A Liberdade de ser Diferente

Maria Berenice Dias[1]

 

O direito desdobrado em gerações.

A liberdade é o princípio dos direitos humanos. Por ela principiou a evolução dos direitos humanos, que hoje a doutrina – na tentativa de classificá-los – desdobra em gerações de direitos. Ainda que se deva pôr em xeque a  existência de gerações, a separar direitos que tiveram uma evolução história contínua, não há dúvida de que a história dos direitos humanos começou com a afirmação da liberdade como valor fundamental da sociedade política, obra do liberalismo, na passagem do século 18 para o 19. Os direitos consagrados pela Declaração francesa de 1789 passaram a ser considerados a primeira geração. Visando à preservação da liberdade individual, caracterizam-se como imposição de limites ao Estado, para o qual geram obrigações de não fazer. Já os direitos econômicos, sociais e culturais positivados a partir da Constituição de Weimar de 1919 são tidos como a segunda geração, cobrando atitudes positivas e prestações do Estado, obrigações de fazer, para superar a mera igualdade formal de todos perante a lei, herança da primeira geração, pela igualdade material de oportunidades, ações e resultados, entre partes ou categorias sociais desiguais, protegendo e favorecendo juridicamente as partes fracas em relações sociais específicas, como a relação de trabalho assalariado, a de inquilinato, a de concubinato, a de consumo, etc. Os direitos de terceira geração, enfim, sobrevindos à Segunda Guerra Mundial, asseguram a dignidade humana pelo implemento de todas as condições gerais e básicas que lhe sejam necessárias, postas como direitos difusos de toda a humanidade.

Reflexo do relacionamento social, todo direito subjetivo garante algum sujeito ativo contra algum sujeito passivo (singulares ou coletivos) em função de algum objeto (valor ou bem). Essa verificação simples fornece um critério didático para sistematizar em gerações a evolução contínua dos direitos do homem e do cidadão. A esses direitos subjetivos gerais, fundamentais da sociedade política em que a pessoa humana busca realizar-se integralmente, hoje se prefere chamar direitos humanos. Didatizá-los em gerações começa por lembrar que nessas gerações se tem – não sucessão em conflito por incompatibilidade de sujeitos e objetos – mas continuidade em crescimento por ampliação subjetiva e objetiva do direito, no processo da incessante socialização em que evolui o estado contemporâneo. No Ocidente, esse processo resultou na passagem do estado liberal para o estado social de direito, cuja plenitude jurídica – a ser alcançada com a terceira geração de direitos – é o estado democrático de direito. Não na versão ideológica produzida pelo espanhol Elias Diaz em reação à ditadura franquista. Para este, o estado democrático de direito seria o estado socialista a ser construído sem ditadura. Mas no rumo de um estado de direito pleno, produzido pela conversão de todos os direitos fundamentais, incluídos os políticos, em direitos humanos difusos e integrais, cuja titularidade sujeite todos os indivíduos da espécie humana e cujo objeto compreenda todos os valores da dignidade humana, os valores fundantes da espécie humana, que fundaram a humanidade ao longo do seu processo histórico, pela valoração das diferenças específicas que, exprimindo condições fundamentais da sua existência, conformam a sua essência.

Assim, na primeira geração – voltada para as relações sociais em geral – o sujeito do direito é o indivíduo e o objeto, a liberdade. São direitos individuais quanto à titularidade e, quanto ao objeto, são direitos de liberdade, pelo que são propriamente ditos liberdades. Garantem indivíduo contra indivíduo, buscando libertar todos e cada um do absolutismo de um ou de alguns. Originariamente, libertar do absolutismo do monarca e seus agentes, aos quais se opõe a liberdade individual irrestrita, o absolutismo da individualidade, que só pode ser restringida pela lei, expressão da vontade geral, estritamente em função do interesse comum.

