A violência doméstica e a Lei Maria da Penha

Maria Berenice Dias[1]

 

A Lei Maria da Penha veio para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar, visando assegurar a integridade física, psíquica, sexual, moral e patrimonial da mulher.

Acabou o calvário das mulheres que, depois de fazer o registro da ocorrência, precisavam procurar a Defensoria Pública para pleitear na vara de família alguma providência, uma vez que a polícia nada podia fazer, sequer prender o agressor ainda que houvesse flagrante da violência. Bastava o agressor comprometer-se a comparecer a juízo.

Agora, a autoridade policial além de instaurar o inquérito policial, toma por termo a representação e o pedido de medidas de urgência, que deve ser encaminhada a juízo em 48 horas. O juiz pode afastar o agressor e reconduzir a ofendida ao lar; impedir que ele se aproxime da casa, fixando limite mínimo de distância; suspender visitas e fixar alimentos. Pode determinar a restituição de bens, suspender procurações e proibir a venda ou locação bens comuns. Quando a ofendida for servidora pública, tem prioridade à remoção ou, se trabalhar na iniciativa privada, é assegurada a manutenção do vínculo empregatício, por até seis meses.

Enquanto não forem criados os juizados especializados, como a lei designou as varas criminais para atender às demandas envolvendo a violência doméstica, a este devem ser encaminhados os pedidos de medida protetiva.  Apreciado o pedido liminar pelo juízo criminal, deferida ou não a tutela de urgência, deverá o expediente ser encaminhado à vara de família, ou ao juízo cível, onde inexistir vara especializada. Nesta sede é que deve o juiz designar audiência, intimando as partes, o Ministério Público e designando defensor às partes que não estiverem representados por advogado. Esta providência, ainda que não prevista na lei, é salutar, até porque os provimentos adotados envolvem questões de Direito de Família. A finalidade não é induzir a vítima a desistir da representação e nem forçar a reconciliação do casal. É uma tentativa de solver consensualmente temas como, guarda dos filhos, regulamentação das visitas, definição dos alimentos. Nesta audiência, logrado acordo, manifestando a vítima o desejo de renunciar à representação, o juiz deverá ouvir a vítima reservadamente, na presença do Ministério Público. Reconhecendo ser real sua intenção, homologa a desistência tal deve ser comunicado à autoridade policial para o trancamento do inquérito policial. Dita possibilidade só existe até o recebimento da denúncia.

Certamente o maior de todos os avanços foi a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, com competência cível e criminal. Foi enfático o legislador em sinalizar o repúdio à forma de como vinha sendo tratada a violência doméstica. De forma enfática, e até repetitiva excluiu a competência dos Juizados Especiais Criminais. Veta a aplicação da Lei 9.099/95 aos crimes aplicados com violência doméstica e familiar contra a mulher independentemente da pena prevista (LMP, art. 41). Fora tal  aumentou a pena máxima do delito de lesões corporais perpetrado no âmbito das relações domésticas, o que por si o excluiria da égide da lei especial (LMP, art. 44). Como se tudo isso não bastasse está vetada a aplicação, como pena alternativa, o pagamento de certa básica ou multa (LMP, art. 17).  Finalmente, como não foi imposta a criação dos Juizados de Violência Doméstica, enquanto não forem instaladas a competência foi atribuída às varas criminais, não podendo mais os processos serem enviados aos Juizados Especiais (LMP art. 33).

Afastada a aplicação da Lei 9.099/95, o ponto que mais tem entretido a doutrina e dividido a jurisprudência diz com o delito de lesões corporais. Questiona-se se deixou de ser considerado de pequeno potencial ofensivo; se a ação voltou a ser pública incondicionada; se é possível renúncia à representação.

De primeiro cabe atentar que o dispositivo que condicionava o delito de lesões corporais leves à representação, não se encontra no bojo da Lei, mas entre as disposições finais (LJE, art. 88), onde se situam regras que refogem ao tema objeto da ação. Assim, afastada a incidência da lei, tal não implica no afastamento das disposições de natureza outra que acabam por alterar dispositivo do Código Penal, ainda que não lhe empreste nova redação.

Ao depois atende ao propósito da Lei Maria da Penha dar um basta à violência doméstica, o que nem sempre é alcançado ao perpetuar-se a situação de conflito mediante a instauração de processo criminal quando já solvidas todas as questões que serviam de causa à violência.

Fora disso, de modo expresso, há referência à representação da vítima (LMP, art. 12) e à possibilidade de renúncia à representação em juízo (LMP, art. 16). Assim, mister reconhecer que, logrando o magistrado compor de forma consensual as causas geradoras da violência, mister assegurar à vítima a possibilidade de desistir da representação que havia formalizado na polícia. Para evitar a repetição das desastrosas situações a que as mulheres foram submetidas nos juizados especiais, agora para desistir da representação deve, acompanhada de advogado, perante o juiz e o Ministério Público. Agora, a representação é feita quando do registro da ocorrência, que enseja o desencadeamento do inquérito policial. No entanto, havendo composição perante o juiz, e solvendo-se a situação de conflito entre as partes, impositivo reconhecer a possibilidade de obstar o prosseguimento da demanda penal. Subtrair esta possibilidade, às claras irá inibir a denúncia por parte da vítima que, ao registrar a ocorrência não deseja nem se separar do agressor e nem que ele vá para a cadeia. Vai em busca de ajuda para que a violência cesse.

Conseguindo o juiz solver o conflito, imperioso garantir à vítima o direito de desistir, pois tal lhe confere poder de barganha. Pela vê primeira o agressor vê a vítima com mais poder do que ele, pois está nas mãos delas a possibilidade de ele responder ou não a processo criminal. Claro que este empoderamento da mulher é importante pois, temendo o prosseguimento da ação o agressor pode fazer concessões à mulher e filhos, quer quanto ao valor dos alimentos, quer quanto a partilha de bens.  certamente

De qualquer modo, não há a possibilidade da composição de danos ou a aplicação imediata de pena não privativa de liberdade. Igualmente o Ministério Público não pode propor transação penal e a aplicação imediata de pena restritiva de direito ou multa. Também não mais cabe a suspensão condicional do processo, mas, em sede dos incidentes de medidas protetivas, nada impede que o juiz suspenda o procedimento.

A previsão de mais uma hipótese de cabimento de prisão preventiva e a possibilidade de o juiz impor o comparecimento obrigatório do agressor a programas de recuperação e reeducação certamente é a novidade mais eficaz no combate à violência contra a mulher.

 

Publicado em 13/06/2010.

[1] Advogada especializada em Direito das Famílias e Sucessões

Ex-Desembargadora do Tribunal de Justiça-RS

Vice-Presidenta Nacional do IBDFAM

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