A Maria da Penha e a Justiça
Maria Berenice Dias[1]
Enfim entrou em vigor a Lei 11.034/06 – chamada Lei Maria da Penha – que cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, visando a assegurar sua integridade física, psíquica, sexual, moral e patrimonial.
As mudanças foram muitas e significativas. A autoridade policial não mais se limita a lavrar termos circunstanciados. Registrada a ocorrência, deve instaurar o inquérito policial e tomar por termo a representação da ofendida. Solicitando ela medidas protetivas de urgência, o pedido deve ser encaminhado a juízo em 48 horas. Recebido o expediente, o juiz dispõe do mesmo prazo para acolher ou rejeitar o pedido liminarmente ou, se entender necessário, designar audiência de justificação para determinar não só o que foi requerido pela vítima, mas tudo o que entender necessário para garantir a sua segurança: afastar o do agressor e reconduzir a ofendida ao lar; impedir que ele se aproxime da casa, fixando limite mínimo de distância; suspender visitas e fixar alimentos. Pode igualmente impor a restituição de bens, suspender procurações e proibir a venda ou locação bens comuns. Como a vítima tem prioridade à remoção se for servidora pública e se, trabalhar na iniciativa privada, lhe é assegurada a manutenção do vínculo empregatício por até seis meses, estas comunicações devem ser feitas imediatamente pelo juiz ao órgão empregador.
Mas o maior de todos os avanços foi a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher – JVDFM com competência cível e criminal, para o processamento, julgamento e execução das causas decorrentes da violência intrafamiliar. Enquanto não estruturados os juizados especializados, cabe às varas criminais processar e julgar as ações criminais e apreciar as medidas protetivas de urgência. A execução, no entanto, não está afeita a estas varas. Como os juízes criminais precisam priorizar os processos de réu preso, não há como assegurar a preferência concedida pela lei à violência doméstica. Assim, recebido o pedido de medida protetiva, depois de apreciada a liminar, deve o expediente ser enviado à vara cível ou vara de família, onde houver esta especialização. Neste juízo é que será designada audiência com a necessária brevidade, visando compor o conflito de forma ampla. Para o ato serão intimados o Ministério Público e as partes, devendo ambas estar acompanhadas de defensor. Obtida a conciliação e manifestando a ofendida o desejo de renunciar à representação, pode ser ouvida pelo juiz na mesma oportunidade, mas reservadamente e na presença do Ministério Público. Homologado o acordo e a desistência da representação, será tal fato comunicado à autoridade policial, para que suste o processamento do inquérito. A desistência só cabe antes do recebimento da denúncia.
Afastada a violência doméstica do âmbito da Lei 9.099/95, o grande questionamento que vem sendo feito é se o delito de lesões corporais leves deixou de ser considerado de pequeno potencial ofensivo, ou seja, se a ação voltou a ser pública e não mais condicionada à representação.
Ainda que esteja proibida expressamente a imposição do pagamento de cesta básica ou multa, mister reconhecer que a própria lei mantém a representação, que é manifestada perante a autoridade policial. Para afastar as nefastas conseqüências que levaram o legislador a excluir a violência doméstica da égide dos juizados especiais criminais, agora a renúncia só pode ocorrer em audiência, perante o juiz e o Ministério Público.
Não há como pretender que prossiga a ação penal mesmo que tenha o juiz ou obtido a reconciliação do casal ou homologado a separação, com definição de alimentos, partilha de bens, guarda de filhos e visitas. Às claras que a possibilidade de trancamento do inquérito policial em muito facilitará a composição dos conflitos envolvendo as questões de Direito de Família, que são bem mais relevantes do que a imposição de pena criminal.
De qualquer forma, não há mais a transação penal a ser proposta pelo Ministério Público, também sendo descabida a suspensão condicional do processo ou a aplicação de pena restritiva de direito de conteúdo econômico. No entanto, a possibilidade de o juiz impor o comparecimento obrigatório do agressor a programas de recuperação e reeducação é certamente a forma mais eficaz para se combater a violência contra a mulher.
Apesar de todas as críticas que vêm merecendo a nova lei, é preciso que todos se conscientizem da necessidade de encontrar meios de torná-la efetiva, pois se trata de um grande avanço para coibir crime que ofende não só a mulher, mas seus filhos e a própria sociedade.
Publicado em 22/12/2006.
[1] Desembargadora do Tribunal de Justiça do RS
Vice-Presidente Nacional do IBDFAM
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