Na segunda geração – voltada para aquelas relações sociais, em particular, nas quais a desigualdade se acentua por um fator econômico, físico ou de qualquer natureza – continua sujeito dos direitos fundamentais o indivíduo, porém não mais como individualidade abstrata e absoluta, mas como integrante de uma categoria social em concreto, à qual são relativos, em parte, seus valores, que recebem, nessa parte, uma proteção parcial (em ambos os sentidos do termo “parcial”) do Estado, para prevenir ou remediar o detrimento de uma categoria social por outra. Se bem que variados pelo teor econômico, social ou cultural, tais direitos parciais sempre garantem uma prestação do Estado, legislativa, administrativa ou jurisdicional, a uma determinada categoria de indivíduos, nas suas relações com outra categoria determinada ou com as demais, a fim de promover a igualdade social. São direitos categoriais pela titularidade e, pelo objeto, são direitos de igualdade ou, pelo seu sentido de equalizar a sociedade, são direitos sociais. Garantem categoria contra categoria social, buscando igualar os desiguais na medida em que se desigualam. Originariamente, para superar a Questão Social, desencadeada pelo capitalismo selvagem propiciado pela conjunção das revoluções industriais (na infra-estrutura econômico-social) com as revoluções liberais (na superestrutura político-cultural), tais direitos categoriais incidiram sobre a relação de trabalho assalariado para proteger a classe operária contra a espoliação patronal. Depois se espraiaram para outras categorias sociais, também hipossufcientes.

Enfim, a terceira geração reagiu aos extermínios em massa da humanidade praticados na primeira metade do século 20 por regimes totalitários (stalinismo, nazismo) e por democráticos (bombardeamento de cidades indefesas, até por bombas atômicas). Voltou os olhos do direito para as relações sociais em geral, mas agora para garantir – não indivíduo contra indivíduo – mas a humanidade contra a própria humanidade, genericamente considerada. Isso, na medida em que o gênero humano se mostrou técnica e moralmente capaz de se autodestruir e, assim, suscitou a solidariedade de todos os indivíduos e categorias da sociedade humana diante de uma possível destruição da humanidade, seja gradativamente, por degradação das condições necessárias à vida humana, seja sumariamente, pela abrupta supressão dessas condições, que no todo constituem a condição humana, cuja valoração resulta nos valores fundantes da humanidade, componentes da dignidade humana. Nessa terceira leva, aparecem direitos difusos quanto à titularidade subjetiva e, quanto ao objeto, direitos de solidariedade. Com eles, a evolução dos direitos humanos atinge o seu ápice, a sua plenitude subjetiva e objetiva: são direitos humanos plenos, de todos os sujeitos contra todos os sujeitos, para proteger todos os objetos que condicionam a vida humana, fixados em valores ou bens humanos, patrimônio da humanidade, segundo padrões de avaliação que lhe garantam a existência com a dignidade que lhe é própria. São os direitos humanos por excelência, integrais, a promover a integração de todos os sujeitos e objetos da humanidade. Traduzem o humanismo íntegro: a humanidade, em toda a sua plenitude, subjetiva e objetiva, individual e social.

Eis por que é preferível chamar direitos da humanidade essa tipificação da terceira geração, estendendo-a às gerações precedentes. Nela se inclui e encerra toda a geração de direitos, culminando numa geração que assume as anteriores. Nela termina a evolução dos direitos humanos, no que diz respeito à sua tipificação subjetiva e objetiva. No tipo subjetivo, todos os direitos humanos fundamentais se tornam assim direitos difusos, cuja titularidade alcança todos os indivíduos integrantes da humanidade, ou indistintamente considerados, ou distinguidos em categorias sociais. No tipo objetivo, todos os direitos se tornam direitos de solidariedade humana, os quais – para garantir efetivamente a liberdade, a igualdade e a dignidade dos seres humanos, até onde possível — abraçam todos os valores fundantes da humanidade. Nada mais, a tipificar: a tarefa agora é enumerar.

Sobretudo, como já advertiu Noberto Bobbio, é preciso tornar realidade eficaz os direitos humanos enumerados. Tornou-se modismo descobrir mais gerações, tentação em que muitos caíram, inclusive o próprio Bobbio. Mas, em verdade, não mais há gerações a descobrir. A tentativa de ir além apenas serve para tumultuar a tipificação, estorvando a eficácia dos direitos humanos, levando-os à banalidade: perda da fundamentalidade.

