Adoção e a espera do amor

 

Maria Berenice Dias[1]

 

 

Diz a Constituição, em seu artigo 227, que é dever do Estado assegurar a crianças e adolescentes, com absoluta prioridade, o direito à convivência familiar. Este direito nem sempre consegue ser exercido junto à família biológica. Daí a adoção, como uma saída para dar efetividade ao princípio da proteção integral. Porém, para evitar seqüelas de ordem psicológica pela falta de um lar, a adoção necessita ser levada a efeito de modo imediato.

Para atender a esta exigência é que o Estatuto da Criança e do Adolescente determina, em seu artigo 50, que a autoridade judiciária mantenha em cada comarca ou foro regional um duplo registro: um de crianças e adolescentes em condições de serem adotadas e outro de candidatos à adoção.

A finalidade das listas é agilizar o processo de adoção. Isto porque, se, primeiro, fosse necessário esperar a destituição do poder familiar para inserir a criança no rol dos adotáveis e, depois, se partisse em busca de alguém que a quisesse, para só então proceder à habilitação do candidato à adoção, muito tempo passaria, deixando-se de atender ao melhor interesse da criança.

De qualquer forma, ainda que haja a determinação de que sejam elaboradas as listas, não está escrito em nenhum lugar que só pode adotar quem está previamente inscrito, e que a adoção deve respeitar de forma estrita a ordem de inscrição. No entanto, passou a haver verdadeira idolatria à famigerada lista, a ponto de não se admitir qualquer “transgressão” a ela.

É claro que alguém que nunca tenha imaginado adotar uma criança não está na lista e, por isso, não está habilitado para a adoção. Mas, se esse alguém encontra um recém-nascido em uma lata do lixo – fato, aliás, infelizmente bastante freqüente –, não há porque impedir que a adote. Quem encontra assim uma criança acaba acreditando que foi Deus que a colocou em seu caminho, pois, se não a tivesse achado, provavelmente ela teria morrido.

Cabe perguntar: há algum motivo para não deferir a adoção a esta pessoa? Não, não há nenhum, mas os Juízes da Infância e da Juventude, que se consideram donos das crianças, não concedem a adoção. Simplesmente a entregam para o primeiro da lista e mandam a pessoa habilitar-se e esperar a sua vez para adotar a criança que oportunamente lhe será indicada. Mas o seu desejo não é adotar qualquer criança, é adotar a que encontrou como sendo um desígnio dos céus, pegou no colo e que encheu sua vida de significado.

Também, pelo mesmo e injustificado fundamento, não se reconhece o direito de a mãe escolher a quem entregar o seu filho. Aliás, dar um filho à adoção é o maior gesto de amor que existe. Sabendo que não poderá criá-lo, renunciar ao filho, para assegurar-lhe uma vida melhor que a sua, é atitude que só o amor justifica.

E nada, absolutamente nada impede que a mãe escolha quem sejam os pais de seu filho. Às vezes é a patroa, às vezes uma vizinha, em outros casos um casal de amigos que têm uma maneira de ver a vida, uma retidão de caráter que a mãe acha que seriam os pais ideais para o seu filho. É o que se chama de adoção intuitu personae, que não está prevista na lei, mas também não é vedada. A omissão do legislador em sede de adoção não significa que não existe tal possibilidade. Ao contrário, basta lembrar que a lei assegura aos pais o direito de nomear tutor a seu filho (CC, art. 1.729). E, se há a possibilidade de eleger quem vai ficar com o filho depois da morte, não se justifica negar o direito de escolha a quem dar em adoção.

Pois nem isso está sendo admitido. Mesmo que a mãe entregue o filho a quem lhe aprouver, o Ministério Público ingressa com pedido de busca e apreensão, e a criança acaba sendo institucionalizada. Lá permanece até findar o processo de destituição do poder familiar, o que freqüentemente chega a demorar anos. Só depois a criança é entregue em adoção ao primeiro inscrito da lista que eventualmente ainda a queiram, pois, de um modo geral, todos desejam adotar crianças de pouca idade.

Para que não haja “burla à lista”, a vigilância tem sido tão severa que nem mais se aceita trabalho voluntário junto a abrigos, com  o receio de que lá as pessoas compareçam para escolher alguma criança para adotar. Até parece que existe uma grande disputa, um enorme interesse pela adoção. Todos esquecem que quem está lá depositada aguarda ansiosamente tornar-se filho de alguém. Assim, às crianças que se encontram abrigadas não é dada sequer a chance de cativarem alguém. Agora nem mais podem ter padrinhos, essa bela iniciativa que apela à solidariedade social e busca criar vínculos afetivos.

À medida que o tempo passa, as crianças tornam-se “inadotáveis”, palavra feia, quase um palavrão, que significa crianças que ninguém quer, seja porque já não são bebês, seja porque não são brancas, ou não são perfeitas, eis portadoras de necessidades especiais. Pelo jeito ninguém lembra o porquê de as crianças estarem lá: ou foram abandonadas, ou os pais destituídos do poder familiar por maus tratos ou por abuso sexual. Nessa hipótese, aliás, é bem mais difícil que sejam adotadas.

Portanto, o que era para ser um simples mecanismo, um singelo instrumento agilizador de um procedimento transformou-se em um fim em si mesmo. Em vez de um meio libertário, passou a ser um fator inibitório e limitativo da adoção.

Com isso, olvida-se tudo o que vem sendo construído pela doutrina e já é aceito pela jurisprudência, quando se fala em vínculos familiares. Filiação socioafetiva, adoção à brasileira, posse do estado de filho são novos institutos construídos pela sensibilidade da Justiça, que tem origem no elo afetivo e levam ao reconhecimento do vínculo jurídico da filiação. É de tal ordem a relevância que se empresta ao afeto que se pode dizer agora que a filiação se define não pela verdade biológica, nem a verdade legal ou a verdade jurídica, mas pela verdade do coração.

Há filiação onde houver um vínculo de afetividade. Aliás, essa palavra está referida uma única vez no Código Civil, exatamente quando fala da proteção à pessoa dos filhos, ao dizer que a guarda deve ser deferida levando em conta a relação de afinidade e afetividade (1.584, parágrafo único). Assim, a sacralização da nefasta lista vai de encontro a tudo que vem sendo construído para realçar a afetividade como o elemento identificador dos vínculos familiares.

Quando se trilha o caminho que busca enlaçar no próprio conceito de família o afeto, desprezá-lo totalmente afronta não só a norma constitucional que consagra o princípio da proteção integral, mas também o princípio maior que serve de fundamento ao Estado Democrático de Direito: o respeito à dignidade de crianças e adolescentes.

 

Publicado em 24/03/2009.

[1] Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul

Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM

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