A Família e seus Afetos

Maria Berenice Dias

 

A família do afeto

O evoluir da sociedade levou a uma verdadeira transformação da própria família que passou a ser referida no plural: famílias. Ocorreu o alargamento da ideia sacralizada do casamento, chagando-se ao pluralismo das entidades familiares, que passou a abrigar estruturas não convencionais, em que nem o número ou o sexo dos partícipes é determinante para seu reconhecimento.

A mudança acabou inserida na Constituição Federal ao trazer o conceito de entidade familiar. A partir desta evolução – verdadeira revolução – passou-se a buscar uma definição de família que albergasse as diversas estruturas de convívio. E foi o IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família que isolou o seu elemento identificador: o afeto. Este é o elemento fundante que permite reconhecer quando se está frente a uma estrutura familiar merecedora a tutela jurídica.

 

Os filhos do afeto: filiação socioafetiva

Mas não só a família, também a filiação foi alvo de profunda transformação. O afeto, elemento identificador das entidades familiares, igualmente passou a servir de parâmetro para a definição dos vínculos parentais. Como lembra Zeno Veloso, o princípio capital norteador do movimento de renovação do Direito das Famílias é fazer prevalecer, em todos os casos, o bem da criança; valorizar e perseguir o que melhor atender aos interesses do menor (favor filii).[1]

De um lado existe a verdade biológica, comprovável por meio de exame laboratorial que permite afirmar, com certeza praticamente absoluta, a existência de um liame biológico entre duas pessoas. De outro lado há uma verdade que não mais pode ser desprezada: o estado de filiação, que decorre da estabilidade dos laços de filiação construídos no cotidiano do pai e do filho, e que constitui o fundamento essencial da atribuição da paternidade ou maternidade.[2]

Estas realidades não se confundem e nem conflitam. O status de filho é conquistado com o nascimento em uma família matrimonialmente constituída, com a adoção, com o reconhecimento da paternidade, voluntário ou forçado, sem que a causa que deu ensejo ao vínculo que se estabelece entre pai, mãe e filho seja a consanguinidade.[3]

O parentesco deixou de manter, necessariamente, correspondência com o vínculo consanguíneo. A disciplina da nova filiação há que se edificar sobre os pilares constitucionalmente fixados: a plena igualdade entre filhos, a desvinculação do estado de filho do estado civil dos pais e a doutrina da proteção integral.[4]

Sensível como sempre, a jurisprudência percebeu a necessidade de atentar ao princípio do melhor interesse e começou a estabelecer vínculo de filiação a quem desempenha as funções parentais Tal fez surgir uma nova figura jurídica, a filiação socioafetiva, que se sobrepôs tanto à realidade biológica como a registral.

A definição da paternidade é condicionada à identificação do desejo de quem deseja, planeja e assume as responsabilidades parentais, mesmo antes do nascimento do filho, nada mais do que o reconhecimento prévio da posse do estado.

Quando as pessoas desfrutam de situação jurídica que não corresponde à verdade, detêm o que se chama de posse de estado. Em se tratando de vínculo de filiação, quem assim se considera dispõe da posse de estado de filho, ou de estado de filho afetivo, como prefere Belmiro Welter.[5] Fabíola Santos Albuquerque traz a noção de posse de estado de pai, que exprime reciprocidade com a posse de estado de filho.[6] A paternidade se faz, como diz Luiz Edson Fachin, o vínculo de paternidade não é apenas um dado, tem a natureza de se deixar construir.[7] Essa realidade corresponde a uma aparente relação paterno-filial.

O sistema jurídico não contempla, de modo expresso, a noção de posse de estado de filho, expressão forte e real do nascimento psicológico, a caracterizar a filiação afetiva.[8] A noção de posse de estado de filho não se estabelece com o nascimento, mas num ato de vontade, que se sedimenta no terreno da afetividade, colocando em xeque tanto a verdade jurídica, quanto a certeza científica no estabelecimento da filiação.[9] Em matéria de filiação, a verdade real é o fato de o filho gozar da posse de estado, que prova o vínculo parental.