O direito à sexualidade

Não obstante, modismo ou não, resvalando quiçá para a trivialidade, muitos são os que – como Bobbio – dão seqüência à geração de direitos humanos fundamentais. Pouco importa. Mesmo que o desdobramento dos direitos em grande número de gerações possa ensejar questionamento, quando já se escuta falar em direitos de quarta, quinta e sexta gerações, não se pode deixar de reconhecer que o livre exercício da sexualidade – que principia pela liberdade de opção sexual – merece integrar as três primeiras gerações – cuja existência é geralmente aceita – porque está relacionado com os postulados fundamentais da liberdade individual, da igualdade social e da solidariedade humana.

Nesse campo, o da opção sexual, as relações homossexuais sobressaem em virtude dos próprios preconceitos que tentam excluí-las do mundo do direito. Mas, à intolerância dos preconceitos sociais, deve contrapor-se a higidez dos conceitos jurídicos. Efetivamente, no que respeita à sua inclusão no rol dos direitos humanos fundamentais, como expressão de um direito subjetivo ao mesmo tempo individual, categorial e difuso, as relações homossexuais – além de estarem amparadas pelo princípio fundamental da isonomia, cujo corolário é a proibição de discriminações injustas – também se albergam sob o teto da liberdade de expressão, como sob a garantia do exercício da liberdade individual, cabendo incluí-las, da mesma forma, entre os direitos de personalidade, precipuamente no que diz com a identidade pessoal e a integridade física e psíquica.[2] Acresce ainda, e igualmente no mesmo sentido de inclusão, que a segurança da inviolabilidade da intimidade e da vida privada é a base jurídica para a construção do direito à orientação sexual, como direito personalíssimo, atributo inerente e inegável da pessoa humana.[3]

Diriam os preconceituosos – sempre de plantão – que as relações homossexuais constituem um atentado da humanidade contra a humanidade, pois, dada a incapacidade “generandi” que lhes é inerente, levariam ao extermínio o gênero humano, se generalizadas. No entanto, não passa de argumento “ad terrorem”, sustentado por uma condição impossível: a generalização do homossexualismo. Quantas práticas, generalizadas assim radicalmente, não implicariam o mesmo efeito radical! Um exemplo, particularmente apropriado ao caso: a castidade. Pelo mesmo argumento “ad terrorem”, igualmente deve ser excluído dos direitos humanos o direito à castidade, como todos os seus correlatos, entre eles o celibato. Em suma, generalizar uma pretensão é uma “boa” forma de torná-la inaceitável, condenada à exclusão radical.

Na verdade, o ser humano, como um fim em si mesmo, merece ser respeitado em suas características individuais, exatamente as que inibem tais generalizações “ad terrorem”. Impedem qualquer generalidade “absurdum tantum”, feita por simples operação mental destituída de qualquer possibilidade material.

Mas, além dessa argumentação lógica, socorre à exigência de respeito às características individuais homossexuais o princípio jurídico do respeito à dignidade humana, preceito sobre o qual jamais se escreverá o suficiente.[4] Os grandes pilares que outorgam efetividade a essa verdadeira viga-mestra, assentada de forma saliente na Carta Constitucional brasileira já no inc. III do seu art. 1º,  são os princípios da liberdade e da igualdade. O inc. I do art. 5º pontifica: “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações”, e a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação é estabelecida como objetivo fundamental do Estado no inc. IV do art. 3º.

 

7.1. A liberdade de  optar

O princípio constitucional da igualdade, erigido como cânone fundamental, outorga específica proteção no que diz com as questões de gênero. Expressamente, tanto o inc. IV do art. 3º [5] como o inc. I do art. 5º [6] e inc. XXX do art. 7º[7] proíbem qualquer desigualdade em razão do sexo. Ditas normas alcançam a vedação de discrímine à conduta afetiva do indivíduo no que diz com sua opção sexual. Com efeito, a discriminação de um ser humano em virtude de sua orientação sexual constitui, precisamente, uma hipótese (constitucionalmente vedada) de discriminação sexual.[8]

