seu filho. Ele que foi rejeitado pela mãe, pela família extensa, não pode ser adotado por quem o acolheu. Ao encontrar um lar, é de lá arrancado e encarcerado para dar cumprimento a uma lei que não o protege.

Ou seja, quem deveria receber do Estado especial atenção, com prioritária absoluta, acaba sendo alvo de sucessivas rejeições e perdas.

 

  1. Estatuto da Adoção – PLS 394/2017

Diante desta realidade, claro que o IBDFAM não poderia ficar inerte. Aceitou mais este desafio e assumiu a responsabilidade de fazer algo em prol das crianças e dos adolescentes que permanecem encarcerados, durante anos, enquanto esperam, em vão, que alguém as queira.

Com o intuito de convocar a sociedade a se mobilizar sobre tema tão urgente, foi lançado o Projeto Crianças Invisíveis. Afinal, é preciso dar um basta à injustificável demora na infrutífera busca de inserção na família extensa e ao moroso procedimento de destituição do poder familiar até que crianças e adolescentes sejam disponibilizadas à adoção.

Todas as tentativas de remendar o ECA foram infrutíferas. A adoção se espraia em muitos capítulos, o que dificulta a construção de procedimentos ágeis para dar-lhe efetividade.

Acabou o IBDFAM por criar uma comissão de especialistas que, com todo o esmero, elaborou o Anteprojeto do Estatuto da Adoção.[5] Sem se afastar dos princípios norteadores do ECA, agiliza os mecanismos para atender ao comando constitucional de assegurar, com prioridade absoluta, o direito à convivência familiar.

Alguns dos pontos mais relevantes do Projeto merecem ser destacados.

O formato do Estatuto é de um microssistema, moderna forma de socorrer pessoas em situação de vulnerabilidade. Consagra princípios, estabelece regras de conteúdo material, bem como disciplina os procedimentos judiciais.

Traz um novo olhar sobre a adoção, como forma de privilegiar o direito de viver em uma entidade familiar, expressão que não corresponde ao conceito de família natural ou extensa. Prevalece o urgente direito a um lar.

As instituições que acolhem crianças e adolescentes precisam assegurar o acesso não só aos candidatos à adoção, mas a todos aqueles que se dispõem a fazer algum trabalho voluntário voltado a dar-lhes afeto e atenção individualizada.

Também aos Grupos de Apoio à Adoção é assegurado livre acesso aos locais de abrigamento, bem como a consulta aos Cadastros a Adoção. Não há outra forma de promover busca ativa para adoções tardias, de grupos de irmãos, ou de crianças e adolescentes portadores de problemas físicos ou mentais.

Os irmãos pertencentes a um mesmo grupo familiar que mantenham vínculos fraternos devem permanecer na mesma instituição e, preferencialmente, serem adotados pela mesmo núcleo familiar. Havendo dificuldade de inserção de todos em uma única família, a adoção pode ser levada a efeito por famílias distintas, de uma mesma cidade ou região, assumindo os adotantes o compromisso de manter os vínculos de convivência entre todos.

As especificidades para a implantação dos programas de apadrinhamento afetivo são delegadas a normas de âmbito estadual. No entanto, comprovado o surgimento de vínculo socioafetivo entre padrinhos e afilhados é assegurada a preferência à adoção, ainda que haja candidatos habilitados a adotá-los.

No âmbito processual, foram criados procedimentos céleres para as ações de destituição do poder familiar e adoção, de modo a evitar que se perpetue a realidade vivenciada nos dias de hoje.

Ao Estado, é atribuída somente a responsabilidade de procurar a família biológica. É a família extensa que deve procurar a Justiça para manifestar o desejo de permanecer com a criança que se encontra institucionalizada.

A entrega voluntária do filho à adoção perante a autoridade judicial autoriza a suspensão liminar do poder familiar e a imediata colocação sob a guarda provisória, para fins de adoção, a quem estiver habilitado a adotar criança com aquele perfil.

Quando a mãe ou os pais manifestarem o desejo de entregar o filho à adoção para determinada pessoa ou família, a manifestação deve ser tomada a termo. Formalizada a guarda provisória aos pretendentes, equipe interdisciplinar fará relatório comprovando a presença ou não das condições necessárias à adoção. No mesmo procedimento, ouvido o Ministério Público, o juiz destitui dos pais a autoridade parental e defere a adoção.

Concedida a guarda aos pretendentes à adoção, mediante termo de responsabilidade, haverá acompanhamento familiar, pelo prazo de noventa dias, por equipe interdisciplinar da Justiça da Criança e Adolescente, do serviço de acolhimento institucional ou dos Grupos de Apoio à Adoção.

O juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Público ou de qualquer das partes, em caráter liminar ou incidental, pode decretar a suspensão da autoridade parental e conceder a guarda provisória a quem se encontre com a guarda de fato ou esteja habilitado à adoção de criança com perfil equivalente.

Caso o poder familiar dos pais tenha sido suspenso, a ação de adoção deve ser cumulada com a ação de destituição da parentalidade.