A posse de estado é a expressão mais exuberante do parentesco psicológico, da filiação afetiva. A maternidade e a paternidade biológica nada valem frente ao vínculo afetivo que se forma entre a criança e aquele que trata e cuida dela, lhe dá amor e participa de sua vida.[10] A afeição tem valor jurídico.[11] Na medida em que se reconhece que a paternidade se constitui pelo fato, a posse do estado de filho pode entrar em conflito com a presunção pater est. E, no embate entre o fato e a lei, a presunção precisa ceder espaço ao afeto.[12]

Permitir exclusivamente que a verdade biológica identifique o vínculo jurídico é olvidar tudo que a doutrina vem sustentando e a Justiça vem construindo.

 

Afetos entre iguais: filiação homoparental

Não mais cabe buscar na verdade jurídica ou na realidade biológica a identificação dos vínculos familiares. É imperioso encontrar novos referenciais, pois a coincidência genética deixou de ser fundamental. A paternidade não é só um ato físico, mas, principalmente, um fato de opção, extrapolando os aspectos meramente biológicos, ou presumidamente biológicos, para adentrar com força e veemência na área afetiva.[13]

Deixar de ver que o filho têm mais de um pai ou mais de uma mãe é se deixar levar pelo preconceito. Não cabe tentar encontrar justificativa para afastar o direito à identidade. Tal postura, além de infirmar o princípio do melhor interesse da criança, afronta cânones consagrados constitucionalmente: o direito à liberdade e o respeito à dignidade da pessoa humana. De outro lado, permitir que exclusivamente os pais biológicos tenham um vínculo jurídico com o filho gestado também por quem desejou e planejou o filho é olvidar tudo que vem a justiça construindo através de uma visão mais ampliativa da estrutura da família.

Não admitir a paternidade homoparental é retroagir um século, ressuscitando a perversa classificação do Código Civil de 1916, que, em boa hora, foi banida pela Constituição Federal de 1988. Além de retrógrada, a negativa de reconhecimento escancara flagrante inconstitucionalidade, pois é expressa a proibição de quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.

Reconhecidos os casais homoafetivos como entidade familiar, constituindo união estável e assegurado acesso ao casamento, nada justifica não incidirem as presunções legais de filiação. Desse modo comprovada a união ou o casamento, é o que basta para proceder-se ao registro, sem a necessidade da propositura de ação de reconhecimento e muito menos de adoção. Afinal, de adoção não se trata.

Negar reconhecimento à homoparentalidade, que se estabelece fora da realidade biológica, é gerar irresponsabilidades e inaceitáveis injustiças que não mais se conformam com as garantias constitucionais de respeito à dignidade da pessoa humana.

 

Afetos múltiplos: multiparentalidade

Quer os doadores de material genético, quer quem gesta em substituição e acaba por dar à luz, todos geram vínculos com a criança que nasce com sua interferência. Assim, não mais se pode dizer que alguém só pode ter um pai e uma mãe. É possível que pessoas tenham vários pais. Identificada a pluriparentalidade ou multiparentalidade, é necessário reconhecer a existência de múltiplos vínculos de filiação. Todos os pais devem assumir os encargos decorrentes do poder familiar, sendo que o filho desfruta de direitos com relação a todos. Não só no âmbito do direito das famílias, mas também em sede sucessória.[14]

Para o reconhecimento da filiação pluriparental, basta flagrar o estabelecimento do vínculo de filiação com mais de duas pessoas. Coexistindo vínculos parentais afetivos e biológicos, mais do que apenas um direito, é uma obrigação constitucional reconhecê-los, na medida em que preserva direitos fundamentais de todos os envolvidos, sobretudo a dignidade e a afetividade da pessoa humana. Esta é uma realidade que a Justiça já começou a admitir.[15] No dizer de Belmiro Welter, não reconhecer as paternidades genética e socioafetiva, que fazem parte da trajetória da vida humana, é negar a existência tridimensional do ser humano, pelo que se devem manter incólumes as duas paternidades.[16]

A identificação da paternidade independe de ter havido a participação de algum dos pais no processo reprodutivo. Para assegurar a proteção do filho, todos os pais precisam assumir os encargos decorrentes do poder familiar. Vetar a possibilidade do múltiplo registro, já quando do nascimento, só traz prejuízo ao filho, que não terá qualquer direito com relação a quem também desempenha a função de pai ou de mãe. Basta ser comprovado o consenso  quanto à procriação.