Mister inicialmente precisar o sentido da expressão orientação sexual. Segundo Roger Raupp Rios[9] orientação sexual é a afirmação de uma identidade pessoal cuja atração e/ou conduta sexual direciona-se para alguém do mesmo sexo (homossexualismo), sexo oposto (heterossexualismo), ambos os sexos (bissexuais) ou a ninguém (abstinência sexual). [10] Assim, a identificação da orientação sexual está condicionada à identificação do sexo da pessoa escolhida, em relação à pessoa que escolhe. Quando alguém dirige seu interesse sexual a outrem, ou seja, opta por outrem para manter um vínculo afetivo, elege o gênero da pessoa com quem deseja se relacionar. A identificação do gênero do objeto do desejo, se masculino ou feminino, é o dado revelador da orientação sexual, opção essa que não pode merecer tratamento diferenciado.

O fato de ser a atenção direcionada a alguém do mesmo ou de distinto sexo não pode ser alvo de tratamento discriminatório, pois tem por base o próprio sexo da pessoa que faz a escolha. A juridicização do relacionamento que tenha por critério, não a efetiva conjunção das personalidades e, no fundo, das suas próprias vidas, mas a mera coincidência de sexos parte de um preconceito social que sobreveio ao fato histórico, próprio da evolução do gênero animal. A espécie humana foi a única em que já ocorreu a separação psíquica e física entre o ato sexual prazeroso e a função procriativa. Dessa separação, e na própria medida em que ela ocorreu, nasceu a liberdade de orientação sexual, que se tornou inerente à espécie humana. Indivíduos de ambos os sexos passaram a ter a opção de tecer e suster uma relação sexual além da simples necessidade de reprodução, inclusive com pessoa do mesmo sexo, o que não afronta os conceitos das sociedades historicamente desenvolvidas. Não cabe mais desfigurar para desproteger, senão por preconceitos que, presos ao passado, distorcem no presente a evolução e a história da humanidade.

Todos dispõem da liberdade de optar, desimportando o sexo da pessoa eleita, se igual ou diferente do seu. Se um indivíduo nada sofre ao se vincular a uma pessoa do sexo oposto, mas recebe o repúdio social por dirigir seu desejo a alguém do mesmo sexo, está sendo discriminado em função de sua orientação sexual. Não se pode deixar de concluir, com Roger Raupp Rios, que o tratamento diferenciado, pela inclinação a um ou a outro sexo, evidencia uma clara discriminação à própria pessoa, em função de sua identidade sexual. Como a orientação sexual só é passível de distinção diante do sexo da pessoa escolhida, é direito que goza de proteção constitucional ante a vedação de discriminação por motivo de sexo. O gênero da pessoa eleita não pode gerar tratamento desigualitário com relação a quem escolhe, sob pena de se estar diferenciando alguém pelo sexo que possui: se igual ou diferente do sexo da pessoa escolhida.

Dito impedimento discriminatório não tem exclusivamente assento constitucional. Está posto na Convenção Internacional dos Direitos Civis e Políticos, na Convenção Americana de Direitos Humanos e no Pacto de San Jose, dos quais o Brasil é signatário. Como preceitua o § 2º do art. 5º da CF, [11] são recepcionados por nosso ordenamento jurídico os tratados e convenções internacionais objeto de referendo. Ante tais normatizações, a ONU tem entendido como ilegítima qualquer interferência na vida privada de homossexuais adultos, seja com base no princípio de respeito à dignidade humana, seja pelo princípio da igualdade.[12]

A orientação que alguém imprime na esfera da sua vida privada não admite restrições a quaisquqer direitos. Nesse sentido já se posicionaram as Cortes Supremas do Canadá, dos Estados Unidos e do Havaí, ao afirmarem que  a discriminação por orientação sexual configura discriminação sexual.

 

7.2. Família e entidade familiar

Os princípios e normas constitucionais vincam um novo sistema jurídico, que aporta nos diversos ramos do Direito. Promulgada a Lei Maior, é recepcionada somente a legislação infraconstitucional que não a afronta, tornando-se letra morta tudo que a ela se contrapõe.

O Direito de Família, ao receber o influxo do Direito Constitucional, foi alvo de uma profunda transformação. Basta lembrar que o princípio da igualdade ocasionou uma verdadeira revolução ao banir as discriminações que existiam no campo das relações familiares. Num único dispositivo o constituinte espancou séculos de hipocrisia e preconceito.[13] Foi derrogada toda a legislação que hierarquizava homens e mulheres, bem como a que estabelecia diferenciações entre os filhos pelo vínculo existente entre os pais.

Outorgando a Constituição Federal  proteção à família, independentemente da celebração do casamento, vincou um novo conceito, o de entidade familiar, que albergou vínculos afetivos outros. Tanto a união estável entre um homem e uma mulher como as relações de um dos ascendentes com sua prole passaram a configurar uma família.

Nessa nova paisagem, não mais se distingue a família pela existência do matrimônio, solenidade que deixou de ser seu único traço diferencial. O art. 226, § 3º, da CF reconhece como entidade familiar a união estável, se formada entre um homem e uma mulher. Segundo a clara dicção de tal dispositivo, para que a convivência seja digna da proteção do Estado, impõe-se a diferenciação de sexos do casal, postura que ignora a existência de entidades familiares formadas por pessoas do mesmo sexo. Não se pode deixar de ter por nitidamente discriminatória a indigitada norma, que fez uma distinção odiosa,[14] contrariando o princípio da igualdade que, desde o frontispício da Constituição, veda diferenciar pessoas em razão de seu sexo. Não seria o caso de aplicar-se aqui a já célebre distinção feita por Karl Schmitt entre Constituição e lei constitucional? Constituição é princípio que exprime decisão política intangível. As leis constitucionais devem seguir a esses princípios, não são intocáveis, mas em certos casos podem até ser mudadas pelo processo legislativo ordinário. Ou não seria mesmo o caso de aplicar-se aqui a também célebre distinção feita por Otto Bachofen, que permite julgar inconstitucionais as normas constitucionais que, embora presentes no texto, ferem algum princípio da Constituição?

A verdade é que o princípio constitucional que deve prevalecer no caso é o da igualdade cumulado com o da liberdade individual, ambos resultando na isonomia. Perante esses princípios constitucionais, os maiores da Constituição brasileira, a regra do parágrafo …. do artigo …. da Constituição, na parte em que condiciona à distinção de sexos o reconhecimento da união estável, ou é mera lei constitucional, que pode ser reformada até por lei ordinária (Karl Schmitt), ou é norma constitucional inconstitucional (Otto Bachofen), que deve ser banida do ordenamento jurídico-constitucional.

Nada justifica o estabelecimento da distinção de sexos como condição para a identificação da união estável. Dita desequiparação, arbitrária e aleatória, estabelece exigência nitidamente discriminatória. O próprio legislador constituinte reconheceu igualmente como entidade familiar, merecedora da proteção do Estado, a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes. Ante tal abertura conceitual, nem o matrimônio nem a diferenciação dos sexos ou a capacidade procriativa servem de elemento identificador da família. Por conseqüência, de todo descabida a ressalva feita no sentido de só ver como entidade familiar a união estável entre pessoas de sexos opostos.

Passando duas pessoas ligadas por um vínculo afetivo a manter uma relação duradoura, pública e contínua, como se casados fossem, formam um núcleo familiar à semelhança do casamento, independentemente do sexo a que pertencem. A única diferença que essa convivência guarda com a união estável entre um homem e uma mulher é a inexistência do objetivo de gerar filhos. Essa circunstância, por óbvio, não serve de fundamento para a diferenciação  levada a efeito. Como a capacidade procriativa ou a vontade de ter prole não são elementos essenciais para que se empreste proteção legal a um par, é de reconhecer-se a incompatibilidade da regra com o preceito igualitário, que dispõe de maior espectro.

 

7.3. Uma questão de  constitucionalidade

A onipotência do Estado tem limites, e as normas constitucionais devem adequar-se aos princípios e garantias que identificam o modelo consagrado pela comunidade que a Carta Política deve servir. O núcleo do sistema jurídico, que sustenta a própria razão de ser do Estado, deve garantir  muito mais  liberdades do que promover  invasões ilegítimas na esfera pessoal do cidadão.

