A voz do silêncio

Maria Berenice Dias[1]

 

 

Pssss… Por favor, não fale, cale.

Deixe o silêncio encobrir tudo, penetrar até a alma.

Afinal, é mais fácil acreditar que aquilo que não se ouve, que não se vê, não existe.

Para a mantença do que é aceito como certo, pelo simples fato de ser igual, o jeito é não ver nem ouvir qualquer coisa que se afaste do comportamento majoritário. O importante é respeitar os costumes, que nada mais são do que repetições do que é considerado bom e correto pelas gerações anteriores. É reconhecido como verdadeiro o que a maioria diz e todos repetem como eco.

Com desenvoltura, a sociedade faz surgir mecanismos de exclusão. Engessa as pessoas com rigidez dentro de estruturas cristalizadas, criando sistemas de alijamento do que refoge do padrão convencional. Toda e qualquer tentativa de fugir dos estereótipos estratificados é identificada como vício, pecado ou crime e rotulada de imoral, um atentado à ética e aos bons costumes.

Quem se afasta do modelo necessita se refugiar em guetos. A união de esforços, a formação de instituições e entidades é a forma encontrada pelos marginalizados para tentar obter respeitabilidade social. Dolorosa a inserção desses segmentos. Nem sempre a conjunção de forças, a organização de movimentos ou a constituição de agremiações logram êxito.

De um modo geral, é a família que serve de mola propulsora para o enfrentamento dos preconceitos. Porém, alguns segmentos, por serem estigmatizados também no âmbito familiar, têm mais dificuldade de romper a barreira da invisibilidade. Dentre os excluídos, os mais discriminados são certamente os homossexuais, que enfrentam maior dificuldade de obter aceitação. Sequer do respaldo familiar desfrutam, o que compromete a imagem pessoal, limita a auto-estima e dificulta a busca de integração. Praticamente são submetidos a um processo de auto-exclusão. A falta de respeito em quase todos os núcleos vivenciais os sujeitam ao escárnio público e os tornam o alvo preferido do anedotário de uma forma degradante. Essa é a face mais perversa do preconceito.

Felizmente essa cruel realidade está começando a ceder. A laicização da sociedade e a universalização dos direitos humanos estão rompendo a barreira do silêncio. A partir da consagração constitucional dos princípios da igualdade e da liberdade, bem como da eleição da dignidade da pessoa humana como finalidade maior do Estado, o Direito passou a ser a grande esperança.

Somente a conscientização da sociedade por meio de seus juízes poderá reverter posturas discriminatórias que levam a duvidar que se está vivendo em um Estado Democrático de Direito. O preconceito e a discriminação dificultam o processo integratório pela via legislativa. É demorada a aprovação de leis destinadas a segmentos com pouca expressão numérica e que são alvo de uma forte rejeição da maioria do eleitorado. A possibilidade de comprometer sua mantença no poder intimida o legislador.

A Justiça é conservadora. É difícil ao magistrado romper barreiras sem temer estigmas ao enfrentar assunto permeado de rejeição. No entanto, é preciso que os juízes tenham sensibilidade para enlaçar no âmbito da juridicidade situações que não dispõem do respaldo legal. Mas para isso é preciso coragem para empunhar a bandeira da igualdade e da liberdade na busca do respeito à dignidade da pessoa humana e da cidadania.

 

 

Publicado em 05/08/2004.

[1] Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul

Vice-Presidente Nacional do IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família

www.mariaberenice.com.br