Nos casos em que o melhor interesse recomendar, a habilitação para adoção pode acontecer no curso do próprio processo de adoção.

 

 

  1. Conclusão

De há muito o vínculo paterno-filial não está mais atrelado à verdade biológica. Prestigia-se, prioritariamente, a socioafetividade, como elemento identificador das relações familiares. Esta realidade não pode ser olvidada na adoção, vínculo de filiação lastreada exclusivamente no afeto.

Porém, o ECA e as sucessivas alterações a que foi submetido evidenciam sua imprestabilidade para atender à realidade dos dias atuais: milhares de crianças e adolescentes institucionalizados e somente pequena parcela disponível à adoção.

Para reverter este doloroso quadro, é indispensável uma drástica redução nos prazos dos procedimentos judiciais, bem como oportunizar aos candidatos à adoção que tenham acesso a quem só quer ter o direito a um lar. Não há outra forma de garantir a constituição de vínculos afetivos que permitam a construção da verdadeira parentalidade.

Os famigerados cadastros, que deveriam servir para agilizar o processo de aproximação, simplesmente não funcionam. Não são alimentados corretamente. Ninguém assume a responsabilidade de fazer o cruzamento de dados para que adoções aconteçam. A chamada busca ativa, isto é, a busca de adotantes para determinada criança ou adolescente simplesmente não é feita.

Ora, a única forma de motivar os pretendentes cadastrados a trocarem o perfil do filho sonhado, é dar-lhes a chance de conhecer quem se encontra disponível à adoção. Mas, enquanto não for franqueado acesso aos abrigos, crianças e adolescentes com deficiências, doenças crônicas ou necessidades específicas de saúde jamais serão adotadas.

De outro lado, a falta de sensibilidade de alguns juízes, promotores e defensores acaba praticamente por inviabilizar a adoção. O intuito de proteger emperra de tal forma os sucessivos e morosos procedimentos, que a adoção se torna um sonho inacessível, não só para quem quer adotar, mas principalmente para quem anseia por uma família.

É absolutamente equivocado o prestígio que se empresta à família natural, ao se buscar, a qualquer preço, manter o vínculo biológico, na vã tentativa de manter os filhos sob a guarda dos pais ou dos parentes que constituem a chamada família estendida.

As infrutíferas tentativas de inserção no âmbito da família natural, faz com que as crianças e os adolescentes que se encontram institucionalizados acumulem sucessivas perdas e terrível sentimento de abandono, com severas sequelas psicológicas.

Aguardar que se vença esta etapa para ter início a ação de destituição do poder familiar e só incluir no cadastro à adoção depois do trânsito em julgado da sentença, é – para dizer o mínimo – perverso.

Já que o Ministério Público só propõe a ação de destituição depois de laudos e estudos sociais comprovar que inexistem condições de se restabelecer a convivência familiar, deve requerer, a título de tutela antecipada, que seja concedida a guarda a quem se encontra habilitado à adoção.

Diante da omissão do promotor, cabe ao juiz, de ofício, ao despachar a inicial, determinar a entrega, a título de guarda provisória, a quem estiver apto a adotá-los.

Também de todo descabido que, instruída a ação com relatórios de equipes multiprofissionais, inspeções do Ministério Público, o resultado de audiências concentradas, na fase judicial sejam realizados novos estudos psicossociais. Esta desnecessária dilação faz com que crianças e adolescentes percam a possibilidade de serem adotados. Eles deixam no abrigo sua infância, o período mais significativo para o sadio desenvolvimento e a construção da própria identidade. Para, quando atingirem a maioridade, serem despejados dos abrigos.

Há que se considerar, ainda, o expressivo número de crianças institucionalizadas com algum tipo de doença crônica ou deficiência. Sem que possam encantar quem veja seu sorriso, uma expressão de ternura, elas jamais serão adotadas. Também há muitos grupos de irmãos, há adolescentes, que as pessoas temem amar.

É necessário assegurar o interesse de quem tem o constitucional direito de ser protegido e amado, ao invés de priorizar o pretenso direito de pais e familiares que não souberam ou não quiseram assumir os deveres parentais.

Afinal, não é o elo biológico que merece ser preservado. São os vínculos afetivos que precisam ser assegurados a quem tem o direito de ser amado como filho.

Daí a urgência para que seja aprovado o Estatuto da Adoção.

 

 

Publicado em 24/04/2019.

 

 

[1] Desembargadora aposentada do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, advogada, Pós-graduada e Mestre em Processo Civil, Vice-Presidente Nacional do IBDFAM. Presidente da Comissão Nacional de Direito Homoafetivo e Gênero do IBDFAM.

[2] CR, art. 227.

[3] www.ibdfam.org.br

[4] Código Penal, art. 133: Abandonar pessoa que está sob seu cuidado, guarda, vigilância ou autoridade, e, por qualquer motivo, incapaz de defender-se dos riscos resultantes do abandono: Pena – detenção, de seis meses a três anos.

[5] Texto disponível no site: www.ibdfam.org.br.