A imposição de direitos e deveres no casamento e na união estável

Maria Berenice Dias[1]

 

 

Sumário: 1. Um bem querer; 2. Um querer sem liberdade; 3. Um querer limitado; 4. Um querer cheio de responsabilidades; 5. Um querer sem fim; 6. Mesmo não querendo.

 

 

  1. Um bem-querer

Os vínculos afetivos são da ordem do desejo, impulso para a vida que remete à necessidade de completude. São fenômenos naturais, que sempre existiram independentemente de regras ou tabus e bem antes da formação do Estado e do surgimento das religiões. São questões complexas, refere Rodrigo da Cunha Pereira, pois é de se indagar se o Direito pode mesmo legislar sobre a sexualidade, uma vez que esta pressupõe o desejo. Não se sabe, ou pelo menos não se escreveu ainda, se é o Direito que legisla sobre o desejo, ou se é o desejo que legisla sobre o Direito.[2]

Sob a justificativa de estabelecer padrões de moralidade e com a finalidade de regulamentar a ordem social, nominou-se de família os relacionamentos afetivos. O Estado solenizou sua formação pelo casamento e transformou a família em uma instituição. A Igreja deu-lhe status de sacramento. Seja o Estado da espécie que for, tenha a formação que tiver, nomine a religião o seu deus da forma que o idealize, o fato é que ambos, o Estado e a Igreja, acabaram se imiscuindo na vida das pessoas. Foram gerados interditos – proibições de natureza cultural e não-biológica – para regulamentar as relações amorosas.

Como lembra Virgílio de Sá Pereira: A família é um fato natural, o casamento é uma convenção social.[3] A partir do intervencionismo estatal, os vínculos interpessoais, para merecerem aceitação social e reconhecimento jurídico, necessitavam ser chancelados pelo que se convencionou chamar de matrimônio. Uma vez atendidos os pressupostos e requisitos estabelecidos pela lei, o casamento transforma-se em uma união praticamente indissolúvel.

O Estado só reconhecia a existência da relação matrimonializada, vedando quaisquer direitos às relações nominadas de espúrias, adulterinas ou concubinárias. Somente a família “legítima” possuía direitos garantidos. A filiação estava condicionada ao estado civil dos pais, só merecendo reconhecimento a prole nascida dentro de um casamento.[4] Os filhos havidos de relações sexuais extramatrimoniais eram alvo de uma enorme gama de nominações de conteúdo pejorativo e discriminatório. Nenhum direito possuíam, sendo condenados à invisibilidade. Não podiam ser reconhecidos, não tendo sequer direito à própria identidade. Durante muito tempo, os filhos ilegítimos estavam fadados à morte, pois nem alimentos podiam buscar.[5]

 

  1. Um querer sem liberdade

O desejo das partes é atendido exclusivamente no momento da constituição da família. Não são questionados os noivos sobre seus sentimentos nem é perquirida a causa do casamento. Colhe-se a simples manifestação da vontade de casar: é de livre vontade que o fazeis? Porém, se a vontade é elemento essencial para a solenização do casamento, mais nenhuma relevância possui após ser proferida a palavra “sim”.

Parece que o Estado, com sua onipotência, olvida que são os vínculos e pactos íntimos que ligam o par. Não são as imposições sociais ou os mandamentos legais que os mantêm unidos. Mas não se limita o legislador a chancelar o casamento e atribuir responsabilidades ao casal. Também busca interferir em sua vida íntima. Assegura direitos e impõe encargos a serem cumpridos durante o período de convívio.

Dita ingerência na vida familiar, além de nitidamente descabida, é de todo despicienda. Ainda que tente a lei impor obrigações e assegurar direitos, o descumprimento de qualquer dos deveres do casamento não gera a possibilidade de o cônjuge credor buscar seu adimplemento em juízo. Não há como exigir judicialmente as imposições contidas na lei. São previsões que servem tão-só para fundamentar uma ação de separação. A infringência aos deveres conjugais outorga legitimidade para a busca da separação, imputando-se ao infrator a culpa pelo fim do amor. Portanto, as regras estabelecidas para vigorar durante a vida em comum têm utilidade somente para justificar o pedido de separação, ou seja, são invocáveis depois de findo o casamento.

Durante a vigência do casamento, o eventual ou reiterado, dissimulado ou público inadimplemento dos deveres conjugais, por um ou ambos os cônjuges, em nada afeta a existência, a validade ou a eficácia do casamento. Assim, de nada adianta o legislador tentar impor condutas ou ditar o modo de viver a quem optou por oficializar o seu relacionamento afetivo.

O compromisso assumido perante o Estado dispõe de inúmeras seqüelas, quer quanto à prole, quer com relação a terceiros, quer ainda, e principalmente, quando do desfazimento do vínculo, pela separação, pelo divórcio ou ainda pela morte. Mesmo que, com referência a essas questões, seja necessário o regramento legal, descabido é tentar a lei interferir na intimidade do casal, intromissão que ninguém quer e de nada serve.