A regra maior da Constituição Pátria é o respeito à dignidade humana, verdadeira pedra de toque de todo o sistema jurídico nacional. Esse valor implica em dotar os princípios da igualdade e da isonomia de potencialidade transformadora na configuração de todas as relações jurídicas. Frente a esse compromisso, cabe investigar se, na disparidade estabelecida no § 3º do art. 226 da CF – exigindo a diversidade de sexos para o deferimento da proteção estatal à entidade familiar – há congruência entre a distinção de regime estabelecida e a desigualdade de situações correspondentes.[15] Esse questionamento sugerido por Celso Antônio Bandeira de Mello para a avaliação de eventual afronta ao princípio da igualdade é por ele mesmo respondido: é agredida a igualdade quando o fator diferencial adotado para qualificar os atingidos pela regra não guarda relação de pertinência lógica com a inclusão ou a exclusão no benefício deferido ou com a inserção ou arredamento do gravame imposto.[16]

Esse verdadeiro teste identificador de eventual afronta ao mais elementar princípio constitucional revela, nitidamente, que a exigência da diversidade de sexo para o reconhecimento de uma união estável encobre dissimulada  discriminação à orientação sexual. Repugna ao princípio constitucional da igualdade que sejam regulados os aspectos materiais do relacionamento afetivo heterossexual e não o sejam os do relacionamento afetivo homossexual.[17]

O princípio da isonomia não se exaure no enunciado básico de que todos são iguais perante a lei. Implica igualdade na própria lei, ou seja, não basta que a lei seja aplicada igualmente para todos, mas é também imprescindível que a lei em si considere todos igualmente, ressalvadas as desigualdades que devem ser sopesadas para o prevalecimento da igualdade material em detrimento da obtusa igualdade formal.[18]

Ao constatar-se essa paradoxal realidade, cabe indagar se uma  lei  poderia violar a si mesma, principalmente em se tratando de regras de assento constitucional. De primeiro, precisa-se atentar em que a constituição, além de ser um conjunto de normas, constitui antes e acima de tudo um conjunto de princípios,[19] princípios esses aos quais devem se afeiçoar as próprias normas constitucionais. Uma norma só formalmente constitucional pode ser nula se desrespeitar, em medida insuportável, os postulados fundamentais da justiça.[20] Segundo esse entendimento, a consagração da dignidade da pessoa humana tem o condão de subtrair a eficácia de qualquer regra que a infirme, ainda que ela se encontre no bojo da própria constituição.

A possibilidade de reconhecimento da existência de normas constitucionais inválidas ou ineficazes foi sustentada por Otto Bachof em conferência proferida em Heidelberg, no ano de 1951, que se encontra publicada com instigante título que fala por si: Normas Constitucionais Inconstitucionais?

Não há como reconhecer a possibilidade de, no mesmo feixe normativo, conviverem normas que elejam a diferenciação do sexo como elemento discriminante para merecer a proteção estatal. Se todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, aí está incluída a opção sexual que se tenha. Não só para Bachof, mas também para Rios e Suannes, configurado esse aparente conflito, ou seja, mostrando-se uma norma constitucional contrária a um princípio constitucional ou apresentando ela incompatibilidade com um direito supralegal consagrador das garantias e dos direitos individuais, o dispositivo carece de legitimidade. Essa solução não é inovadora. O direito norte-americano já afirmou a ilegitimidade constitucional de tratamento diferenciado, sob a justificativa de ser a regra arbitrária. [21]

Desarrazoada a eleição de fator sexista para subtrair dos homossexuais os direitos deferidos aos heterossexuais, postura que evidencia discriminação, infringência ao princípio da isonomia e desrespeito à cláusula constitucional de respeito à dignidade humana, bem como, de forma reflexa, afronta à liberdade pessoal e sexual.

Para Adauto Suannes, tanto o § 3º do art. 226 da CF como as leis que o regulamentam afrontam o espírito e a letra da Constituição de 1988, quando restringem a proteção legal apenas às uniões estáveis de pessoas de sexo diferente, fazendo uma distinção que os princípios supraconstitucionais, albergados no art. 5º, não autorizavam, nem mesmo como exceção. [22] Essa interpretação, que, ao certo, gera alguma perplexidade, é sustentada também por Luiz Edson Facchin, ao dizer que se trata de hermenêutica construtiva que pode, desde logo revelar uma compreensão diferenciada ao tema.[23]

Ainda que se resista em reconhecer como não escrita a restrição constante do indigitado dispositivo, não há como deixar de estender a proteção estatal às relações homossexuais. Subtrair juridicidade a um fato social implica deixar o indivíduo à margem da própria cidadania, o que não se comporta no âmbito do Estado Democrático de Direito.

O silêncio constitucional e a omissão legiferante  não podem  levar à negativa de se extraírem efeitos jurídicos de tais vínculos, devendo o juiz, atendendo à determinação constante do art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil,  fazer uso da analogia.

Ao se falar em hermenêutica, sempre vem à mente a autoridade de Carlos Maximiliano, que estabelece os pressupostos para a sua aplicação: A relação contemplada no texto, embora diversa da que se examina, deve ser semelhante, ter com ela um elemento de identidade. Este elemento não pode ser qualquer, e, sim, ‘fundamental’, isto é, o facto jurídico que deu origem ao dispositivo. Não bastam affinidades apparentes, semelhança ‘formal’; exige-se a ‘real’, verdadeira igualdade sob um ou mais aspectos, consistente no facto de se encontrar, num e noutro caso, o mesmo princípio básico e de ser uma só a idéia geradora tanto da regra existente como da que se busca. A hypotese nova e a que se compara com ella, pecisam assemelhar-se na essencia e nos effeitos; é mister existir em  ambas a mesma razão de decidir.[24]

Buscando-se a aproximação reclamada por Maximiliano, entre os institutos que se encontram normatizados, os que mais se identificam com a situação desamparada pela lei são a união estável e o casamento. Abstraindo-se o sexo dos conviventes, nenhuma diferença há entre as relações homo e heterossexuais, pois existe uma semelhança no essencial, a identidade de motivos entre os dois casos[25]. Ambos são vínculos que têm sua origem no afeto, havendo identidade de propósitos, que a concretização do ideal de felicidade de cada um. A lacuna legal é de ser colmatada por meio da legislação que regulamenta os relacionamentos pessoais com idênticas características, ou seja, os institutos que  regulam as relações familiares, sem que se tenha por afrontada a norma constitucional que tutela as relações de pessoas com sexos opostos.

A verdadeira aversão da doutrina dominante e da jurisprudência majoritária em se socorrer das leis que regem a união estável ou o casamento tem levado ao reconhecimento de uma sociedade de fato. Sob o fundamento de se evitar  enriquecimento injustificado, invoca-se o Direito das Obrigações, o que acaba subtraindo a possibilidade da concessão do leque de direitos que existem na esfera do Direito de Família.

A omissão legal não pode dar ensejo à negativa de direitos aos vínculos afetivos que não tenham a diferença de sexo como pressuposto. A dimensão meta-jurídica de respeito à dignidade humana impõe que se tenham como protegidos pela Constituição os relacionamentos afetivos independentemente da identificação do sexo do par, se formados por homens e mulheres ou só por mulheres ou só por homens. Atendidos os requisitos legais para a configuração da união estável, necessário que sejam conferidos direitos e impostas obrigações independente da identidade ou diversidade de sexo dos conviventes.

Qualquer discriminação baseada na orientação sexual do indivíduo configura claro desrespeito à dignidade humana, a infringir o princípio maior imposto pela Constituição Federal. Infundados preconceitos não podem legitimar restrições a direitos, o que acaba por fortalecer estigmas sociais que acabam por causar sentimento de rejeição e  sofrimentos. Ventilar-se a possibilidade de desrespeito ou prejuízo a um ser humano, em função da orientação sexual, significa dispensar tratamento indigno a um ser humano. Não se pode, simplesmente, ignorar a condição pessoal do indivíduo (na qual, sem sombra de dúvida, inclui-se a orientação sexual), como se tal aspecto não tivesse relação com a dignidade humana.[26]

 

Publicado em 08/10/2008.

 

[1] Advogada especializada em Direito Homoafetivo, Famílias e Sucessões

Ex-desembargadora do Tribunal de Justiça do RS

Vice-Presidente Nacional do IBDFAM

www.mariaberenice.com.br

[2] RIOS, Roger Raupp. Direitos fundamentais e orientação sexual: o direito brasileiro e a homossexualidade. Revista CEJ do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal. Brasília, dez. 1998. nº 6. p. 28.

[3] FACHIN, Luiz Edson. Elementos críticos do direito de família: curso de direito civil, Rio De Janeiro: Renovar, 1999, p. 95

[4] SUANNES, Adauto. As uniões homossexuais e a Lei 9.278/96. COAD. Ed. Especial out/nov.199. p. 28.

[5] inc. IV do art. 3º da Constituição Federal: promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor idade e quaisquer outras formas de discriminação.

[6] inc. I do art. 5º da Constituição Federal: homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição.

[7] inc. XXX do art. 7º da Constituição Federal: proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil.

[8] RIOS, Roger Raupp. Direitos fundamentais e orientação sexual: o direito brasileiro e a homossexualidade. Revista CEJ do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal. Brasília. dez. 1998. nº 6. p. 29.

[9] magistrado da justiça federal gaúcha  que precisa e minuciosamente abordou este tema em uma decisão judicial ao deferir a inclusão de parceiro como beneficiário de plano de saúde. A sentença foi confirmada pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Cópia da sentença no anexo1.5.1 e do acórdão no anexo 1.5.2.

[10] RIOS, Roger Raupp. Direitos fundamentais e orientação sexual: o direito brasileiro e a homossexualidade. Revista CEJ do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal. Brasília. dez. 1998. nº 6. p. 29.

[11] § 2º do art. 5º da Constituição Federal: Os direitos e garantia expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou nos tratados internacionais  em  que a República Federativa do  Brasil seja parte.

[12] RIOS, Roger Raupp. Direitos fundamentais e orientação sexual: o direito brasileiro e a homossexualidade. Revista CEJ do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal. Brasília. dez. 1998. nº 6. p. 35.

[13] VELOSO, Zeno. Homossexualidade e direito.  jornal O Liberal de  Belém do Pará em 22.5.1999.

[14] SUANNES, Adauto. As uniões homossexuais e a Lei 9.278/96.  COAD. Ed. Especial out/nov.199. p. 32.

[15] MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade.  São Paulo:Malheiros. 3ª ed. 1993, p. 35.

[16] Conteúdo jurídico do princípio da igualdade.  São Paulo:Malheiros. 3ª ed. 1993, p. 38.

[17] LEY, Anna Maria Laydner Gaudie. Um princípio de igualdade.  jornal Zero Hora em 22.10.1996.

[18] LIMA, Paulo Roberto de Oliveira. Isonomia entre os sexos no sistema jurídico nacional. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1993, p. 16.

[19] TEMMER, Michel. Elementos de direito constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1990, p. 25

[20] BACHOF, Otto. Normas constitucionais inconstitucionais? Coimbra: Livraria Almedina, 1994., p. 3

[21] RIOS, Roger Raupp. Direitos fundamentais e orientação sexual: o direito brasileiro e a homossexualidade. Revista CEJ do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal. Brasília. dez. 1998. nº 6. p. 31.

[22] As uniões homossexuais e a Lei 9.278/96.  COAD. Ed. Especial out/nov.199. p. 34.

[23] Elementos críticos do direito de família: curso de direito civil, Rio De Janeiro: Renovar. 1999, p. 99.

[24] Hermeneutica e aplicação do direito. Porto Alegre: Livraria do Globo. 1925. p. 226.

[25] CUNHA, Graciela Leães Alvares da Cunha et MOREIRA, José Alberto Marques. Os efeitos jurídicos da união homossexual. Porto Alegre:Data Certa. 1999, p.111.

[26] RIOS, Roger Raupp. Direitos fundamentais e orientação sexual: o direito brasileiro e a homossexualidade. Revista CEJ do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal. Brasília. dez. 1998. nº 6. p. 34.