Para o estabelecimento do vínculo de parentalidade, basta que se identifique quem desfruta da condição de pai, sem perquirir a realidade biológica, presumida, legal ou genética. Também a situação familiar dos pais em nada influencia na definição da paternidade, pois, a família é uma estruturação psíquica, onde cada um de seus membros ocupa um lugar, desempenha uma função, sem estarem necessariamente ligados biologicamente.[17]

A filiação multiparental funda-se na cláusula geral de tutela da personalidade humana, que salvaguarda a filiação como elemento fundamental na formação da identidade e definição da personalidade. O princípio da boa-fé objetiva e a proibição de comportamento contraditório referendam o prestígio de que desfruta a filiação socioafetiva, que dispõe de um viés ético.

Para assegurar a proteção do filho, os pais precisam assumir os encargos decorrentes do poder familiar. Vetar a possibilidade do registro, só traz prejuízo ao filho, que não tem qualquer direito com relação a quem também desempenha a função de pai ou de mãe.

Rejeitar a multiparentalidade afronta um leque de princípios, direitos e garantias fundamentais.

 

Publicado em 08/03/2015.

 

 

[1] VELOSO, Zeno. Direito brasileiro da filiação e da paternidade. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 180.

[2] LÔBO, Paulo. Direito ao estado de filiação e direito à origem genética: uma distinção necessária. Revista Brasileira de Direito de Família. Porto Alegre: IBDFAM/Síntese, ano V, n. 19, ago.-set. 2003. p. 153.

[3] STEIN, Thais Silveira. O estabelecimento da paternidade e a dignidade da pessoa nas relações familiares. In: PEREIRA, Tânia da Silva; PEREIRA, Rodrigo da Cunha (coords.). A ética da convivência familiar e a sua efetividade no cotidiano dos tribunais. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 565.

[4] BARBOZA, Heloisa Helena. Direito à identidade genética. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (coord.). Anais do III Congresso Brasileiro de Direito de Família. Família e cidadania. O novo CCB e a vacatio legis. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. p. 382.

[5] WELTER, Belmiro Pedro. Inconstitucionalidade do processo de adoção judicial. In: WELTER, Belmiro Pedro; MADALENO, Rolf (coords.). Direitos fundamentais do direito de família. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. p. 66.

[6] ALBUQUERQUE, Fabíola Santos. Adoção à brasileira e a verdade do registro civil. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (coord.). Anais do IV Congresso Brasileiro de Direito de Família. Família e dignidade humana. Belo Horizonte: IBDFAM, 2006. p. 355.

[7] FACHIN, Luiz Edson. A tríplice paternidade dos filhos imaginários. In: ALVIM, Teresa Arruda (coord.). Repertório de jurisprudência e doutrina sobre direito de família: aspectos constitucionais, civis e processuais. São Paulo: Ed. RT, 1995. vol. 2. p. 172.

[8] BOEIRA, José Bernardo Ramos. Filiação e solução de conflitos de paternidade. In: FREITAS, Douglas Phillips (coord.). Curso de direito de família. Florianópolis: Vox Legem, 2004. p. 139.

[9] MADALENO, Rolf. Direito de família em pauta. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. p. 22.

[10] DELINSKI, Julie Cristine. O novo direito da filiação. São Paulo: Dialética, 2000. p. 96.

[11] VELOSO, Zeno. Direito brasileiro da filiação e da paternidade. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 36.

[12] NICOLAU JR., Mauro. Coisa julgada ou DNA negativo: o que deve prevalecer? Revista Brasileira de Direito de Família. Porto Alegre: IBDFAM/Síntese, n. 23, dez.-jan. 2004. p. 122.

[13] DELINSKI, Julie Cristine. O novo direito da filiação. São Paulo: Dialética, 2000. p. 12.

[14] DIAS, Maria Berenice. Manual das sucessões. 3. ed. São Paulo: Ed. RT, 2013. p. 94.

[15] PÓVOAS, Mauricio Cavallazzi. Multiparentalidade: a possibilidade de múltipla filiação registral e seus efeitos. Florianópolis: Conceito, 2012. p. 79.

[16] WELTER, Belmiro Pedro. Teoria tridimensional do direito de família. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 230.

[17] PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de família: uma abordagem psicanalítica. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 47.