 

  1. Um querer limitado

Ainda que a lei preveja algumas restrições para o casamento e estabeleça certos impedimentos, ao menos um deles se mostra de todo descabido. Nada autoriza presumir a incapacidade das mulheres a partir dos 50 anos e dos homens a contar dos 60 anos, impondo a obrigatoriedade do regime de separação de bens.[6]

Quando da edição do Código Civil pretérito, nos idos de 1916, dita limitação foi identificada como norma de ordem pública de natureza protetiva. Mas hoje tal dispositivo não resiste ao confronto com os mais elementares princípios que merecem proteção constitucional, como o direito à liberdade, à igualdade e o respeito à dignidade. Descabe restringir a capacidade de alguém pelo mero implemento de certa idade. Trata-se de injustificável limitação, estabelecida de forma absolutamente aleatória e tão-só para a prática de um determinado ato: o casamento. Tal interdito, ao subtrair a presunção do estado condominial dos bens adquiridos na vigência do casamento, gera a possibilidade do enriquecimento injustificado de um dos cônjuges.

Como dito tratamento desigualitário inexiste na união estável, a incomunicabilidade dos aqüestos não pode permanecer no ordenamento jurídico. Felizmente vem a jurisprudência afastando dita restrição, tendo-a como não-recepcionada pelo estatuto constitucional.

 

  1. Um querer cheio de responsabilidades

Parece que o casamento é o destino de todos os cidadãos. Para a ideologia da família, afirma Sérgio Resende de Barros, a sociedade humana não é uma sociedade de indivíduos, nem a sociedade política é uma sociedade de cidadãos, mas sim de famílias.[7]

Celebrado o casamento, tem-se por constituída a família, a qual se transforma na base da sociedade, passando a merecer a especial atenção do Estado.[8] Apesar de a Constituição assegurar assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram,[9] é-lhe imposto o dever de garantir à criança e ao adolescente, com absoluta primazia, todos os direitos que lhes são assegurados.[10] Também é da família o dever de amparar as pessoas idosas.[11] Só em caráter secundário tal dever é atribuído à sociedade.

A participação do Estado é invocada de forma supletiva ou residual. Ou seja, exime-se o Estado de seus deveres sociais, delegando-os à família, sem garantir-lhe condições ou repassar-lhe recursos para o desempenho desses misteres. Inconscientemente o Constituinte vale-se da ideologia da família para assim desonerar o Estado – ou ao menos compartir o ônus – de certas funções públicas e deveres sociais para cujo desempenho e adimplemento a grande maioria das famílias brasileiras não têm recursos econômicos, nem outras condições.[12]

 

  1. Um querer sem fim

Outorgados tantos privilégios à família e sendo-lhe atribuídas tantas responsabilidades, o Estado só pode se insurgir contra sua dissolução. Em um primeiro momento, o casamento era indissolúvel e somente podia ser desconstituído pela anulação. Mas, para se obter esse desiderato, era indispensável a ocorrência de erro essencial, ou quanto à identidade ou quanto à personalidade do cônjuge. Afora isso, era possível o rompimento do casamento apenas pelo desquite, que, no entanto, não o dissolvia, restando os cônjuges numa situação sui generis. Não mais eram casados, cessavam os deveres matrimoniais, mas o vínculo do casamento permanecia, o que impedia os desquitados de buscar reconstituir suas vidas mediante nova união.

A Lei do Divórcio limitou-se a uma alteração exclusivamente terminológica. O desquite passou a ser chamado de separação, com idênticas características: rompe o casamento, mas não o dissolve. Após o decurso de um ano, é necessário volver à via judicial para transformar a separação em divórcio.

Mesmo após o advento da dissolvabilidade do vínculo do matrimônio, continua não bastando a vontade dos cônjuges para se desvencilhar do casamento. Ainda que haja consenso das partes, mister que estejam casados há mais de dois anos[13] para buscar a separação. Somente depois do decurso de mais um ano é que podem buscar a chancela judicial para o reconhecimento do fim do casamento. De forma consensual, o divórcio só pode ser buscado se os cônjuges já estiverem separados de fato há mais de dois anos.

Curioso é que, após o decurso do prazo de um ano do fim da vida em comum, se desinteressa o Estado de identificar e punir o responsável pela separação. Antes de decorrido esse prazo, somente o cônjuge “inocente” pode buscar a separação, devendo atribuir e provar a culpa do réu: conduta desonrosa ou infringência aos deveres conjugais, necessitando demonstrar também que tais posturas tornam insuportável a vida em comum. Portanto, são cumulativas as causas para ser buscada a separação. Além da prova da culpa, mister que o magistrado reconheça que o comportamento do réu possui o condão de inviabilizar a convivência do par.

