A ONU e a mulher
Maria Berenice Dias[1]
Palestra proferida na Reunião Soroptimista Internacional, em 17 de março de 1995, em Porto Alegre-RS.
Um novo século está nascendo com grandes transformações e profundas mudanças na vida dos povos. Apesar de haver uma busca de melhoria das condições de vida no planeta, há uma parcela significativa de excluídos, dentre os quais as mulheres, vítimas da desigualdade, da discriminação social, da pobreza e da violência.
Temos que lutar por nossos direitos é assunto que deveria ser falado em voz baixa, por ser vergonhosa, mais para as mulheres do que para os homens, esta submissão que nos impomos e que nos impede o acesso ao centro do poder.
Ainda é necessário bradar bem alto, pois a saga das mulheres ainda não se revelou suficiente para reverter essa triste realidade. Esse fato, por preocupar o mundo, levou as Nações Unidas a organizar sua mais significativa reunião, a realizar-se de 4 a 15 de setembro. A IV Conferência Mundial sobre a Mulher, em Pequim, sem dúvida será a mais importante conferência mundial desta segunda metade do século XX.
Trata-se de conferência intergovernamental, com a participação de entidades femininas credenciadas, buscando estabelecer, no plano nacional e internacional, um programa de desenvolvimento da mulher em todo o mundo.
A 1ª Conferência da ONU sobre a mulher aconteceu há 20 anos, em 1975, na cidade do México, com o lema Igualdade, Desenvolvimento e Paz, expressões que passaram a ser o norte para o decênio de 1976 a 1985. Em 1980, no segundo encontro da ONU, em Copenhague, foram acrescidos três subtemas: Educação, Emprego e Saúde. A terceira conferência ocorreu em Nairóbi, em 1985, quando foram incorporados os temas sob o título: Estratégias Orientadas ao Futuro, para o Desenvolvimento da Mulher até o Ano 2000.
A miséria que lastreia o mundo, fruto da prolongada crise econômica mundial e do fracasso da iniciativa do Estado, atinge de maneira desproporcional a mulher. Apesar do aumento significativo de mulheres como chefes de família, possuem elas menos acesso aos recursos econômicos. Um terço das famílias do mundo está a cargo de mulheres, sendo que a metade das famílias pobres são sustentadas por mulheres sozinhas.
Esse quadro é que embasa o projeto de plataforma de ação, buscando promover a independência econômica da mulher e seu acesso à educação e aos serviços de saúde. Ingentes têm sido os esforços na preparação do conclave, com uma série de reuniões preparatórias com subsídio das ONGs que realizarão um congresso paralelo. A última reunião preparatória ocorreu em Nova Iorque, reunindo cerca de 1.500 pessoas e representantes de 160 países.
O Brasil, após cinco seminários nacionais realizados em Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre e Brasília, elaborou um documento intitulado Relatório Geral sobre a Mulher na Sociedade Brasileira, a ser apresentado em Pequim. Foi feito um diagnóstico da situação da mulher no Brasil, que destaca a persistência das desigualdades no acesso ao trabalho, bem como a violência social e doméstica, física e sexual de que são vítimas as brasileiras.
Quero confessar que um dos tópicos contou com minha modesta participação, a partir de um trabalho intitulado “A Mulher e o Poder Judiciário”, que ressalta que a legislação ordinária brasileira ainda não foi atualizada de forma a promover a igualdade entre homens e mulheres, conforme preconiza a Constituição Federal.
A plataforma de ação apresentada pela Secretária da Conferência, Gertrude Mongella, mostra que as mulheres, mesmo sendo metade da humanidade e tendo papel fundamental na produção em todos os setores, longe estão de participar em condições de igualdade desses benefícios coletivos. O documento oficial aponta estratégias e medidas concretas a serem adotadas.
Curioso é atentar em que, apesar das semelhanças quanto à existência de desigualdades, há dissenso, por exemplo, quanto à universalidade dos direitos humanos das mulheres, questionados pelo Irã e outros países fundamentalistas. Também quanto aos direitos reprodutivos e sexuais, há visões diferenciadas, devido a posturas de ordem religiosa sobre as formas de controle da natalidade.
O evento procura enfrentar de forma global um problema comum, evidenciando que não são mais suficientes iniciativas isoladas e independentes. Por isso, no dia 8 de março, Dia Internacional da Mulher, reuni 8 entidades atentas aos problemas femininos – entre as quais esta que ora me recebe com tanta fidalguia – e lancei a idéia da formação de uma federação. Sob o nome de FAF – Federação das Associações Femininas, a idéia é unir as entidades femininas.
Assim, estão em acelerada fase de elaboração os estatutos dessa entidade, que irá abrigar organismos governamentais e não-governamentais, públicos e privados, da esfera nacional, estadual e municipal, bem como as entidades dos países integrantes do Mercosul, essa nova forma organizativa estatal que igualmente tem a união como tônica.
Apesar das muitas e operosas associações existentes neste Brasil, é difícil fazer ouvir os reclamos pela igualdade. O isolacionismo leva à falta de poder político, e somente a comunhão de esforços poderá fazer ecoar nossas vozes.
O federalismo, como forma de viabilizar a luta conjunta, é que permitirá que se realce o papel da mulher, com a conquista de um novo espaço no qual se reconheça nossa força.
Como de forma feliz concluiu Sonia do Canto no editorial da 2ª edição do Jornal Mulher, “a nós compete o engajamento para traduzir um embate permanente de toda a gente de nossa terra para a gente de todas as terras”.
Quero agradecer a todos por hoje me oportunizarem noticiar o nascimento deste novo ser.
Publicado em 27 de março de 1995.
[1] Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul
Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM