A mulher e seus direitos

Maria Berenice Dias[1]

 

 

  1. O panorama atual

Reformas fundamentais nos campos civil, político, econômico e social sustentam o movimento de mulheres, que vem adquirindo uma força cada vez mais expressiva. Além de proclamar a necessidade do reconhecimento do direito à igualdade, denuncia a discriminação e a violência doméstica, que se retrata no assassinato, no espancamento e no estupro de mulheres feitos pelos maridos ou companheiros.

Ainda assim, muitas mulheres nem chegam a ter consciência de seus direitos, e, quando têm, o descrédito na polícia e na Justiça as inibe de denunciar a violência da qual são vítimas. Normalmente só vão às delegacias quando já não agüentam mais ou temem pela própria vida. Sempre há uma certa relutância em registrar a queixa, principalmente quando dependem economicamente dos maridos ou companheiros e têm filhos. Ao depois, há o medo de não terem para onde ir, e, voltando para casa, temem reação muito mais violenta do seu algoz ao saber da denúncia levada a efeito.

Ainda que vencida a resistência inicial e registrada a ocorrência, passada a raiva e esquecida a dor, sob a alegação de que “as coisas melhoraram”, a tentativa é de que não se desenvolva o processo. A omissão do Estado, não prosseguindo com a investigação, mostra conivência com a situação, havendo necessidade de que persista a punição do culpado, única forma de reverter a situação que se encontra estratificada.

 

  1. O fenômeno social

Na sociedade ocidental existe um modelo preestabelecido. Ao homem cabe o espaço público e à mulher, o privado, nos limites da família e do lar. As mulheres, por receberem educação diferenciada, necessitam ser mais controladas, mais limitadas em suas aspirações e desejos. Isso enseja a formação de dois mundos: um de dominação, externo, produtor; o outro de submissão, interno e reprodutor. A essa distinção estão associados os papéis ideais de homens e mulheres: ele provendo a família e ela cuidando do lar, cada um,  desempenhando a sua função.

Os padrões de comportamento distintos instituídos para homens e mulheres leva à geração de um verdadeiro código de honra. A sociedade outorga ao macho um papel paternalista, exigindo uma postura de submissão da fêmea. Ambos os universos, o ativo e o passivo, acham-se carentes de proteção, sendo que ao autoritarismo corresponde o modelo de submissão.

A redefinição no contexto atual desse modelo ideal de família – que levou a mulher para fora do lar e impôs ao homem a necessidade de assumir responsabilidades dentro de casa – provocou o afastamento do parâmetro estabelecido a ensejar um desequilíbrio que acaba propiciando o surgimento de conflitos. A violência surge e justifica-se como forma de compensar possíveis falhas no cumprimento ideal dos papéis de gênero. Quando um não está satisfeito com a atuação do outro no cumprimento do seu papel, surge a guerra dos sexos e os envolvidos usam suas armas: músculos e lágrimas. As mulheres levam a pior, tornam-se vítimas da violência masculina e só têm como arma a queixa. A passividade do papel da mulher coaduna-se com o de vítima, mas é necessária a existência da queixa, para mostrar a terceiros o seu infortúnio.

 

  1. Posturas judiciais

Diante das situações de violência familiar, a Justiça não trabalha com fatos, mas com representações sociais. Os operadores do Direito não apreciam só o comportamento no momento do crime, mas se investiga a vida dos envolvidos. Os estereótipos dos protagonistas são elementos decisivos para o resultado do processo. Se um não corresponde ao papel ideal de bom pai de família e a outra, de fiel dona-de-casa, seguramente o seu agressor será absolvido.

Só são condenados maridos ou companheiros que têm evidência de alcoolismo, vício em drogas, um passado de abuso doméstico e estão desempregados ou são criadores de caso.

O perfil dos absolvidos é o oposto: réus primários, trabalhadores, carinhosos e bons maridos. Assim, se restar evidenciado que o homem era um bom pai de família e matou a mulher que lhe era infiel, certamente será ele absolvido.

Não há como negar que a Justiça tem uma certa condescendência para com os réus, sempre entrando em linha de questionamento a atitude da vítima, como sendo o móvel dos fatos. Perquirir-se o comportamento moral da mulher, o que pode levar ao reconhecimento surpreendente de que foi ela que provocou o crime, sendo culpada pela própria sorte.

Tais circunstâncias evidenciam que as mulheres são vítimas dos tribunais brasileiros, já que os processos sofrem a influência de normas sociais permeadas de preconceito de gênero.

 

  1. A legislação discriminatória

É necessário reconhecer que parte do problema está na própria legislação.

O fato de os delitos sexuais serem considerados crimes contra os costumes, e não contra a pessoa, evidencia que a objetividade jurídica protegida é a sociedade, a parte ofendida é o ente social e não a mulher.

O estupro, ainda que pertencente à categoria de crime hediondo, é classificado como crime de ação privada. A abertura do processo depende de provocação da vítima, não sendo obrigação do Estado punir o culpado. Ademais, normalmente se exige evidência de lesões corporais, sob pena de se questionar se efetivamente houve resistência. A vítima que se afasta dos padrões de castidade é tratada como leviana e permissiva, tornando-se muito difícil a condenação quando são estupradas prostitutas ou pessoas que têm uma postura sexual liberada.

O estupro praticado pelo marido normalmente não é denunciado, sendo visto como cobrança de obrigação conjugal, pois a recusa em manter relações sexuais é considerada como causa para separação. Muitas vezes as esposas consideram a conjunção carnal uma obrigação matrimonial, a desestimular denúncias e investigações.

 

  1. Legítima defesa da honra

O argumento extralegal da legítima defesa da honra, que ainda serve como causa de absolvição, revela uma atitude preconceituosa contra as mulheres. O fundamento é de que, se alguém pode defender a vida, também pode defender a vida interior, que é a honra, reconhecida como razão de viver. Esse argumento, no entanto, é falacioso, deixando evidenciado que seu substrato é de ser a mulher propriedade do marido, a ele subordinada, e qualquer atitude sua fora das regras conjugais prescritas consiste em ofensa à honra do cônjuge.

A mera suposição de adultério, o desejo pela separação ou a simples negativa de relações sexuais são classificados como legítima defesa da honra para embasar pedidos de absolvição.

Nos delitos sexuais, não se atenta em que um dos elementos da legítima defesa é a existência de ameaça presente ou iminente. Ainda quando os crimes são premeditados, acaba-se por reconhecer a presença da excludente.

A paixão nos assassinos só surge ante a hipótese de um adultério, e, sem maior atenção aos fatos, se reconhece desrespeito à moral do marido. Tal argumento tem levado maciçamente à absolvição dos maridos assassinos.

 

  1. Delitos privilegiados

Outra forma de privilegiar os delitos cometidos contra a mulher é aceitar a exceção legal da violenta emoção causada por provocação injusta da vítima, que leva, em caso de homicídio, à redução da pena de 12 a 30 anos para de 1 a 6 anos (o fato de a vítima e o agressor serem casados é circunstância agravante).

É reconhecido como crime passional o provocado por uma emoção tão forte, que o acusado experimenta uma insanidade momentânea. No entanto, usa-se como argumento a insanidade temporária – que é uma excludente da criminalidade – para exculpar maridos que matam as mulheres por mera suspeita de infidelidade.

Para o reconhecimento da atenuante, é necessário que a prática do delito tenha sido motivada por violenta emoção imediatamente após a provocação da vítima. Incrível, porém, a facilidade com que se reconhece essa circunstância em caso de delito premeditado, e ainda sem nenhuma prova de ter havido provocação da vítima. Às vezes, mero pedido de pensão alimentícia leva ao crime, sendo aceito tal fato como provocação da vítima.

Assim, privilegiar o delito com o abrandamento da pena por reconhecimento da atenuante é postura carregada de discricionariedade.

Há uma tendência do sistema judiciário brasileiro de reduzir a gravidade da acusação formal dos agressores de mulheres, tipificando-se delitos de penas mais brandas. Com mais facilidade se classifica o fato como lesão corporal, quando se trata de tentativa de homicídio. Igualmente se dá pouca credibilidade à versão da vítima que mantém relações extramatrimoniais, sendo considerada como não tendo um comportamento moral adequado, a evidenciar maus antecedentes.

 

  1. Os delitos domésticos

 

A Lei nº 9.099, de 26/9/95, que criou os Juizados Especiais Criminais, instituiu uma Justiça consensual, possibilitando a aplicação de pena mesmo antes do oferecimento da acusação e ainda antes da discussão da culpabilidade. As medidas de despenalização adotadas, bem como a adoção de um rito sumaríssimo, buscam a agilização no julgamento dos delitos de pequena potencialidade ofensiva e levam ao desafogamento da Justiça Comum.

Ainda que se tenha de reconhecer uma consciente tentativa de acabar com a impunidade – vista como a causa maior da criminalidade -, deixou de ser priorizada a pessoa humana, a preservação de sua vida e de sua integridade física. Ao condicionar a ação penal relativa às lesões corporais leves e lesões culposas à representação, omite-se o Estado de sua obrigação de punir, transmitindo à vítima a iniciativa de buscar a apenação de seu agressor, segundo critério subjetivo de conveniência. Passou a lei a considerar como infrações menores as que afetam o cidadão, mas continua com o monopólio de punir os delitos contra o patrimônio, pois esses ainda persistem desencadeando ação pública incondicionada.

Há, no entanto, que atentar nas hipóteses em que existe um desequilíbrio entre agressor e agredido, uma hierarquização entre ambos. A punição, nesses casos, certamente acaba não ocorrendo, pois não há como exigir que o desprotegido, o hipossuficiente, o subalterno, venha a formalizar queixa contra o seu agressor. Dentro dessa categoria, não se pode deixar de enquadrar a mulher, a criança e o adolescente, pois os delitos perpetrados contra eles, em sua maciça maioria, são praticados por maridos, companheiros ou pais, ou seja, pessoas com quem convivem e mantêm uma relação de afeto.

Inquestionável que a ideologia patriarcal ainda subsiste, leva o homem a ter-se como proprietário do corpo e da vontade da mulher e dos filhos. O medo, a dependência econômica, o sentimento de inferioridade, a baixa auto-estima, decorrentes da ausência de pontos de realização pessoais, sempre impuseram à mulher a lei do silêncio. Raros os casos em que se encorajavam a revelar a agressão ocorrida dentro do lar, mas isso bastava para o desencadeamento da ação penal.

A lei, além de ter esvaziado as Delegacias da Mulher – que agora se limitam a lavrar um termo circunstanciado -, está, sem sombra de dúvida, dificultando o desencadeamento da ação e a apenação nos chamados delitos domésticos. É imposta a realização de audiência preliminar, com a presença do autor do fato e da vítima. A conciliação, que imperiosamente tem de ser proposta, enseja simples composição de danos, a ser executada no juízo cível. Não obtida a conciliação, há o direito de exercer a representação, que é verbalizada pela vítima na presença do agressor. Mais: feita a representação, pode o Ministério Público transacionar a aplicação de multa ou pena restritiva de direitos, que, se aceita pela parte, não implica reincidência, não consta da certidão de antecedentes e não tem efeitos civis. Trata-se de uma verdadeira transação penal, da qual a vítima não participa.

Esse contexto está contribuindo para que se chegue a um alarmante nível de violência, que só agora vem despertando a atenção de todos.

A desproporção, quer física, quer de valoração social, entre os gêneros masculino e feminino necessita ser ressaltada, para que se dimensione o crime doméstico como merecedor da execração social.

É necessário lembrar que o Direito Penal tem uma função simbólica, não centrada só no castigo, mas na demonstração da intolerância social com relação a determinado ato, que passa a ser repudiado mediante sua criminalização. É mister que a condenação seja exemplar e que se cunhe uma nova consciência, buscando-se o efeito positivo da apenação e o reconhecimento de novos valores.

Assim, pode-se concluir que a criminalização dos delitos contra as mulheres é uma exceção, sendo que não é a Justiça, mas a sociedade machista que absolve os homens, postura que se revela como afronta aos direitos humanos.

Publicado em 06/11/2005.

[1] Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul

Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFam

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