Hoje, ainda que tal causa de pedir conste da lei, cada vez mais vai saindo de cena o tópico da culpa.[14] Vem a jurisprudência auscultando a melhor doutrina e decretando a separação mediante a mera alegação de desencontros e desentendimentos ou incompatibilidade de gênios e evidência de personalidades distintas.

Diante da quantidade de regras impostas, de pouco ou quase nada vale a vontade dos nubentes, o que permite concluir que o casamento não passa de um mero “contrato de adesão”. Cláusulas, condições, regras e até algumas posturas são prévias e unilateralmente estabelecidas por lei. Mister reconhecer que se está diante de um paradoxo. Para casar basta a mera manifestação da vontade dos noivos, que, mediante pacto antenupcial, no máximo, podem escolher o regime de bens que vigorará quando da dissolução do casamento.

 

  1. Mesmo não querendo

Mas não só em relação ao casamento ocorre a interferência estatal na vida afetiva das pessoas.

Os vínculos de convivência formados sem o selo da oficialidade ingressaram no mundo jurídico por obra da jurisprudência, sob o nome de concubinato. Essas estruturas familiares acabaram aceitas pela sociedade, fazendo com que a Constituição Federal albergasse no conceito de entidade familiar o que chamou de união estável. Assumiu o Estado, no entanto, o encargo de promover sua conversão em casamento, norma que, no dizer de Giselda Maria Fernando Novaes Hironaka, é a mais inútil de todas as inutilidades.[15]

A legislação infraconstitucional que veio a regular essa nova espécie de família[16] e posteriormente o Código Civil[17] acabou praticamente copiando o modelo oficial do casamento. Além de estabelecer os requisitos para o seu reconhecimento, impõe deveres e cria direitos. Assegura alimentos, estabelece o regime de bens, insere o convivente na ordem de vocação hereditária, institui usufruto e concede direito real de habitação. Aqui também pouco resta da vontade do par, cabendo afirmar que a união estável se transforma em um “casamento por decurso de prazo”.

A exaustiva regulamentação da união estável a faz objeto de um dirigismo estatal não querido pelos conviventes. Como são relações de caráter privado, cabe questionar a legitimidade de sua publicização. Passou o Estado a regular não só os vínculos que buscam o respaldo legal para se constituir, mas também os relacionamentos que escolhem seus próprios caminhos e que não desejam qualquer interferência.

Conforme bem lembra Rodrigo da Cunha Pereira, a sexualidade, que é da ordem do desejo, sempre escapará ao normatizável. O Estado não pôde mais controlar as formas de constituição das famílias… ela é mesmo plural. O gênero família comporta várias espécies, como a do casamento, que maior proteção recebe do Estado, das uniões estáveis e a comunidade dos pais e seus descendentes (art. 226, CF). Estas e outras formas vêm exprimir a liberdade dos sujeitos de constituírem a família da forma que lhes convier, no espaço de sua liberdade.[18]

No momento em que o formato hierárquico da família cedeu à sua democratização, em que as relações são muito mais de igualdade e de respeito mútuo e o traço fundamental é a lealdade, não mais existem razões, morais, religiosas, políticas, físicas ou naturais, que justifiquem essa excessiva e indevida ingerência do Estado na vida das pessoas.

A esfera privada das relações conjugais tende cada vez mais a repudiar a interferência do público, não se podendo deixar de concluir que está ocorrendo uma verdadeira estatização do afeto.

 

 

Publicado em 25/11/2009.

[1] Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul

Vice-Presidente Nacional do IBDFAM

www.mariaberenice.com.br

[2] PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de Família: uma abordagem Psicanalítica. Belo Horizonte: Del Rey, 2. ed., p. 53.

[3] in HIRONAKA, Giselda Maria F. Novaes. Direito Civil: estudos. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 24.

[4] Essa odiosa discriminação permaneceu até o advento da Constituição Federal, em 1988, que vedou qualquer designação discriminatória (§ 6º do art. 227).

[5] A Lei nº 883/1948 autorizou ao filho ilegítimo acionar o pai em segredo de justiça, mas só para buscar alimentos.

[6] O inciso II do art. 258 do Código Civil de 1916 mereceu abrandamento pela Súmula 377 do STF: No regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento.

[7] BARROS, Sérgio Resende de. A Ideologia da Família. Artigo disponível no site: www.srbarros.com.br

[8] Art. 226 da Constituição Federal.

[9] § 8º do art. 226 da Constituição Federal.

[10] Art. 230 da Constituição Federal.

[11] Art. 230 da Constituição Federal.

[12] BARROS, Sérgio Resende de. loc. cit.

[13] O prazo referido corresponde ao Código Civil de 1916. Hoje o lapso temporal é de um ano.

[14] RIBEIRO, Renato Janine. A família na Travessia do Milênio. In Anais do II Congresso de Direito de Família, Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 19.

[15] Op. cit, p. 27.

[16] Leis nºs 8.971, de 29/12/84, e 9.278, de 10/5/1996.

[17] CC 1.723 a 1727.

[18] Op. cit., p. 55.